Carlos Nobre: se continuarmos com emissões, fenômenos climáticos serão mais extremos
O cientista explica a lógica e a influência do aquecimento global nas ondas de calor recentes e adianta planos do Brasil para a COP28
No fim do inverno de 2023, as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte do Brasil foram afetada por um fenômeno climático conhecido como “onda de calor”. As temperaturas, muitas vezes beirando ou até ultrapassando os 40 °C, eram incomuns para a estação e para os locais, pelo menos até agora. Segundo o cientista e climatologista brasileiro Carlos Nobre, as ondas de calor e diversos outros fenômenos climáticos extremos, como as chuvas no Rio Grande do Sul ou as secas na Amazônia, têm relação com a crise climática, que torna esses eventos mais extremos e mais frequentes.
Nobre é um dos principais nomes brasileiros pesquisando as mudanças climáticas provocadas pelo homem desde a década de 1980. O cientista foi um dos autores do Quarto Relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), e, junto com o grupo, recebeu o Prêmio Nobel da Paz por esse trabalho.
Atualmente, o professor Carlos Nobre continua se dedicando ao estudo do clima e da Floresta Amazônica, pensando soluções práticas para a crise que estamos vivendo, como seu projeto Arcos da Restauração Florestal, para o qual ele tentará encontrar financiadores com o BNDES na COP28, que acontece em Dubai entre 30 de novembro e 12 de dezembro.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Carlos Nobre explica a formação de ondas de calor e outros fenômenos climáticos extremos, deixa claro quem mais sofre com e quem mais contribui para as mudanças climáticas e apresenta possibilidades de ação para combater a crise.
Nove capitais do Brasil registraram suas temperaturas máximas do ano, até então, durante o inverno. Temperaturas de mais de 40 °C na estação que deveria ser a mais fria aconteceram por causa das mudanças climáticas?
Tem muito a ver com o fato de que nós estamos vivendo um El Niño, que está se tornando cada dia mais forte. Mesmo nessas semanas de máximo de temperaturas em boa parte do Brasil, das ondas de calor, isso tem a ver com o fato que o El Niño induziu que as frentes frias ficassem estacionadas no Sul do Brasil, e ali ocorreram tempestades muito severas que causaram inundações em bacias hidrográficas, principalmente no rio Itaquari, e desastres naturais que levaram à morte de dezenas de pessoas e, portanto, não houve um fenômeno natural das frentes frias passarem, subirem e chegarem até o Centro-Oeste, chegarem até o Sudeste e, às vezes, quando isso acontece, o que acontece? Meteorologicamente falando, você gerou uma bolha de ar quente.
Então, essa região toda que eu mencionei, inclusive o sul da Amazônia, ficou com uma pressão muito alta. Quando tem pressão muito alta, você tem o movimento do ar descendo. Quando o ar desce, ele traz mais calor, o ar fica quente e esse ar descendo impede a formação de nuvens. Então, fica um ambiente totalmente aberto, o ar descendente aquece a superfície, não forma nuvem, tem mais sol e aí essa temperatura muito alta do solo faz rapidamente a água do solo evaporar. Quando não tem muita água no solo, o solo fica seco, então aquela energia solar aquece mais o ar, aumenta mais a temperatura. Então, essas são as razões meteorológicas de uma onda de calor.
Isso é um fenômeno que acontece há centenas de milhares de anos, só que o que nós estamos vendo é que as mudanças climáticas estão fazendo esses eventos se tornarem mais extremos e mais comuns.
No mundo inteirinho nós estamos tendo recordes desses fenômenos climáticos extremos sendo quebrados e isso tem tudo a ver com as mudanças climáticas, com o fato de que você está com o planeta 1,2 °C, esse ano com o El Niño deve até chegar 1,3 °C, mais quente. Nós tivemos os três meses de junho, julho e agosto mais quentes do registro histórico em todo o planeta.
A expressão “aquecimento global” nos leva a pensar que as mudanças climáticas causadas pelo homem só são responsáveis por aumentos de temperatura. E ondas de frio e chuvas, como as que acometeram o Rio Grande do Sul, têm relação com a crise climática?
