Edgard Zanette fala sobre escrita de “Café com Caxiri”, romance que atravessa fronteiras e questiona desigualdades
Radicado entre Paraná e Roraima, o escritor encara de frente a complexidade de um Brasil plural enquanto mescla reflexões sobre política e filosofia
Mesclando literatura e filosofia, o escritor e professor Edgard Zanette apresenta seu mais novo romance, Café com Caxiri, publicado pela Editora Labrador. A obra aborda temas como identidade, memória, alienação parental e luta de classes. No livro, acompanhamos a trajetória de João, um jovem criado em Curitiba pela avó, uma empregada doméstica de ascendência indígena. Invisibilizado pela pobreza e marcado por um passado fragmentado, ele vê sua vida mudar radicalmente ao descobrir um segredo familiar que o leva a uma jornada rumo ao Norte do Brasil. O deslocamento físico e emocional do protagonista torna-se o fio condutor de uma história que reflete sobre pertencimento, desigualdade e as marcas da exclusão social.

Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Edgard Zanette é um escritor que transita entre Paraná e Roraima, trazendo para sua obra essa vivência plural. Além de Café com Caxiri, publicou o romance Assassinato no Monte Roraima (2023) e os livros Aprenda Xadrez com os Filósofos (2022) e Ceticismo e Subjetividade em Descartes (2015). Também é Campeão Brasileiro de Xadrez Blitz (2022), e vê no jogo uma metáfora para a vida e para a literatura. Influenciado por pensadores como Platão, Montaigne e Descartes, e por escritores como Machado de Assis, Hemingway e Umberto Eco, Zanette constrói uma obra que atravessa os limites entre filosofia e ficção.

Na entrevista abaixo, o escritor fala sobre o processo de escrita do livro e as influências literárias e filosóficas que compõem a obra.
Café com Caxiri aborda diferentes temas, como as relações familiares, a luta de classes, a alienação parental, a filosofia e o regionalismo. O que te motivou a escolher esses temas?
Eu desejava escrever um romance que atravessasse o Brasil, abordando a relação Sul/Norte a partir dos temas: amor, filosofia, feminismo, machismo, alienação parental, luta de classes, bullying, preconceito político e regionalismo. Café com Caxiri é uma obra multifacetada, abordando aspectos políticos, sensibilidades românticas e reflexões filosóficas. A obra dialoga com Agostinho de Hipona, ponderando sobre uma questão clássica: “o que é o tempo?”
Como foi conciliar o seu trabalho como professor e a escrita do livro?
Por um ano e meio me dediquei à escrita do livro. Foi necessário parar e recomeçar diversas vezes, pois o meu trabalho como professor abranda e se intensifica em certas épocas, então, eu seguia escrevendo ao ritmo que era permitido. Porém, chega um momento no qual você se envolve emocionalmente com o livro e para de dormir, e pensa o tempo todo nos temas e problemas da obra. Esse sprint define o livro e faz com que ele finalize diante da angústia que passamos com as peças do quebra-cabeça colocadas.
Em que momento você sentiu que realmente tinha chegado ao ponto certo?
Eu vejo a escrita de um livro como um mosaico, que é produzido por milhares de pecinhas, e essas peças, como um quebra-cabeças indefinido, é um jogo no qual o escritor(a) precisa saber jogar, ter paciência e curtir o processo. Há muita cegueira para um novo escritor, porque oscilamos em achar que o livro está muito bom ou que está péssimo. Assim, pegar e largar o livro faz parte do jogo, e ter um diálogo com uma boa leitura crítica, ajuda muito a sair dos próprios pré-conceitos. O livro vai se desenhando e vamos nos dando conta do que realmente estamos fazendo, se o livro ficará muito bom, bom, ou um livro que deixa a desejar. É claro que nunca estamos satisfeitos, ao menos eu sou perfeccionista e passo meses trancado escrevendo e revisando, saindo bem pouco. Isso é bom, porque essa “caverna”, nossa caverna, é um mundo gostoso de viver. Cada escritor(a) precisa de sua própria caverna, seu canto, no qual ele pode ler, pensar, escrever, rabiscar, digitar, colocar papéis na parede, e juntar um monte de livros, cadernos, lápis, canetas e fazer sua bagunça produtiva.
Seu livro fala sobre deslocamentos, sobre tempos que se entrelaçam, sobre laços familiares que se refazem. Existe alguma reflexão específica que você gostaria que o leitor carregasse depois da leitura?
