Educação na redoma
Criticada por pedagogos, a escola em domicílio começa a chamar atenção nos EUA. Mais de 2 milhões de famílias já aderiram. Para os pais, a transmissão de valores considerados equivocados e o perigo das “más influências” são motivos suficientes para retirar as crianças de um convívio social mais amplo
“Eu nunca deixei a minha escolarização prejudicar minha educação”
Mark Twain
Em Ohio, estado determinante para a reeleição de George W. Bush, bate o coração da América profunda. Da América que sofre com a crise econômica e vê prosperar a ideologia conservadora num terreno antes fértil para a esquerda1. Em um de seus rincões, o vale mineiro próximo ao rio Hocking, está o barracão da família Tompkins. A construção chama a atenção por suas paredes, repletas de centenas de livros. Mesmo sem um quadro-negro, essa é uma entre milhares de salas de aula privadas que existem nos Estados Unidos. Nessa homeschooling, a escola em domicílio, os próprios pais lecionam para os filhos.
Perto das prateleiras da biblioteca caseira, dois computadores estão conectados à internet banda larga. “Um dos princípios da educação em domicílio reza que quando você não sabe responder a uma pergunta, outra pessoa provavelmente saberá. Pode ser um internauta, um membro da cooperativa ou qualquer autor de um livro da biblioteca”, explica Jane Tompkins, uma antiga professora de história da arte da universidade do condado de Athens. A sua explanação é acompanhada atentamente por seus filhos Will, 12 anos, e Beckie, 15 anos, para quem dá aula. Todos os dias pela manhã ela substitui o juramento de obediência à Constituição dos Estados Unidos por uma oração, seguida pela leitura de um trecho da Bíblia.
Esse centro de convivência de homeschoolers nada tem de revolucionário: os alunos ficam sentados durante a “aula”, ministradas pelos “professores”, e têm deveres de casa para fazer. A única diferença visível em relação ao sistema convencional de educação é que Will e Becky não recebem notas. Eles estudam conforme seu ritmo e podem interromper a aula a qualquer momento. O seu programa se inspira amplamente nos currículos regulares e foi preparado em função das competências de sua mãe e das vontades deles: aulas de piano, de história, ciências, matemática e datilografia, entre outras. À primeira vista, sua curiosidade é insaciável.
Quer suas inclinações políticas sejam de direita, quer de esquerda, os adeptos da homeschooling argumentam que essa prática é interessante porque suprime toda barreira entre instrução e aprendizagem. A educação é praticada em qualquer lugar, o tempo todo. De manhã até a noite, aos fins de semana e durante as férias. Munidos de manuais escolares comprados na internet ou por correspondência, reunidos em cooperativas auto-administradas por famílias com motivações similares, inscritos em diversas listas de blogs, sites especializados ou grupos de reflexão, os homeschoolers proliferam. Não só nos Estados Unidos como também na França, no Reino Unido, na Nova Zelândia, na Austrália, no Canadá etc 2.
Cristã dedicada e bem relacionada entre a classe média, a senhora Tompkins decidiu retirar seus filhos da escola pública por causa da “má influência” que eles sofriam. Este é o principal argumento de quem opta pela educação em domicílio. Os pais avaliam os “dogmas progressistas”, a convivência entre jovens de condições sociais diferentes, a carência de disciplina e a educação voltada para a sexualidade como uma sucessão de obstáculos para o desenvolvimento harmonioso de toda criança cristã virtuosa.
Os seqüestros e as matanças nos colégios e nos campi universitários acen-tuaram a imagem de uma escola perigosa. Além do mais, os pais preferem administrar tudo por conta própria, por temerem perder o controle sobre os filhos.