De fato, por mais incrível que pareça, tem. Se você computar o número de dias frios por ano no planeta, [o aquecimento global] diminui isso. O planeta inteiro está aquecendo. Então, como se explica que na Europa, nos Estados Unidos, aqui na América do Sul, a gente teve recorde de frio?
Lá no Polo Norte e no Polo Sul, sempre existiu o jato polar. É um jato que fica circulando em volta do polo e ele segura todo aquele ar super frio em cima do polo. Ele não permite que aquele ar saia dali. O aquecimento do Oceano Norte, do Oceano Ártico e do Oceano Austral, o Ártico lá no Polo Norte, o Austral aqui no Polo Sul, ele fez com que o jato, que sempre estava muito circular, começasse a girar como uma senoide.
Então, o que aconteceu? Nesse lugar que ele liberou o ar frio, o ar frio chega até latitudes médias e, às vezes, até subtropicais. Dois anos atrás, nós tivemos o recorde de frio no Centro-Oeste do Brasil, numa frente fria que veio e trouxe esse ar frio. E aí, o que acontece? Ele gira como se fosse uma senoide. Aí, o ar frio da Antártida vem até a América do Sul. No outro lado da senoide, o ar quente sai das latitudes médias subtropicais e chega até a Antártida.
No verão do ano passado, nós tivemos o recorde de calor na Antártida. A temperatura chegou a 20 graus, nunca tinha chegado. Então, por mais que isso seja raro, o número de dias frios no mundo está diminuindo porque o planeta todo está aquecendo, mas essa perturbação do jato polar fez com que o ar frio preso lá no Polo Norte e no Polo Sul encontre espaço para sair e chegar até latitudes médias, às vezes até latitudes subtropicais.
No Brasil, quem mais sofre com esses eventos climáticos extremos? Qual é a relação entre desigualdade social e mudanças climáticas?
O Brasil tem 2 milhões de pessoas vivendo em áreas de risco de deslizamentos e inundações. Se você perguntar quantos desses 2 milhões são pessoas de alta renda? Quase zero. Mais de 95% são pobres, são vulneráveis. Isso acontece no mundo inteiro: os eventos extremos afetam muito mais os mais vulneráveis.
Por exemplo, no verão do ano passado um ciclone tropical atingiu o Paquistão e matou mais de 3.500 pessoas. Foi um recorde de intensidade do furacão e esses matam muitos vulneráveis. Quando a gente olha ondas de calor, aí já muda um pouco, porque a onda de calor afeta a todos, e afeta muitos idosos. Ainda assim, mata mais os idosos, vulneráveis, os mais pobres, mas na Europa do ano passado, que teve um recorde de calor, morreram 61 mil pessoas com mortes associadas à onda de calor. Aí não é só pobre que morre; você tem idosos, até com média e alta renda, que também foram vítimas.
É possível responsabilizar algum grupo específico por essa transformação no clima? Se sim, quem são os principais responsáveis pelas mudanças climáticas?
Os países mais ricos respondem por 80% das emissões históricas, e 10% da população mais rica é responsável por mais de 60% das emissões. Então, se você pegar um continente como a África, mais de um bilhão de habitantes emitiram menos de 4% das emissões globais, mas esses mais de um bilhão de habitantes da África são os que mais sofrem com os extremos climáticos. Não há dúvida que os países que mais emitiram gás, os países mais ricos são os mais responsáveis.
Se continuarmos com nossas emissões de gases estufa como estão, sem mudar nada, o que vai acontecer? Como serão os próximos anos numa Terra cada dia mais aquecida?
Se nós continuarmos com esse nível de emissões, atingiremos o limite do Acordo de Paris, que é não deixar a temperatura global passar de 1,5°C, em menos de 10 anos. Com o El Niño deste ano, que tem tudo para ser forte, nós provavelmente chegaremos já perto de 1,3°C. Em 2015-2016, que foi o ano com o El Niño mais forte do registro histórico, a temperatura média do planeta chegou a 1,26°C. No ano passado, ela chegou a 1,15°C. Agora, com o El Niño deste ano, pode chegar a 1,3°C. E, se nós continuarmos com as emissões, em 10 anos, nós atingiremos 1,5°C como a temperatura que não volta mais.
