Economia política, moral e o novo coronavírus no Brasil
A crise do novo coronavírus indica que a realidade está se modificando e com ela o mundo como se conhece
As crises, como todas as coisas no mundo, apresentam duas faces normalmente encaradas antiteticamente como positivas e negativas. Quando se pensa na ciência como esfera destacada do conhecimento necessário à sua compreensão e superação, as crises acabam por fazer renascer questões de maior profundidade e relevância, exigindo por parte dos cientistas um esforço no sentido de recuo a fundamentos e princípios que dão origem aos pensamentos que lhes dão sustentação.
Nesse sentido, a crise do novo coronavírus, tanto em relação à urgência que coloca para o rearranjo das sociedades na solução do problema imediato da sobrevivência, quanto para seus desdobramentos futuros, indica que a realidade está se modificando e com ela o mundo como se conhece, o que exige mudança na forma como estes devem ser pensados.

Cabe à ciência de uma forma geral, e à ciência econômica em particular, um papel de destaque no encaminhamento do debate acerca dessa situação. É fundamental, nessa perspectiva, que os olhos dos economistas se voltem para os problemas originais de sua área de conhecimento, conforme colocados por alguns expoentes do pensamento econômico comprometidos com a delimitação dos postulados, finalidades e função dessa ciência, particularmente aqueles referenciados em situações críticas como a atual.
Nesse sentido, a economia política, assumindo o status de conhecimento autônomo a partir de Adam Smith, se define como desdobramento da filosofia moral, debruçando-se sobre o conflito entre o egoísmo e a piedade (ROBINSON, 1979) como determinante do comportamento dos indivíduos e constituindo-se como fundamento do conhecimento econômico.
Ao analisar o motivo do comportamento econômico dos homens, Adam Smith explora a Fábula das abelhas de Bernard Mandeville, que trata exatamente do conflito entre egoísmo e piedade. Sua observação sobre aquela obra é clara no que concerne à conformação do modo de pensar a economia como campo de conhecimento com objeto bem definido. Nessa medida, declara ser a posição de Mandeville falaciosa ao considerar que todas as paixões são viciosas pois sendo produto de paixões, alguns dos vícios considerados por aquele autor, embora egoístas, trazem benefícios à sociedade. Assim, encontrando-se na raiz do problema, a discussão sobre a natureza moral do comportamento humano pode ser considerada o fundamento da ciência econômica. Mas, na delimitação dessa ciência, Smith não discorda de Mandeville no que se refere à manifestação dos comportamentos egoístas do homem. Isto é, admitindo que as paixões ou vícios individuais podem levar à riqueza social, considera que o homem assim procedendo manifesta uma razão em sua convivência social que se expressa na organização econômica da sociedade em torno do mercado, sendo este no mundo real o cenário em que se desenvolvem as relações entre os homens e cuja dinâmica deve ser, por excelência, o objeto a ser apreciado pelo estudioso da economia.
Numa perspectiva filosófica mais ampla, contudo, o egoísmo jamais pode ser considerado uma virtude, pois a virtude de um homem “é o poder específico que o homem tem de afirmar sua existência própria, isto é, sua humanidade” (COMTE-SPONVILLE, 1995, p.8), ou, uma disposição adquirida de fazer o bem ou, mesmo, o esforço para se portar bem que define o bem nesse próprio esforço. Nesse sentido, aqueles que agem por vícios ou paixões não estão, em princípio, se esforçando para se portarem bem, a não ser para seu próprio benefício.
Talvez as ações egoístas possam gerar benefícios na medida em que se realizem virtuosamente, isto é, aconteçam de forma a promover sua finalidade, que é a felicidade. Mas isso se observará se tais ações voluntariamente vierem, de fato, a promover um bem comum. Não sendo um imperativo, em grande parte das vezes pela maneira como se realizam, promoverão o mal ou a dor. Serão, nesse sentido, viciosas.
Ao se considerar que a vida é a contingência que determina a felicidade e a justiça como finalidades ou bens supremos, alcançadas por vícios ou virtudes, não há como não pensar sobre sobrevivência e subsistência como parte de um mesmo todo. Não há possibilidade da vida sem a produção das condições de existência (subsistência), mas também não há possibilidade da produção dessas condições sem a vida (sobrevivência).
Obviamente, portanto, a questão relativa à precedência de políticas sanitárias ou de políticas de emprego que assola o debate político na realidade atual só faz sentido no que diz respeito à temporalidade de ações em resposta à crise. Procurando, portanto, entender como a teoria econômica historicamente tem respondido a crises com a natureza e a magnitude atual, invariavelmente os economistas acabam por convergir quanto à importância das políticas keynesianas como ferramenta útil para a solução dos problemas apresentados.