Famílias não são roteiros, não existem receitas para se alcançar a felicidade: sempre haverá ausências, rupturas, rasgões e remendos. Gosto de pensar sobre os deslocamentos geográficos, que chacoalham nossas supostas verdades. Para um brasileiro, é possível “ser do norte” e “ser do sul”? Em um mundo que exige flexibilidade, a ideia de sermos cosmopolitas, cidadãos do mundo, parece explodir as fronteiras regionais, porém, essa ideia é ilusória. Cada região do Brasil marca o nosso ser. Nosso país é muito especial, e esse livro aborda o encanto das descobertas regionais, a ideia de que nós estamos em constante construção, e o tempo, um problema filosófico clássico desde Agostinho de Hipona, está presente em toda jornada humana. Uma verdadeira literatura latino-americana é política e regional, porém, a partir de um regionalismo aberto.
O livro traz personagens vivos que manifestam seus conflitos segundo questões filosóficas clássicas e outras atuais. A velha questão: “o que é o tempo?” está na obra do começo ao fim, em uma abordagem literária que discute a filosofia de Santo Agostinho. No entanto, também temos outras questões interessantes, como a problemática da alienação parental, que é um assunto polêmico que traz muitos transtornos às novas famílias que se constituem a partir da geração baby boomer.
Escrever um livro exige entrega – noites em claro, uma espécie de obsessão pelo texto. Como essa experiência impactou você?
Toda escrita de um livro nos transforma, até porque doamos um bom pedaço da nossa vida para a elaboração da obra. Eu mergulho na escrita, fico sem dormir, reflito o tempo todo em como melhorar e modificar o texto, fico pensando nos erros e em como posso superá-los, então, escrever é se transformar no ato da escrita. Escrever é uma atitude transgressora e corajosa, porque um pouco de você é jogado no texto, mas claro, em uma ficção, a gente cria personagens que ganham vida e eu adoro isso, incorporar os personagens, e colocar em seus diálogos e em suas atitudes, ideias que são provocadoras. Minha forma de escrever é incômoda, porque me pauto na “balança cética”, tal qual os filósofos céticos gregos sugerem. Então, a narração vai sendo moldada a partir dos personagens, são eles que desenham a história, eles são vivos e autônomos. Os personagens são livres, estão “corporificados” na obra, são pessoas que imaginamos e criamos fantasias sobre elas, e desenhamos um mundo novo em nossas cabeças.
Você vê a literatura como um refúgio para a imaginação?
O leitor é ativo, eu gosto dessa ideia, e eu acredito no poder da literatura. E, mesmo que eu ame o cinema, não penso que ele seja uma arte ao nível da literatura, pois o cinema está um degrauzinho abaixo, uma vez que ele nos torna um pouco preguiçosos e os personagens têm rostos e corpos, as cenas são vívidas e entregues aos nossos olhos e as palavras têm sons, mas na literatura não. No mundo literário cada leitor(a) precisa se esforçar e se entregar a imaginar e construir, em sua própria mente, em sua subjetividade, o que o texto provoca. Em uma sociedade cercada de telas, a leitura nos obriga a pensar e a imaginar bem mais que no cinema. É claro que eu amo o cinema e tenho cenas que eu adoro e estão marcadas em mim, como a do filme O poderoso chefão, mencionada no livro. No entanto, quando li o livro escrito por Mario Puzo, fui obrigado a imaginar aqueles criminosos de origem italiana que emigraram aos Estados Unidos e suas reuniões mafiosas e familiares. Então, é mais difícil imaginar, e é por isso que eu defendo: a literatura é resistência!
Você já navegou por diferentes gêneros e temas em seus livros anteriores. O que Café com Caxiri tem que os outros não tinham?
Ceticismo e Subjetividade em Descartes é o livro que me formou, porque ele foi fruto do meu Mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Foi o primeiro laboratório sério de escrita que eu realizei, na área de Filosofia. Depois, Aprenda Xadrez com os Filósofos me levou a navegar por três eixos bem difíceis de relacionar: o xadrez, a literatura e a filosofia. Por fim, meu primeiro livro de literatura, embora com as marcas do xadrez e da filosofia nele, foi o romance de aventuras, Assassinato no Monte Roraima. Algumas ideias e assuntos que toquei de maneira bem leve anteriormente, eu queria aprofundar em Café com Caxiri. Meu desejo era desenhar meu estilo em uma “literatura filosófica”, mas sem ficar repetindo os filósofos, mas debatendo com eles, porque gosto da ideia de que a literatura e a filosofia são irmãs siamesas, e penso que a ruptura grega entre literatura e filosofia, é uma ilusão. A literatura está presente no texto filosófico, mas muitas vezes negamos que a literatura seja filosófica. Em romances, nos romances que eu gosto de ler e agora nos romances que estou escrevendo, a filosofia está presente, e os personagens navegam em ideias e questões, tanto nos problemas clássicos, como em problemas atuais. Não podemos negar totalmente os modismos, porque eles manifestam os debates atuais, porém, também devemos evitar o isolamento no passado, de uma literatura esgotada, cansada e arcaica, fechada em uma anterioridade sempre viva, porém, desgastada pelo tempo, e que precisa se atualizar, então, é nesse cruzamento entre passado e presente que eu me coloco como escritor.