Longe dos “antros de perdição”
Mas não parece ser esse o caso do condado de Athens, onde mora a família Tompkins. Nesse local absolutamente tranqüilo, as escolas públicas em nada se parecem com os antros de perdição descritos pela mídia, sempre em busca de crimes e escândalos que envolvam crianças. E mesmo assim, o mito da degenerescência prospera, convencendo todos os anos centenas de famílias cristãs a subtraírem seus filhos das “escolas do governo” e de seu “meio ambiente instável”, infectado pela “ideologia de Estado”. Em três dos cinco distritos do condado, 3% do total de crianças está sendo educada em casa. Ainda não chega a ser um maremoto, mas já é mais do que uma mera agitação das águas: desde 1999, o número de famílias que optaram por retirar ou não colocar seus filhos num estabelecimento escolar teria praticamente triplicado, passando de 850 mil para mais de 2 milhões em 2006 3.
John Colvins, 15 anos, nunca freqüentou a escola do condado. Há dez anos sua mãe, Sharon, dirige uma cooperativa escolar de cinco famílias. Mas isso não o impede de ter uma avaliação razoável da questão: “A educação em domicílio constitui, em minha opinião, uma boa alternativa na medida em que Mao Tse-tung e os nazistas se serviram da escola pública para exercer sua propaganda”. Para o seu irmão caçula, Ben, a homeschooling apresenta a vantagem de “permitir planejar a sua própria agenda de atividades e de ter uma educação religiosa”. Mas sua mãe assegura que a religião não é o único motivo para essa opção: “Nós recusamos a influência do Estado sobre a ideologia dos nossos filhos”, resume. Antiga estudante da Universidade de Berkeley, na Califórnia, Sharon se tornou uma “libertária” convicta e defende a supressão do Ministério da Educação americano.
Aliás, esse órgão estatal, que monitora o ensino doméstico, divulgou recentemente uma pesquisa sobre o tema. De acordo com os resultados, 31% dos pais que optam por não colocar seus filhos nos estabelecimentos escolares agem dessa forma por causa da sua preocupação com o “ambiente e o contexto nos quais é ministrada a educação nas escolas”4. A segunda razão, que motivaria outros 30%, está na sua vontade de “proporcionar aos filhos uma instrução moral e religiosa”. A terceira justificativa, alegada por 16,5% dos pais, está na sua insatisfação em relação à “formação intelectual oferecida nas escolas”. Certas necessidades particulares da criança (7%) ou, ainda, os seus problemas de saúde física ou mental (7%) também foram mencionados.
Esse questionamento dos métodos de ensino começou a ganhar força no final dos anos 1960. No livro Better late than early (Melhor tarde do que cedo), publicado em 1975, os pedagogos americanos Raymo
nd e Dorothy Moore, dois expoentes da direita cristã, apresentam uma síntese dos resultados de suas pesquisas: a escolarização das crianças começaria cedo demais e seria nociva para os alunos tanto nos planos físico, moral e intelectual quanto no da sua socialização. Ela deveria ser iniciada apenas a partir de 8 anos ou 10 anos.
Na mesma época, disseminou-se entre os militantes de esquerda uma crítica à instituição escolar como instância de reprodução das desigualdades sociais. Eles denunciavam o caráter arbitrário dos conteúdos culturais e da pedagogia tradicional e questionavam a relação entre professor e aluno e de ambos com o saber. Temiam a fabricação de cérebros dóceis e devotados ao sistema, a transmissão dos dogmas patrióticos e burocráticos e a imposição dos valores consumistas. Aos poucos, a crítica à escola foi se transformando numa crítica aos princípios da escola, seus objetivos e meios. Por fim, a própria existência da escola foi colocada em dúvida.
Ivan Illich (1926-2002), pensador da ecologia política e autor de Sociedade sem escolas, defendia análises similares e preconizou uma “desescolarização” da sociedade: a escola, essa “residência vigiada”, seria então substituída pela disseminação de uma multiplicidade de ofertas educativas no âmbito de redes que permitiriam a sua livre comercialização.
Nos Estados Unidos, esses temas foram encampados pelo famoso ensaísta John Holt (1923-1985), que lançou, em 1977, a revista bimensal Growing Without Schooling (Crescendo sem freqüentar a escola), um veículo próprio voltado à troca de idéias e práticas de educação no lar. Depois de um tempo, o próprio Holt e uma parte da esquerda terminaram adotando o que eles chamaram de unschooling, ou seja, a “desescolarização”.