Tomando aqui por referência a obra mais conhecida de Keynes e que sintetiza de maneira mais cabal sua teoria, Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, se encontra a definição da demanda efetiva de uma economia como a soma do consumo, necessário à preservação da existência, e do investimento, necessário à produção das condições de existência, determinando o nível de atividade ou o emprego na economia. No que se refere ao consumo, o autor destaca seu papel estratégico na definição da demanda. Entendida como atividade realizada para a manutenção da existência por todos os agentes econômicos, sem exceção, é definida como uma tendência com razão constante, pelo menos a curto prazo. Isso significa que os indivíduos consomem parcela de sua renda na aquisição de meios ou bens para sobrevivência e obtenção de prazer, constituindo uma propensão média a consumir que tende a se reproduzir.
Naturalmente, o consumo depende da renda disponível na economia enquanto expressão monetária da demanda, e sua distribuição altera essa variável de sociedade para sociedade. Assim, também, o comportamento de consumo se diferencia entre os grupos nas sociedades em função dessa distribuição de renda. Mas o que é mais importante é que a desigual distribuição de renda faz com que os grupos de maior renda na economia tendam a consumir menos relativamente aos grupos de menor renda e, em função, disso, podendo poupar, constituem-se virtualmente nos grupos de investidores.
Sob esse aspecto, divididos entre dois grupos com distintos papéis nesse modelo econômico, consumidores e investidores, sendo seus comportamentos os reais objetos de avaliação pela teoria, há que se observar a importância do primeiro na medida em que agrega a totalidade dos indivíduos que compõem a economia, pois todos realizam consumo, pelo menos no que tange à manutenção das condições básicas de existência.
Referindo-se ao investimento, Keynes ao buscar analisar o papel da gestão do capital pelo investidor dá a entender que este, tomado como agente com total liberdade individual, poupa, deixando de consumir, com o objetivo de realizar riqueza pessoal, o que não implica necessariamente aumentar o aparelho produtivo da economia e o emprego. Com isso separa os investidores em dois agrupamentos: aqueles que efetivamente realizam investimentos e os especuladores. Diante da realidade atual, particularmente, no caso brasileiro esses dois tipos são tomados muitas vezes como iguais.
Da conclusão de Keynes sobre o enunciado de sua nova teoria, pode-se considerar que a definição das ações necessárias à superação de crises deve supor que o investimento e o futuro crescimento da atividade econômica e do emprego resultam fundamentalmente do consumo presente que, dependendo da manutenção dos salários, pode e deve merecer, caso isso não aconteça como resultado da negociação livre entre patrões e operários, destaca-se a função do Estado que deve agir com a disponibilização de crédito.
Tomando o problema pela função da oferta, isto é, a capacidade produtiva de uma economia, pode-se inferir que Keynes se apoia na ideia representada pelo modelo clássico da Curva de Possibilidades de Produção, consagrado nos manuais tradicionais de teoria econômica, que descreve as possibilidades de combinação entre a produção de diferentes bens numa economia num momento dado. No exemplo clássico de Samuelson (1952), os limites dessa curva podem ser dados em torno de dois bens colocados em perspectiva antagônica: canhões e manteiga. Supõe-se nesse modelo que a capacidade produtiva, ou a atividade econômica como um todo, não se altera a curto prazo e, nesse sentido, numa situação de guerra a alocação dos recursos produtivos se concentra na produção de canhões, o que obviamente não significa absolutamente abdicar da produção de manteiga. A combinação entre a produção de um bem em detrimento de outro faz com que a economia opere de maneira diferente de uma situação normal de vez que, não se alterando a curva de possível produção, se observe um deslocamento do ponto de encontro ou combinação entre os bens oferecidos nessa economia.
Parece claro que essa mudança nos parâmetros da atividade econômica depende em grande medida da capacidade que uma economia tem de converter suas atividades produtivas, que pode ser acionada mediante o pleno conhecimento das necessidades mais prementes da sociedade em determinado momento, o que, por sua vez, depende ou de uma capacidade de adaptação ou inovação imanente do investidor individual ou de planejamento estatal. A primeira alternativa, no entanto, estará orientada muito provavelmente por razões egoístas que, não necessariamente, deixam de gerar benefícios gerais. As decisões individuais dos investidores dependendo de cálculos um tanto quanto complexos envolvendo problemas relativos a prazos largos de geração de retornos normalmente diminuem a disposição para o investimento.
