Eleições, migrações e pandemia: impactos e desafios
A pandemia não criou um “novo normal”, mas exacerbou e acentuou as já profundas desigualdades e injustiças existentes. A população migrante não foi exceção e, neste cenário, viu-se impedida de acessar direitos humanos básicos
Em meio à maior pandemia do século, as eleições municipais brasileiras foram mantidas. Em São Paulo, maior cidade da América do Sul, o prefeito eleito no segundo turno foi Bruno Covas (PSDB), que possui, além dos desafios usuais do mandato, o compromisso de seguir conduzindo as políticas de gestão pandemia de Covid-19, que assola o Brasil e o mundo desde o início deste ano.
Até o momento, tal condução foi errática e vacilante. Bruno Covas, que herdou o mandato de seu padrinho político, João Dória (PSDB), quando este deixou o cargo para concorrer ao governo do Estado, geriu o maior município do país em meio às crises instauradas em decorrência da pandemia com políticas contraditórias. Ao mesmo tempo em que afirmava estar seguindo os protocolos de segurança, algumas medidas, como bloqueios parciais em avenidas na tentativa de refrear a circulação de pessoas, tiveram eficácia duvidosa na contenção dos contágios pelo coronavírus. Como resultado, São Paulo é hoje a cidade com o terceiro maior número de mortos pela doença no mundo, e fica à frente de duzentos países em número de mortes por Covid-19.
Sabemos que a pandemia não criou um “novo normal”, mas exacerbou e acentuou as já profundas desigualdades e injustiças existentes no Brasil e no mundo, obstaculizando a garantia dos direitos humanos às populações vulneráveis. A população migrante não foi exceção à regra e, neste cenário, viu-se impedida de acessar direitos humanos básicos. Em um contexto de crescente xenofobia e racismo observado mundialmente, com ascensão de governos e movimentos de extrema-direita, a pandemia foi usada como pretexto para a suspensão do direito à mobilidade humana, fechamento seletivo de fronteiras e falha na garantia de acesso ao cuidado em saúde e à assistência social. A pandemia, que chegou de avião à maioria dos lugares, tendo como vetores de transmissão aqueles mais abastados, terminava por vitimar migrantes que adentravam o país em rotas terrestres e em condições precárias. A pandemia, parafraseando Eduardo Galeano, comportou-se como uma serpente, mordendo apenas os pés descalços.
Violações sistemáticas e seletivas
As populações migrantes vêm sendo alvo de suspensão sistemática de direitos antes da eclosão da pandemia – e, embora tais violações sejam sistemáticas e, no limite, generalizadas, elas também são bastante seletivas, como iremos argumentar. O governo Bolsonaro adotou, desde o princípio, um discurso nacionalista, racista e xenófobo. É importante lembrar que um de seus primeiros atos oficiais de governo, ainda em 2019, foi retirar o Brasil do Pacto Global das Migrações. Ainda antes da pandemia foram editadas as portarias nº 666 e 770, que previam a deportação sumária de migrantes que pudessem ser considerados perigosos – e tal definição, elástica por natureza, é capaz de englobar quaisquer migrantes considerados indesejáveis desde uma perspectiva securitária e de extrema-direita.
A pandemia serviu de pretexto para a aplicação de medidas que explicitavam a orientação anti-migração do governo. As fronteiras terrestres foram fechadas, ao passo que as fronteiras aéreas permaneceram abertas e sem nenhuma medida de prevenção. Além disso, todos os instrumentos normativos publicados pelo governo federal desde o início da pandemia discriminam migrantes venezuelanos de maneira bastante específica, proibindo sua entrada no país por qualquer via que seja. A entrada de venezuelanos no país, usada à exaustão como instrumento de propaganda ideológica do governo a nível nacional e internacional, ganhou proibição específica nos marcos regulatórios de fechamento de fronteiras como prova de que o compromisso deste governo com as pautas migratórias é sobretudo estético.
A violência racista e xenófoba também recrudesceu durante a pandemia. Um dos casos mais simbólicos foi o assassinato de João Manuel, imigrante angolano morador de São Paulo. Sabemos que migrantes originários de países das franjas do capitalismo global, majoritariamente de ascendência indígena, como nos casos daqueles oriundos de países latino-americanos, ou de países cuja maioria da população é negra, como Haiti, República Democrática do Congo, Nigéria, Angola, Camarões, Guiné Bissau, Guiné Konakry e tantos outros países de maioria não branca, encontram no Brasil um contexto bastante hostil de racismo estrutural, tendo mais dificuldades para realizar sua inserção econômica, cultural e social. São esses migrantes que vão morar nas periferias das grandes cidades em condições precárias, que serão vítimas do controle muitas vezes autoritário exercido em centros de acolhida, e que, paradoxalmente, mais dependerão da assistência social e do acesso à equipamentos de saúde pública garantidos pelo Estado.