Na biblioteca municipal da cidade de Athens, capital do condado homônimo, muitos adeptos ministram aulas coletivas de três a quatro vezes por mês. Um deles é Amy King, que decidiu retirar sua filha da escola pública em 2001. Naquele ano, por iniciativa do presidente George W. Bush, parlamentares democratas e republicanos aprovaram a lei “No Child Left Behind” (“Nenhuma criança deixada para trás”), que acentuou a concorrência entre os estabelecimentos de ensino, facilitou o acesso às escolas privadas e instituiu um verdadeiro “mercado da educação”, alimentado por “bônus educativos”6. Para Amy King, a homogeneização que resultou dessa lei “desastrosa”, “tornou a escola demasiadamente rígida, acentuou as desigualdades entre alunos” e instaurou a rapidez da aprendizagem como “único critério educativo”.
No fundo da biblioteca, Scott Grandy, 33 anos, músico e produtor de legumes, faz a sua contabilidade num dos sofás, enquanto suas duas filhas, Jorah e Sorell, trabalham voluntariamente na organização dos livros. “Ao forçar as crianças a permanecerem sentadas durante seis horas por dia, a escola é bastante cruel. Eu quero que as minhas filhas vivam num ambiente que as deixe livres para aprenderem o que quiserem, na idade que quiserem”, explica esse pai de família cuja renda anual não supera US$ 20 mil – o equivalente a cerca de R$ 2.700 por mês. “Lá em casa, sempre há livros sobre a mesa, e diariamente nós nos reunimos para estudar, ora matemática, ora leitura, ora música, ora educação artística… Nós as ensinamos também a fazer pão e ministramos aulas de pensamento crítico.”
Risco de socialização insuficiente
Da mesma forma que os cristãos de Athens, Grandy participa de uma associação que se reúne uma vez por semana. Diferentemente dos religiosos, que a chamam de “cooperativa”, ele a denomina “grupo”. A lógica, porém, é idêntica: trata-se de socializar os conhecimentos dos pais e de organizar aulas coletivas. Oito famílias participam do grupo de Grandy, para quem “a idade não é um fator determinante nas relações sociais. No decorrer da nossa vida inteira, nós aprendemos tanto com pessoas mais jovens quanto com outras mais idosas. Em nosso grupo, os alunos são indisciplinados e livres, o que até motivou a saída de uma das famílias. Acreditamos que o fato de questionar a noção de autoridade é algo muito positivo”.
As críticas que têm sido formuladas contra a educação em domicílio insistem não apenas nos riscos de haver uma socialização insuficiente das crianças, como também questionam a validade dos ensinamentos transmitidos, já que a maioria dos “professores” não recebeu nenhuma formação para isso. Porém, vários estudos constataram o bom preparo desses alunos para o sistema universitário e avaliaram seu desempenho como acima da média. Em 1998, por exemplo, o professor Lawrence Rudner, da Universidade de Maryland, testou os conhecimentos de 20.760 crianças educadas em domicílio. As notas que elas obtiveram lhe pareceram “excepcionalmente elevadas”7. Claro, tais resultados devem ser ponderados pelo fato de que os adeptos da homeschooling vivenciam essa escolha como um sacerdócio. Além disso, é preciso levar em conta que a escola pública tem sido financeiramente sacrificada nos Estados Unidos ao longo de várias décadas, em particular pelas administrações republicanas.
De qualquer forma, para quem quiser escolarizar seus filhos, as providências administrativas que devem ser tomadas são de uma simplicidade desconcertante. Em Ohio, é preciso apenas ter concluído os estudos secundários. As famílias devem informar as autoridades locais da sua intenção, antes do início do ano letivo, fornecendo-lhes um programa de estudos preliminar e garantindo que os seus filhos receberão ao menos 900 horas de aulas no decorrer do ano escolar. Os funcionários do School Board of Education (Conselho de Educação Escolar) não avaliarão o conteúdo do ensino, mas verificarão, um ano mais tarde, se o programa apresentado pelos pais correspondeu aos planos anunciados. Contudo, diante da inexistência de qualquer controle dos conhecimentos, haverá algo mais fácil do que alegar ter ensinado uma matéria? “As pessoas podem não enviar seus filhos para a escola de maneira perfeitamente legal, alegar instruí-los em domicílio e nada fazer durante o ano inteiro”, critica um diretor de colégio em Athens.
