A economia da sobrevivência
Práticas econômicas que apoiem o desenvolvimento, sem impactar no meio ambiente e em questões sociais, são possíveis? Será factível ressetar (reiniciar) a economia livrando-nos de suas inconsistências atuais, de sua voracidade insustentável e seus impactos globais?
A transformação da economia tem sido a longa jornada trilhada por setores mais progressistas da economia global. David Wheeler, do Centro de Desenvolvimento Global (GDC), já afirmava em 2008: “A ONU não pode declarar que as emissões de carbono estão criando uma emergência planetária e identificar uma miríade de opções de energia limpa, enquanto instituições afiliadas à ONU, como o Banco Mundial e o Grupo de Desenvolvimento Limpo, continuarem a subsidiar a produção de energia a carvão”.
As grandes corporações supragovernamentais continuam a manifestar esquizofrênicas divisões internas. Nos Estados nacionais ocorre o mesmo. No Brasil, Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia do Brasil, afirmou que pretende financiar o desenvolvimento do país a partir da exploração de combustíveis fósseis – e ainda utilizar a condenada técnica de “fracking”, proibida em muitos países desenvolvidos e até em regiões do Brasil.
A economia cresceu, ao longo dos séculos, à luz do desaconselhável exemplo de Midas, que a tudo transforma em commodities. Diante da época do Antropoceno, em que a escala das atividades da economia ultrapassam os limites das alterações aceitáveis do planeta, os governos, as corporações econômicas e a sociedade em geral estão sendo compelidos ao reset econômico para sua própria sobrevivência.
Há muitos antecedentes e relatos de percepções isoladas, ao longo especialmente do século XX, sobre severos impactos provocados por inadequações econômicas em escala planetária. Mas iniciativas supragovernamentais começaram a considerar esses fatos a partir do relatório “Os limites do crescimento” do Clube de Roma, em 1972.
Desde então, a ONU vem trilhando um longo caminho com o objetivo de transformar a economia global para estancar a sangria planetária. Estabelecer limites para a ação humana colocou em marcha as conferências globais das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizadas em Estocolmo (1972) e do Rio de Janeiro (1992). Seu resultado foi estabelecer os conceitos do Desenvolvimento Sustentável. O ponto de partida foi o documento Nosso Futuro Comum, em 1987, como resultado dos trabalhos da Comissão Brundtland, da ONU.
O relatório foi coordenado pela primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland, e influenciou o Brasil a consagrar o conceito de sustentabilidade no caput do Capítulo de Meio Ambiente da Constituição Federal, Art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Era um desafio necessário transformar a economia e foi preciso prover metodologia para internalizar o conceito de sustentabilidade nas instituições econômicas. Em 2004 as Nações Unidas e o anacrônico Banco Mundial, que ainda anda à deriva das pressões geopolíticas, reuniram empresas transnacionais de nove países para discutir sustentabilidade para corporações e agentes econômicos. O resultado conceitual estabeleceu os aspectos Environmental, Social and Governance (ESG).
Desde então, a governabilidade corporativa passou a contar com novo ideário para atuar sob as novas exigências do mundo ambiental contemporâneo, permitindo políticas de governança sob a ótica da ética e da sustentabilidade ambiental e social.
Era preciso também internalizar componentes de sustentabilidade ambiental no coração das teorias econômicas, o que exigiu intensa reflexão crítica. Desde 2008, o Pnuma iniciou debates sobre a Economia Verde, tema sacralizado em 2012 na Conferência Rio+20. A busca da ética econômico-ambiental e a exigência de um modelo de economia voltado à qualidade de vida da sociedade humana passaram então a buscar a eliminação de riscos ambientais e prevenir a escassez ecológica.
O forte arcabouço conceitual ambiental, que felizmente no Brasil foi implantado com a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente de 1981 (Lei 6938/1981), estruturou princípios para licenciamento e gestão ambiental. Mesmo depois de 43 anos, agentes econômicos continuam a financiar a devastação ambiental, como, por exemplo, projetos em áreas ilegalmente desmatadas do Cerrado e da Amazônia.
Há evidente desconhecimento sobre os conceitos mais precisos defendidos na linha do capital natural, onde a ineficácia da mensuração do PIB se torna clara. Por exemplo, quando se desmata a Amazônia, a contabilização de madeira extraída é abarcada como riqueza no PIB, mas não se considera a perda do patrimônio ambiental, nem dos remanescentes que então passam a se revestir de maior valia, diante de maior raridade dos elementos ecossistêmicos.
Ainda há o desafio de conter o greenwashing, as “mentirinhas” empresariais para embalar produtos não tão benéficos ao clima. A procuradora-geral do Estado de Nova York, Letitia James, processou em fevereiro de 2024 a multinacional de carnes JBS por fazer “representações abrangentes“ sobre neutralizar suas emissões nos próximos anos, mas não oferecer “nenhum plano viável”.