As dificuldades impostas pelos processos de regularização migratória também foram outro agravante. Os serviços prestados pela Polícia Federal foram interrompidos durante grande parte do ano, o que resultou em uma suspensão temporária dos prazos de regularização e das datas de validade dos documentos. Em razão disso, muitos migrantes ficaram sem quaisquer documentos, ou com eles vencidos. Nos últimos meses, os atendimentos têm sido retomados aos poucos, mas a dificuldade de agendamento – que já era um problema antes da pandemia – se mantém como um grande obstáculo na garantia de acesso à documentação. Também há diversos relatos de cobranças ilegais para agilizar o processo.
Migrantes também são vítimas preferenciais em vagas de trabalho precarizado ou análogo à escravidão, e a crise econômica decorrente da pandemia deve piorar consideravelmente as condições de trabalho dessa população. A necessidade econômica impediu que muitos migrantes pudessem cumprir medidas de distanciamento social e se proteger do contágio, e é essa população a que mais sofre com as políticas de arrocho fiscal e corte de gastos sociais, gerando um agravamento nas suas condições de vida. Seus rendimentos diminuíram muito durante a pandemia, o que também impacta na qualidade de vida de suas famílias em seus países de origem, pois dificulta ou impossibilita o envio de remessas. Assim, é urgente a estruturação de políticas destinadas a mitigar tais vulnerabilidades, combatendo o trabalho escravo, assegurando benefícios sociais para garantir a segurança sanitária dos migrantes e de suas famílias e impulsionando a criação de vagas de trabalho decente no período pós-pandemia.
Dessa forma, violações de direitos foram frequentes e comuns, e impactaram de maneira mais intensa determinados grupos de migrantes. O auxílio emergencial, cuja instauração foi uma vitória da mobilização da sociedade adotada a contragosto pelo governo Bolsonaro, foi de difícil acesso a migrantes, e centenas relatam que seus auxílios foram suspensos sem quaisquer explicações. Migrantes também relatam discriminação nos serviços de saúde pública, onde é comum que se exija, ao arrepio da lei brasileira, documentos para a oferta de cuidado em saúde – o Sistema Único de Saúde brasileiro dispensa a exigência de qualquer documento, e negar atendimento de saúde a qualquer pessoa por qualquer motivo é crime. Deportações de migrantes indocumentados em busca de cuidado em saúde foram registradas no país, trazendo preocupação sobre a grave conexão entre serviços de assistência e forças de segurança pública. O medo de comparecer a equipamentos públicos de saúde e assistência social sem documentos, ou com documentos vencidos, agrava e aprofunda as vulnerabilidades a que esse grupo está submetido.
É importante registrar que tal descaso é ainda mais visível (ou invisível) na estruturação dos métodos de monitoramento do impacto da pandemia sobre os migrantes no Brasil. Não há coleta ou divulgação de dados de contágios e mortes de migrantes por Covid-19 no Brasil. Uma iniciativa liderada pela Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados, com apoio de diversas organizações do país – entre elas, o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC) –, pautou a inclusão da variável “nacionalidade” nos registros do SUS, e a divulgação desses dados de maneira desagregada. Em parceria com a Defensoria Pública da União, as três esferas do poder público foram provocadas a se manifestar, e o posicionamento da Procuradoria Geral do Município de São Paulo, do governo liderado por Bruno Covas, foi estarrecedor, dizendo, informada pela Secretaria Municipal de Saúde, que a coleta e a divulgação da variável nacionalidade teria baixo impacto no processo de decisão das medidas relativas à pandemia. Restou provado, assim, a completa falta de vontade política da gestão municipal para construir uma política específica de saúde e resposta aos impactos da pandemia para migrantes na cidade de São Paulo. É a partir desse paradigma que precisamos analisar os resultados eleitorais recentes.
As eleições municipais em São Paulo
O município de São Paulo deve, portanto, ser colocado em foco, considerando que a capital paulista é referenciada como exemplo de boas práticas de governança migratória, e foi a primeira cidade do país a instituir uma política municipal específica para migrantes. Contamos hoje com uma Coordenadoria de Políticas Migratórias e Trabalho Decente (CPMig-TD), com um Conselho Municipal de Imigrantes (CMI) e com uma estrutura de assistência social específica para essa população formada por vários centros de acolhida credenciados à Prefeitura e ligados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ainda assim, é preciso pontuar que os desafios são enormes, e que a pandemia aprofundou as desigualdades que precisamos mitigar.
Assim, organizações da sociedade civil se articularam para exigir o comprometimento dos poderes Executivo e Legislativo com a pauta migratória. Duas cartas-compromisso foram redigidas: a primeira, lançada em setembro, cobrou dos candidatos à prefeitura e à Câmara Municipal de São Paulo a priorização da migração em seus planejamentos e propostas, exigindo, inclusive, o comprometimento com o 1º Plano Municipal de Políticas para Imigrantes, aprovado e divulgado em 2020, e fruto dos debates realizados na Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes, organizada no ano anterior; 39 organizações subscreveram a carta.
