Economia solidária 2
Existe um número considerável de organizações dirigidas por trabalhadores que não operam sempre em micro-escala. A tese segundo a qual as cooperativas estão fadadas à degeneração e a se converterem em empresas capitalistas precisa ser verificada, e não admitida como uma fatalidade
Embora o debate sobre economia solidária seja salutar, parte das teses correntes baseia-se mais em convicções intelectuais arraigadas do que em fatos, às vezes conhecidos superficialmente. Discute-se muito, mas pouco se problematiza sobre os dados objetivos.
Poderia ser diferente. Em universidades e centros de pesquisa aparecem, a cada mês, novas investigações sobre pormenores dessas experiências. Tem-se também, desde 2007, a ampla base de informações gerada pelo primeiro Mapeamento Nacional da Economia Solidária: 22 mil empreendimentos foram identificados e caracterizados em seus aspectos econômicos, sociais e políticos.
Embora seja um levantamento parcial, os dados deixam para trás algumas idéias preconcebidas. Eles indicam que há um número considerável de organizações econômicas efetivamente dirigidas por trabalhadores, que se associam livremente e cooperam entre si, algo bem distinto do fenômeno das cooperativas de fachada e de outras estratégias patronais de aviltamento do trabalho. Além disso, o porte e os resultados econômicos de boa parte dessas organizações demonstram que não se trata necessariamente de uma economia de micro-escala, efêmera e limitada a estratégias de subsistência. Nada indica que a taxa de mortalidade dos projetos solidários seja igual ou superior àquela das empresas convencionais. Empreendimentos com cinco a dez anos de operação são, em geral, mais robustos, não somente do ponto de vista econômico, mas também da gestão democrática. A tese segundo a qual as empresas cooperativas e autogestionárias estão fadadas à degeneração e se convertem em empresas capitalistas, precisa, portanto, ser verificada, e não aceita como uma fatalidade.
Ao contrário do que se pensa, a economia solidária não é uma simples resposta ao desemprego, inteiramente dependente da dinâmica do mercado de trabalho. Ela se explica por um conjunto de circunstâncias e de motivações dos trabalhadores, tais como o valor que atribuem à reciprocidade comunitária e a opções de trabalho que os liberem do jugo direto das relações assalariadas. Curiosamente, a natureza alienante delas é esquecida por notáveis sociólogos, que desdenham a economia solidária por sua incapacidade de garantir os mesmos direitos da “carteira assinada”. Como se os trabalhadores da economia solidária pertencessem à fatia cada vez mais reduzida do mercado de trabalho formal e abrissem mão desse direito; como se hoje tais garantias não fossem quase uma quimera e um esteio da profunda desigualdade de classe que sustenta a ordem burguesa.
As relações baseadas na cooperação e na autogestão tampouco são um mar pacífico. Funcionam em laboratórios, micro-totalidades em que surgem novas contradições. Entre elas, o mister de equacionar interesses individuais e coletivos e de estabelecer estratégias coerentes com base em decisões consensuais, o que dá certa razão a quem aponta os maiores “custos de transação” das organizações com sistemas descentralizados de decisão. A prática concreta dos empreendimentos solidários põe em xeque as teses mais radicais em defesa da autogestão e da supressão de toda forma de divisão do trabalho, que requerem indivíduos igualitaristas, multifuncionais e com plena racionalidade comunicativa.
Da mesma forma, a economia solidária não serve de argumento para quem propugne que o advento de uma ordem anticapitalista, superior na escala da civilização, é uma inevitabilidade. Essa teleologia socialista, na América Latina com raízes também na mística evangélica de libertação, alimenta um utopismo fora das condições de nossa época. Termina impondo à economia solidária compromissos que ela não tem condições de cumprir e impede que se veja o essencial: a árdua luta dos pobres por segurança, liberdade e dignidade, na qual apostam em seu lastro de experiências e buscam protagonizar sistemas de vida inconciliáveis com o primado do interesse próprio e com a instrumentalização desumanizante dos sujeitos do trabalho.
*Luiz Inácio Gaiger é doutor em Sociologia da Religião e dos Movimentos Sociais pela Université Catholique de Louvain e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.