Naturalmente, as situações relativas à oferta e o papel do investidor compreendem o curso de relações econômicas dentro de um padrão de normalidade que não se aplica ao caso apreciado. Em face de uma crise, principalmente como a do novo coronavírus no Brasil, os comportamentos se veem transformados e suas variáveis explicativas, sobre as quais se impõe a exigência de uma ação, são modificadas de maneira que a curva de possibilidades de produção da economia se encontra alterada em sua combinação produtiva e deslocada para baixo como resultado de uma redução da quantidade dos bens produzidos e do emprego.
Isso ocorre porque a implementação de uma urgente e imperativa política sanitária de isolamento social ao restringir a mobilidade social força uma drástica diminuição da capacidade de consumir da sociedade, reduzindo o emprego e dificultando à população a realização de sua sobrevivência.
Nesse sentido, o Estado, tomando o modelo keynesiano, pode e deve lançar mão de disponibilização de crédito para o consumo com o objetivo de manter a sobrevivência dos indivíduos e, como consequência, manter a demanda da economia, ainda que em nível inferior ao de momento anterior.
Neste caso, o Estado deve fornecer crédito para a manutenção da atividade produtiva sob a forma de capital de giro para as empresas. Sob esse aspecto, no que tange ao investimento, a resposta mais imediata para o aumento da demanda da economia, seja pelo estímulo gerado para os investidores individuais, seja pela atuação direta do Estado, se realizaria com a concentração das atividades voltadas para os setores relacionados essencial e emergencialmente às necessidades de manutenção da sobrevivência. Uma resposta à necessidade de incremento à atividade produtiva ou de aumento da demanda geral da economia, com investimento real, só pode ser em prazo mais largo.
O Estado, principalmente em momentos de crise, como no caso atual, tem protagonismo indiscutível para sua superação. Quanto mais rápida e melhor ordenada sua atuação, mais efetivos serão seus resultados. Supondo que o Estado em regimes democráticos age para o bem comum da sociedade, sua atuação deve ser também pautada pela equidade.
Entretanto, a forma de satisfação das necessidades de consumo no Brasil tem encerrado uma discussão sobre a precedência na atuação do Estado relativamente à manutenção da existência ou a reprodução dessas condições, expressa como um reducionista dilema relativo à uma virtual contraposição, nos termos do tradicional modelo do fluxo circular da renda, entre o consumo das famílias e o das empresas, ou, em outra acepção, entre trabalho e capital. Fugindo aos termos teóricos até aqui utilizados, essa questão remete à uma necessária resposta lógica que, na perspectiva moral keynesiana, faça sentido.
Dadas as críticas condições de desigualdade econômica na sociedade brasileira, os trabalhadores compondo a maior parcela da população, com menores chances de fazerem frente à crise em pauta, devem ter prioridade na ação do Estado, com o atendimento do consumo básico e das medidas sanitárias necessárias a preservação de sua vida. Essa prerrogativa, inclusive, não se furta ao interesse dos empresários enquanto chefes de família. Como resultado, se desvanece o pseudo dilema sobre a atuação do Estado relativo à manutenção da renda dos trabalhadores ou do capital de giro das empresas. Trata-se de um problema de ordem temporal. Primeiro a vida e depois o emprego, pois como afirmava Keynes, a longo prazo todos estaremos mortos. Mas como se sabe, o Estado como superestrutura representativa das classes dominantes, tem seu papel definido pela dinâmica estabelecida entre as classes e suas frações, que transparece no comportamento dos grupos que constituem essa realidade.
No que se refere ao empresariado, o que se pode observar na crise do coronavírus no Brasil, e talvez também em outros países, é um posicionamento ambíguo no sentido da manifestação de sinais opostos. Parte do empresariado, tendo compreendido a dimensão do problema, tem reagido de forma a aceitar a precedência da ordem sanitária apoiando medidas nesse sentido e, realocando e redirecionando sua produção, tem mantido sua atividade produtiva e a relação com os trabalhadores de forma a garantir salários, consumo e, como consequência, a demanda agregada da economia, naturalmente, sem dispensar a atenção do Estado para com sua situação.
Por outro lado, parcela expressiva, talvez a maior desse grupo, tem se recusado a assumir semelhante posição. Bradando uma situação de asfixia terminal, advoga uma ação prioritária do Estado em sua defesa que, justificada pela salvação dos trabalhadores pela manutenção de seus empregos, propõe até a suspenção das medidas sanitárias recomendadas, expondo paradoxalmente aquele grupo ao coronavírus.