Então, se todos esses eventos extremos já estão acontecendo com a temperatura 1,2°C mais quente em relação à temperatura do final do século XIX, esses 0,3°C mais quentes tornam esses fenômenos extremos mais frequentes.
Nós temos que realmente atuar. Lógico, tem o enorme desafio de reduzir as emissões, mas tem também um gigantesco desafio de tornar as populações muito mais resilientes a esses eventos extremos todos. Ondas de calor, secas, chuvas intensas, incêndios florestais, fenômenos que geram um impacto econômico muito grande em todo o planeta.
Muitos países da Europa bateram recordes de ondas de calor em julho e agosto, mas a gente já começou a ver uma preocupação muito maior de salvar os idosos de morrerem, como foi em 2022. Então, já são ações governamentais de proteger as populações vulneráveis. Precisamos começar a ter muitas ações. A gente viu, no verão europeu esse ano, órgãos públicos e prefeituras abrindo espaços com ar-condicionado, para essas pessoas vulneráveis, principalmente os idosos e bebês até um ano de idade.
No Brasil, por exemplo, como eu falei, tem mais de 2 milhões de pessoas morando em áreas de altíssimo risco de deslizamentos e inundações, a grande maioria, acima de 95%, populações muito pobres no Brasil. Então, o que é adaptação? É tirar essas pessoas dessas áreas. Você tem que achar locais, tem que construir novas habitações, nós estamos falando de investimentos de centenas de bilhões de reais para salvar e proteger a vida desses milhões de brasileiros.
O que os governos podem fazer, em termos de políticas públicas, para diminuir emissões e retardar o aquecimento global? Qual a importância de, como você costuma falar, manter a floresta Amazônica “em pé”?
Olha, a Floresta Amazônica armazena de 150 a 200 bilhões de toneladas de carbono. Então, se nós perdermos a floresta, vamos jogar todo esse carbono na atmosfera, que vai virar no mínimo umas 250 bilhões de toneladas de gás carbônico. Isso praticamente torna impossível atingir as metas do Acordo de Paris de 1,5 °C. Só para te dar uma ideia, para atingir as metas do Acordo de Paris, a gente só pode emitir, para sempre, 400 bilhões de toneladas de gás carbônico. Só a Amazônia jogaria 250 bilhões na atmosfera.
O permafrost é aquele solo do Polo Norte, na Sibéria, no norte do Canadá e Alasca, que está há milhões e milhões de anos congelado. Então, no processo de congelamento, o permafrost retém grande quantidade de carbono e de metano. O metano é um gás poderosíssimo de aquecimento global. Então, se você passar de 1,5 °C [de aquecimento], chegar a 2 °C, o permafrost já começa a ser derretido, e aí você libera esse gás carbônico e esse metano. Alguns cálculos já foram feitos, e se a temperatura chegar a 2 graus, você libera mais de 150 bilhões de toneladas [de gás carbônico] do permafrost. Mais a Amazônia, se a temperatura passar de 2 °C, esses dois já jogam 400 bilhões de toneladas na atmosfera. Só isso já é o suficiente para 0,4 °C de aquecimento. Não tem jeito de cair em 1,5 °C. Por quê? Porque 70% das emissões vêm da queima de combustíveis fósseis. Nós não estamos caminhando na velocidade necessária da redução da queima de combustíveis fósseis. O recorde de geração de gás e efeito estufa por combustíveis fósseis foi no ano passado, e tudo leva a crer que esse ano vai bater o recorde.
E as estimativas são que [a queima de combustíveis fósseis] vai continuar aumentando até 2025, mas o que os países concordaram de fazer era não deixar a temperatura passar de 1,5 °C. Para isso, precisavam reduzir quase 50% das emissões até 2030 e depois zerar as emissões líquidas até 2050. Nós não estamos indo nessa direção.
Eu sempre falo da Amazônia porque, no Brasil, 50% das emissões vem do desmatamento e 25% da agricultura. Já em outros países, como a China, mais de 80% das emissões é [proveniente de] queima de combustíveis fósseis. O Brasil tem um enorme desafio, mas, na verdade, o Brasil pode atingir esses objetivos antes da maioria dos países. O Brasil é o quinto maior emissor. A política do governo federal e também até de alguns governos estaduais, como do Pará, é zerar o desmatamento antes de 2030.