Já a segunda carta, lançada em novembro – logo antes das eleições –, reiterou as violações de direitos que os migrantes residentes em São Paulo estavam sofrendo, e solicitou, como uma medida para trazer os debates para dentro das esferas do governo, a instauração de uma Subcomissão para tratar especificamente a temática da migração dentro da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo. O enfoque da carta seria garantir o comprometimento dos candidatos eleitos com a pauta migratória, dando especial importância aos seguintes eixos temáticos: (i) regularização; (ii) moradia; (iii) revalidação de diplomas; (iv) renda básica; (v) ambulantes; (vi) infância migrante; (vii) combate à xenofobia e racismo; (viii) combate ao trabalho escravo e acolhimento às pessoas resgatadas. Esta carta teve o apoio de treze organizações e coletivos da sociedade civil ligados à temática migratória, e obteve 32 assinaturas de candidatos/as a vereadores de 11 legendas distintas, assumindo o compromisso de apoiar a instauração da Subcomissão. Ressalta-se que, dos 32 vereadores que assumiram o compromisso, 8 foram eleitos, representando 14% da composição da Câmara de São Paulo. Além disso, a mesma carta foi reelaborada e enviada aos candidatos à prefeitura que disputaram o segundo turno, Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL), que também a assinaram e se comprometeram com suas proposições. Essa foi uma grande vitória, e gera uma grande responsabilidade deste novo governo junto aos migrantes da cidade.
Também urge o comprometimento do poder público municipal com o cumprimento dos três pilares constitucionais do SUS e do SUAS: universalidade, que prevê que todas as pessoas têm direito ao cuidado em saúde e à assistência social independente de sua situação documental e/ou de seu status migratório; integralidade, que prevê que todas as dimensões do cuidado em saúde devem ser endereçadas, o que inclui mitigar situações de vulnerabilidade e prover benefícios de assistência social que sejam capazes de fazê-lo; e equidade, que prevê que é preciso garantir tais direitos observando de maneira diligente suas particularidades sociais, econômicas e culturais. Bruno Covas, que repetidamente mencionou seu compromisso com a diversidade, deve trabalhar para garantir que esse não seja um compromisso meramente verbal, fazendo-o repercutir na oferta de serviços públicos à população migrante de São Paulo.
Esperamos, portanto, que o governo eleito paute tais questões de maneira prioritária. A violação sistemática de direitos humanos a que essa parcela da população está submetida, agravada pela pandemia, não pode mais perdurar. É urgente que os serviços públicos realizem as suas funções e garantam os direitos dos migrantes, como previsto na Constituição Federal brasileira e nas diversas normativas nacionais e internacionais que estabelecem os direitos dessas populações: a Lei Federal n° 9.474 de 22 de julho de 1997 (Lei do Refúgio), o Decreto Presidencial nº 678 de 06 de novembro de 1992 (Convenção Americana de Direitos Humanos, em especial, o disposto no artigo 22 – direito de circulação e residência), a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), bem como a Lei nº 16.478 de 08 de julho de 2016 (Lei Municipal para População Imigrante) e o Decreto Municipal nº 57.533 de 15 de dezembro de 2016.
Por fim, reitera-se a importância da instauração da Subcomissão na Câmara Legislativa de São Paulo. Essa medida viabilizará a articulação da sociedade civil com o poder público de maneira mais próxima e efetiva, facilitando o diálogo, o apoio e a parceria na concretização das metas para sanar os problemas enfrentados pelos migrantes residentes em São Paulo. Temas como a regularização migratória, o acesso à moradia, à saúde e à assistência social, a precarização do trabalho, a violência de gênero, a xenofobia e o racismo precisam ser debatidos dentro da Câmara, a fim de garantir e expandir os direitos previstos para essa população – direito não se tira, se expande, e é preciso mais do que nunca avançar, e não retroceder.
É preciso, portanto, reconhecer as diversas violações de direitos e as inúmeras barreiras enfrentadas para se alcançar uma vida digna, cabendo ao presente governo assumir o seu papel de combater essas desigualdades e, acima de tudo, avançar. Sem o compromisso por parte do poder público, a partir da construção de políticas públicas efetivas, a sociedade civil fica refém de uma estrutura de perpetuação de desigualdades e assimetrias. Citando a já saudosa Oriana Jara, histórica ativista dos direitos dos migrantes, em sua fala na 1ª Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes de São Paulo, “para nós [migrantes], é o agora e o futuro. Por um lado conseguimos que, por fim, alguém nos escute, e por outro lado é o começo de um longo caminho de aprendizagem, que não é fácil.”. É o agora, como forma de atender às necessidades mais urgentes dessa população, e é o futuro, para avançar. Lembrando uma vez mais Eduardo Galeano, na frase de Fernando Birri que ele tornou célebre: “para que serve a utopia? Para isso, para caminhar”.
*Alexandre Branco Pereira é consultor de projetos do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), doutorando em Antropologia (UFSCar), pesquisador do Laboratório de Estudos Migratórios (LEM-UFSCar) e membro do Coletivo Conviva Diferente. Ex-colaborador do IPq-HC-USP (2017-2020) e ex-membro da coordenação da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados (2018-2020).
*Renata Rossi Ignácio é consultora de projetos do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), advogada, mestranda em Direito Constitucional pela PUC/SP e graduada em Direito pela mesma universidade.