A educação em domicílio foi legalizada graças, em grande parte, ao lobby da Home Schooling Legal Defense Association (Associação de Defesa Legal da Escolaridade em Domicílio), uma organização evangélica que conta com mais de 80 mil famílias. Entretanto, a regulamentação varia de um estado para outro. Em 8 de março passado, o Tribunal de Recurs
os do segundo distrito da Califórnia proibiu que pais que não tenham recebido uma formação adequada forneçam instrução por conta própria aos seus filhos. Com isso, de um dia para o outro, 166 mil estudantes em domicílio se tornaram fora-da-lei, e os seus pais estão sujeitos a possíveis processos judiciários.
Melhores resultados nos testes
Mike Smith, o presidente da Home School Legal Defense Association, reagiu imediatamente contra essa decisão, defendendo o “direito fundamental dos pais de educarem seus próprios filhos” na Califórnia. “Nos 49 outros estados americanos, os pais podem exercer o papel das escolas privadas. A necessidade de possuir uma formação prévia para praticar o ensino não é uma obrigação prevista pela Constituição.” Ele ilustra sua argumentação com uma pesquisa do instituto Ellison Research de Phoenix8 que aponta que 50% das pessoas entrevistadas consideram a instrução em domicílio tão eficiente quanto aquela ministrada nas escolas públicas. Segundo ele, “isso se deve ao fato de que as crianças educadas pelos seus pais não raro obtêm melhores resultados nos testes de admissão das universidades americanas”.
Numa das salas do colégio federal em que é diretor em Stewart, sudeste de Ohio, George Wood apanha numa prateleira o livro coletivo que coordenou, Many children left behind9 (Muitas crianças deixadas para trás). Mesmo que esteja mais preocupado com a carência de recursos para os estabelecimentos públicos do que com a expansão da educação em domicílio, ele teme os efeitos ao longo prazo dessa prática. “As influências que esses futuros cidadãos recebem ao permanecerem em seu meio familiar não os abrem para a reflexão nem para a diversidade das opiniões, as quais são inerentes à democracia”, analisa Wood, que é coordenador do Fórum para a Democracia e a Educação. “Se essas crianças não interagirem com pessoas de outras origens e níveis econômicos e intelectuais, elas tenderão a rejeitar a priori opiniões diferentes das delas quando começarem a participar da vida democrática”.
A argumentação é semelhante à do sindicato dos professores. Qualificada em 2004 de “grupo terrorista” pelo então secretário de Educação dos Estados Unidos, Rod Paige, a National Education Association (NEA, Associação Nacional de Educação) se inclui entre os opositores ferozes da homeschooling. “Por mais criticável que seja a escola pública, ela desempenha um papel formador essencial em termos de cultura e de conhecimento da sociedade”, pondera Jen Thomson, integrante da NEA de Ohio e professora numa escola primária de Aimesville. “Na escola pública, as crianças aprendem o que é a vida, se confrontam com diversas opiniões. Não é porque o colégio pode comportar riscos de uma possível exposição a ‘más influências’ que os pais têm o direito de manter seus filhos afastados dele”.
Da mesma forma que muitos observadores, Aimee Howley, uma pesquisadora em ciências da educação da Universidade de Athens, avalia que o ensino em domicílio encontrará mecanicamente seus próprios limites. “A tarefa de instruir seus filhos requer demasiada dedicação por parte dos pais, principalmente da mãe. Raros são aqueles que se mostram realmente dispostos a fazer os sacrifícios que a educação em tempo integral impõe. Ainda que esteja ganhando importância, esse fenômeno permanece marginal. A escola tradicional tem belos dias pela frente, já que uma maioria de pais segue optando por entregar-lhe seus filhos sem se mostrar tão preocupada assim com o que lhes será ensinado. Apesar de tudo, a escola pública continua sendo a principal babá das crianças americanas.”
*Julien Brygo é jornalista.