Cerca de 18% das nossas emissões é [proveniente de] queima de combustíveis fósseis, e a gente pode rapidamente caminhar para energias renováveis. O Brasil tem um dos maiores potenciais em energia solar, eólica, até mesmo de hidrogênio verde, então o Brasil realmente pode reduzir em 50% as emissões até 2030, e aí criar grandes projetos de restauração florestal.
Nós lançamos na COP27 uma ideia de um projeto de restauração florestal, chamado de Arcos de Restauração Florestal em toda a Amazônia Brasileira. Todo o sul da Amazônia está muito próximo de um ponto de não retorno, de savanização, então a gente plantar e deixar a floresta crescer naturalmente é muito, muito importante.
Grandes projetos de restauração florestal podem caminhar para uma agricultura de baixo carbono, agricultura regenerativa, muito produtiva, ela faz todo sentido, mas a velocidade com que os agricultores brasileiros caminham para a agricultura regenerativa ainda é muito lenta, o governo brasileiro precisaria investir muito mais também na conversão para essa agricultura regenerativa.
Na COP27, você apresentou um projeto de restauração de pelo menos 50 milhões de hectares da floresta Amazônica. Qual a importância da restauração e de projetos de conservação já realizados por povos originários e comunidades tradicionais para o combate às mudanças climáticas?
Em todos os países amazônicos, os territórios indígenas e as unidades de conservação, que compreendem mais de 50% da floresta, são o que protege a floresta. Os povos indígenas, comunidades locais, quilombolas e ribeirinhos são os que têm mantido a floresta viva, a Floresta Amazônica viva. É muito importante que isso seja expandido. Inclusive, no governofederal atual, já se demarcou novas comunidades e novos territórios indígenas. Tem que acelerar muito isso: por exemplo, na Amazônia brasileira tem mais de 500 mil quilômetros quadrados, isso é duas vezes o estado de São Paulo, de terras públicas. Então tem que tomar muito cuidado para não serem invadidas, griladas, roubadas, e criar sistemas sustentáveis, mais territórios indígenas, unidades de conservação, e também sistemas em que as populações locais mantenham a floresta.
Nós chamamos isso de sistemas agroflorestais, que tem bastante valor econômico. O governo tem que investir muito, muitas centenas de bilhões de reais nessa nova bioeconomia para a Amazônia, e também, idealmente, e essa discussão voltou agora ao governo federal, criar um pagamento de serviços ambientais. Todas essas populações que mantêm os seus biomas e as suas florestas seriam remuneradas por manter esses serviços ecossistêmicos.
Eu sou do Conselho de Administração do BNDES, e levei a ideia de fazer um grande projeto, os Arcos da Restauração Florestal. O BNDES vai lá na COP28 lançar essas ideias e buscar financiamentos. Nós estamos falando aí de uns 30 bilhões de dólares, R$ 150 bilhões, para fazer o maior projeto de restauração florestal do mundo na Amazônia.
Agora o governo brasileiro vai lançar essas ideias e buscar mega financiadores para conseguir com recursos, e aí, sim, tudo o que for área desmatada, que é terra pública, o governo vai lá e restaura. Quando é propriedade privada, tem que trazer o pecuarista, o agricultor, para restaurar a parte. A Amazônia brasileira já foi desmatada 840 mil km². Desses, uns 160 mil km² a pecuária abandonou, a flora secundária está crescendo, mas mais de 650 mil km² são pastagens para a pecuária. Metade disso é pastagem muito degradada, então a prática da pecuária regenerativa será usada para restaurar essas pastagens degradadas.
Os países amazônicos têm que investir muito em restauração florestal. Está surgindo no mundo o mercado de carbono, e a floresta secundária na Amazônia cresce muito rápido e remove gás carbônico da atmosfera, então esse mercado global de carbono pagaria os investimentos que são feitos para a restauração florestal. A Amazônia poderia contribuir muito para combater a emergência climática, mas é lógico que inicialmente tem que se fazer grandes investimentos para isso.
Eduardo Lima faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.