A explicação para esse quadro comportamental do empresariado brasileiro tem matiz variada e pode ser simplificada a partir de posições relativas à lógica e à moral. Pensando no comportamento de empresários ou empresas que se engajaram no processo de manutenção da vida e da atividade econômica, parece desnecessário dizer que se enquadram numa perspectiva pragmática, adequada à lógica utilitária que ampara estratégias mercadológicas relativas ou a novas oportunidades, ou à recuperação do nível de atividades anterior à crise ou puramente de ampliação deste quando da volta da vida econômica à normalidade. Sob esse aspecto, pode-se dizer que os vícios privados podem gerar benefícios gerais e se veem totalmente justificados.
No que tange ao outro grupo do empresariado, as respostas são um tanto mais complexas. O que se pode pensar do ponto de vista lógico é que, desprovido de uma real vocação empresarial, até como produto da formação do país e o consequente e recorrente desequilíbrio estrutural e conjuntural da economia brasileira, o grupo não apresenta capacidade de gestão compatível com as exigências do sistema econômico moderno.
De qualquer forma, na avaliação do comportamento do grupo de empresários que se recusa a assumir qualquer ônus por uma crise que acomete a sociedade em geral em que se insere e que se mobiliza no sentido de exigir uma proteção privilegiada do Estado, esquecendo-se que o risco é o que caracteriza sua atividade e contra ele deveria ter se precavido, sob o ponto de vista moral, não há qualquer chance de classificá-lo como virtuoso e menos ainda como promotor de benefícios para o bem geral. Essa confusão pode ser explicada pelo embaralhamento das ordens técnica e moral que se encerram na vida política brasileira, produzindo inclusive a tirania de ideias (COMTE-SPONVILLE, 2005).
Nessa mesma medida, uma outra parte da explicação sobre o momento da vida do país, mas que se estende à condição estrutural da sociedade brasileira, pode ser dada pela constatação de que os motivos que movem a ação ou inação do Estado resultam de seus compromissos com interesses políticos e econômicos de grupos específicos da sociedade. O que se deve destacar é que o atual governo brasileiro, ao se negar a agir ou a agir no sentido de corroborar a visão de grupos comprometidos com ações fundamentadas em ignorância e egoísmo e sem qualquer virtude, recusando sua função de promoção do bem estar da sociedade, além de se mostrar covarde, revela falta de sentido de justiça, sendo este um vício que se opõe absolutamente a virtudes tais como coragem, equidade, compaixão e generosidade, o que provavelmente não levará a bom termo a crise do coronavírus.
Excluídos desta breve reflexão aspectos e atores de outra natureza, é importante afirmar que seu entendimento poderia jogar uma melhor luz sobre o problema. Cabe lembrar, por exemplo, o relevante papel que organismos da sociedade civil tem assumido na busca de interlocução e mediação das necessidades dos diferentes grupos sociais brasileiros, particularmente das camadas de menor renda e dos cidadãos totalmente marginalizados. Aí se colocam várias ONGs de assistência social que, assumindo a função de mitigar o sofrimento daquele imenso contingente populacional, viabilizando o alcance das eventuais e limitadas medidas governamentais, poderiam ser objeto de uma ação concertada do Estado não só para a solução do problema imediato, mas para a retomada futura da economia de maneira a transformar a sociedade brasileira, tornando-a mais justa e desenvolvida.
De qualquer forma, ao se analisar a realidade brasileira na crise do novo coronavírus segundo postulados da filosofia econômica, pode-se concluir que o país tem enraizado comportamentos antitéticos no que se refere à moral que os orienta. Dentre eles se desataca por seu caráter absolutamente condenável o do atual governo brasileiro.
Joaquim C. Racy, economista, cientista político, mestre e doutor em História, é professor dos Programas de Mestrado Profissional em Economia e Mercados da Universidade Presbiteriana Mackenzie e de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP, coordenador no Núcleo de Acompanhamento da Conjuntura Econômica (NAEC) da UPM e vice-líder do Núcleo de Análise da Conjuntura Internacional (NACI) da PUC-SP.
Referências bibliográficas
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo. Ed: Martins Fontes, 1995.
______________________. O capitalismo é moral? São Paulo: Martins Fontes, 2005
KEYNES, John M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultura, 1970.
MANDEVILLE, Bernard. A fábula das abelhas: ou vícios privados, benefícios públicos. São Paulo: Ed. UNESP, 2017.
ROBINSON, Joan. Filosofia econômica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
SAMUELSON, Paul A. Introdução à análise econômica. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1952.
SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. 2ª. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.