A estratégia de usar de maquiagem verde para atrair consumidores mais conscientes deve ser combatida. É preocupante que os casos de greenwashing estejam aumentando. O relatório “Tendências globais em litígios sobre mudanças climáticas: retrato de 2023”, do London School of Economics and Political Science, traz 26 casos de climate-washing registrados em 2022, comparados com 10 no ano de 2020.
Em 2015 a ONU estabeleceu os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma evolução dos conceitos da Agenda 21, criada a partir da Conferência Rio 92, iniciativa que se perdeu por falta de recursos. Hoje os ODS trazem metas estratificadas para a sustentabilidade ecológica, social e econômica, com prazo de atingimento para 2030. Os diferentes quesitos representam guias temáticas para setores empresariais e governos, proporcionando visão didática sobre as transformações necessárias.
Em que pese a evidente dificuldade de se proceder à transformação multisetorial proposta nos ODS para 2030, a iniciativa tem valores claros, seja por apontar com clareza aspectos a serem contemplados com políticas públicas, seja pela coragem de não propor metas sem prazos, evitando leniência e frouxidão institucional.
As cúpulas climáticas globais, especialmente após a Conferência de Paris de 2015 (COP21), apontam para a transição energética, principal requisito para eliminar os Gases Efeito Estufa (GEE), maiores causadores das mudanças climáticas.
O setor petrolífero continua reticente em abandonar o filão fóssil. Demonstra voracidade na recusa em admitir a eliminação dos fósseis, insistindo em adotar, nas resoluções, o termo diminuição. Para tanto, sinaliza com tecnologia inexistente de sequestro de carbono, que não apresenta possibilidade técnico-científica na escala que se faz necessária.
Para ganhar tempo e manter sua influência nos espaços de decisão, o setor fóssil passou a abocanhar a direção das conferências climáticas, empurrando-as seguidamente para países autoritários com características de petroestados como o Egito (COP27), Emirados Árabes Unidos (COP28) e Azerbaijão, que será sede da próxima COP29 no final deste ano.
Mesmo com raposas no galinheiro, manipulações e simulações, a economia da sustentabilidade ecológica passou a ser o conceito matricial para a economia de nossos tempos. Já em 2018, relatório do FTSE Russell, um dos principais fornecedores de índices do mercado de ações e dados associados, afirmava que “a economia verde vale agora tanto quanto o setor de combustíveis fósseis e oferece oportunidades de investimento mais significativas e seguras, apontando para um crescimento ainda mais significativo no futuro”.
A fundamentação para requisitos de governança focada em sustentabilidade ambiental e social foi reforçada com o apelo da urgência contida nos alertas científicos sobre o estado de emergência climática. Os eventos extremos são cada vez mais frequentes, assim como os alertas científicos divulgados pelo Painel Intergovernamental das Mudanças climáticas (IPCC) da ONU, especialmente no relatório síntese AR6, de 2023.
Com fundamentação científica irrefutável, instituições acadêmicas respeitadas mapeiam o avanço dos pontos de inflexão globais (tipping points), entre os quais se destaca o aquecimento global e seus efeitos adversos, que podem provocar efeito-cascata disparando “gatilhos” em diversos pontos ecossistêmicos frágeis: “São as ameaças mais graves para a humanidade…seu desencadeamento prejudicará gravemente os sistemas de suporte à vida do nosso planeta e ameaçará a estabilidade das nossas sociedades”, afirma o relatório do Instituto de Sistemas Globais da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Mas o momento atual demonstra que o ritmo da transformação é insuficiente e que o barco começou a fazer água. Os impactos são severos e os custos de reparação altíssimos. A National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) informou que, só nos Estados Unidos, em 2023, foram contabilizados prejuízos, de forma ainda parcial, de US$ 92,9 bilhões em razão de eventos extremos.
A humanidade, pela tendência inercial de atividades, não conseguirá manter o planeta dentro do aquecimento médio de 1,5º C até 2100. Países europeus como a França, de forma cautelar, começam a se preparar para a marca de aumento da temperatura em 3,5 ºC a 4 ºC até o final do século, tomando o pior cenário do IPCC como realista.
Essa realidade dramática impulsiona ainda mais a busca de soluções. A pergunta inquietante é se, diante do cenário que se desenha em função da emergência climática, as ações atuais e outras que poderão ser geradas em curto prazo serão suficientes para tapar o buraco que ameaça o barco.
Navegar é preciso e só sobrevive quem se adapta. Então, como potencializar as medidas na velocidade necessária para a transformação? Como reverter ou minimizar ao máximo as ameaças demonstradas pelos pontos de não retorno planetários e seu contínuo rompimento da capacidade de suporte ecossistêmico?
Talvez a conferência climática de Belém (COP30), que ocorrerá em 2025 no Brasil, possa agregar algumas respostas ao gigantesco desafio. Mas o Brasil deverá abrir espaço para a ciência e demais setores que representam elementos vitais de controle social, afastando subterfúgios nocivos das decisões impostas por conflitos de interesses protagonizados por petroestados e megaempresas fósseis.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
É preciso saber a diferença entre, preservar e conservar. Para que se tenha relevância no entendimento da matéria.