Sua literatura dialoga profundamente com a filosofia. Como você equilibra essa relação?
Platão escrevia em diálogos, unindo o estilo literário ao filosófico. Umberto Eco consegue discutir vários assuntos dentro de uma mesma obra. Por exemplo, O nome da rosa é um romance, um debate sobre o problema filosófico dos universais, um debate sobre semiótica e uma discussão profunda sobre a cristandade. Essa capacidade de uma obra ser muitas ao mesmo tempo me fascina. Aprenda xadrez com os filósofos foi o primeiro livro que escrevi me colocando nesse grupo da “literatura filosófica”. Depois, em Assassinato no Monte Roraima eu me desafiei a escrever um romance de aventuras. Então, agora no livro Café com Caxiri me permiti escrever mais laudas e aprofundar os debates propostos. Com tanta boa literatura produzida, cada lauda escrita deve ser o convite para a próxima, porque o leitor tem muitas opiniões e pode te abandonar e procurar algum best seller, e você é apenas um “João-ninguém” dando braçadas em um mar tempestuoso, procurando ser escutado e abraçado pelo mundo da literatura. Quem ama a literatura quer ter suas obras lidas e comentadas, e sonha em participar de debates e fazer da literatura um instrumento de conscientização e libertação.
Você menciona escritores e filósofos que marcaram sua trajetória. Quem, de fato, te fez querer escrever? E quem esteve presente, de alguma forma, enquanto Café com Caxiri ganhava forma?
Por muito tempo me dediquei a estudar e a jogar xadrez, e estas obras sobre o xadrez me ajudaram a me formar como leitor. Como professor e pesquisador de Filosofia, sempre olhei com desconfiança a separação entre o filosófico e o literário. De qualquer forma, Platão, Aristóteles, Agostinho de Hipona, Montaigne e Descartes são os meus filósofos prediletos. Na literatura admiro Ernest Hemingway, por sua capacidade de síntese, Machado de Assis por sua inigualável ironia cética, e Umberto Eco por ser o grande escritor que conseguiu relacionar Filosofia e Literatura de uma maneira brilhante e inovadora.
Seus personagens ganham vida própria dentro do livro. Em que momento, durante o processo de escrita, você percebe que não está mais no controle da história?
Acredito que a literatura é uma forma de diálogo. Escrevo pensando no leitor, na experiência dele, de como posso instigar e provocar. Porém, é dificílimo esse desprendimento, porque tenho opiniões e uma leitura de mundo. Então, tento me transformar em outro(a) no ato da leitura, porque os personagens são criados, desenhados e ganham vida própria. Chega um momento na escrita do livro no qual você precisa entender os personagens, porque eles já estão ali, possuem uma história pregressa, um perfil, um modo de ser e de pensar. A história de uma escrita caótica é besteira, sempre existe organização e planejamento, mesmo que espontâneo. É claro que alguns escritores desenham o roteiro e escrevem suas obras de maneira monástica, eu não faço dessa forma. O ritmo da escrita vai se alterando conforme meus dias e os problemas da vida, do meu cotidiano. Se eu tenho tempo, escrevo e leio bastante, porém, se o trabalho me consome, a escrita é mais lenta.
Você tem um ritmo próprio de escrita, que depende dos seus dias e do seu cotidiano. Existe algum momento ou ritual que sempre te ajuda a entrar no estado de criação?
Minha meta é ler um pouquinho todos os dias, e ler muito quando tenho tempo. Meu perfil é matutino. Aprecio acordar cedo, tomar um bom café da manhã e me sentar para ler e escrever. Gostaria de ter mais tempo para a escrita, eu adoro ser professor e escritor, mas conciliar as duas atividades é bem difícil, porque escrever exige tempo e dedicação.
Café com Caxiri está pronto e agora segue para os leitores. Mas, e você? Já sente o chamado de um novo livro, ou ainda está deixando que as ideias decantem?
Estou animado para divulgar Café com Caxiri, meu novo romance. Alguns temas tratados nele são polêmicos. A relação entre o norte e o sul do Brasil traz questões essenciais para uma compreensão abrangente e política do nosso país. Assim que “surgir um novo romance na minha cabeça”, um novo projeto começará. Tenho alguns temas, algumas ideias, mas ainda não desenhei um novo romance, até porque estou envolvido com a divulgação da última obra escrita.
Veriana Ribeiro é jornalista e escritora acreana com mais de 15 anos de experiência na área da comunicação, formada pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou o livro Coletânea dos Amores Partidos (autopublicação, 2021) e participou da coletânea Antes que eu me esqueça \ 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (Quintal Edições, 2021), além de escrever projetos literários independentes como zines e newsletters.