“Elis & Tom” canta o encontro de duas das maiores estrelas da música brasileira
Estreia hoje nos cinemas documentário que viaja pelos versos e pelas melodias do álbum “Elis & Tom” (1974) com imagens filmadas na época da gravação
No centro do Roda Viva, em dezembro de 1993, Tom Jobim é interrogado sobre sua relação com Elis Regina, a quem teria negado o papel de Pobre Menina Rica, musical de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes que ia receber direção musical do maestro. Disse Ruy Castro em seu livro Chega de Saudade que Tom teria falado de Elis: “Essa gaúcha ainda está cheirando a churrasco”. No programa da TV Cultura, o compositor nega haver dito isso, até porque, quase vinte anos antes, gravou com a cantora aquele que é considerado um dos mais belos álbuns da música popular brasileira. Elis & Tom, álbum de 1974, agora ganha documentário dirigido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay.
Gravado em Los Angeles, o LP tem como faixa de abertura o dueto Águas de Março, e é também com ela que abre o documentário: Elis canta com seu sorriso inconfundível do início ao fim da canção. Do outro lado do microfone, Tom começa com timidez e logo se solta e deixa o corpo acompanhar a melodia. A história por trás do álbum é de certa forma similar, começou como um grande mal-entendido, mas logo se revelou em música o amor.
50 anos depois, o filme garante o “olhar completo” sobre essa história, define Roberto de Oliveira em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil. Oliveira era empresário de Elis no momento da gravação, por isso acompanhou de perto as tensões que marcaram os primeiros dias da cantora em Los Angeles. Acompanhada de sua banda, ela não foi bem recebida por Tom, que se descontentou com a notícia de que o marido de Elis e arranjador Cesar Camargo Mariano iria fazer os novos arranjos de suas músicas para a voz de Elis. No documentário, Mariano conta sobre um momento em que, enquanto tocava piano, Tom perguntou se ele tinha dez dedos em cada mão. Achando que era um elogio, Mariano agradeceu ao compositor, que devolveu com xingamentos e perguntou se ele não conhecia nenhum acorde mais simples.
Essa é apenas uma das histórias contadas no filme, que hoje parecem engraçadas, mas à época levaram Elis a fazer as malas para voltar ao Brasil antes de acabar o álbum – Oliveira conta que conseguiu convencê-la a ficar, e o resultado não poderia valer mais a pena. O “gênio casual” de Tom Jobim somou-se à voz mais potente da música brasileira e, como define Oliveira: “um mais um não deu dois, deu dez.”
Cerca de quatro horas de filmagens em 16mm feitas pelo fotógrafo Fernando Duarte durante as gravações foram recortadas para caber entre as diversas entrevistas que compõem o documentário. Momentos de tensão e momentos de descontração são intercalados com falas que repetem o que as imagens já dizem por si só, dando a sensação de que poderíamos passar mais tempo com Elis e Tom em 1974 e menos com as testemunhas que falam em 2023.
O objetivo de Oliveira com o filme era apresentar as duas estrelas que reluzem no fundo preto das gravações de Águas de Março àqueles que não os conhecem bem: jovens e estrangeiros. A abordagem é menos nostálgica e mais didática, contanto a história de cada um até ali com o auxílio de imagens de arquivo televisivo. O foco nas carreiras mundiais dos artistas e o pano de fundo das ruas de Los Angeles também contribuem para o tom internacional do filme, mas quem sabe o brasileiro não pudesse aproveitar da nostalgia para se aproximar de duas das mais importantes figuras de sua música.
Por sorte, o filme deve se estender enquanto exposição imersiva para comemorar os 50 anos do álbum, anuncia Oliveira na entrevista. O trabalho de som feito para transformar a música em protagonista nas salas de cinema é grandioso, e deve se tornar mais ainda na exposição prometida para o ano que vem.
O filme resgata na música as imagens de Elis e Tom e canta o que restou de cada um e do encontro entre os dois. Confira a seguir a entrevista com Roberto de Oliveira.
Na época, qual era sua intenção ao fazer aquelas filmagens?
Saímos para fazer um disco, o LP do encontro entre Elis Regina e Tom Jobim em Los Angeles, porque o Tom morava lá na época. A gente deslocou os músicos daqui do Brasil para lá. Eu era empresário da Elis, meu contato com ela era em função disso, mas chegando lá eu mexia com televisão também, já naquela época, então chegamos à conclusão de que valia a pena filmar o encontro. A gente percebia claramente que era um encontro histórico, então montei uma equipe com dois brasileiros que estavam lá e foram fundamentais. O primeiro foi Jom Tob Azulay, que era vice-cônsul no consulado brasileiro em Los Angeles e estudava cinema na Universidade da Califórnia. Também chamamos um fotógrafo que estava lá no momento chamado Fernando Duarte e assim o disco ganhou como subproduto o registro das imagens para fazer um filme.
Por que vocês demoraram tanto para organizar as imagens em um filme?
Na hora, a gente captou o material por saber que estava registrando um momento histórico. O Tom, naquele momento, era o compositor brasileiro mais famoso no mundo, o segundo compositor mais escutado nos Estados Unidos. Ainda hoje, qualquer lugar do mundo que você for tem ele tocando, uma loja, um restaurante. Sendo um dos pais da bossa nova, movimento que ficou conhecido no mundo inteiro, ele ficou muito famoso, e naquele momento já era “o cara”.
Chegando lá, percebemos que o encontro desse compositor tão relevante com a melhor cantora do Brasil na época era histórico, então tivemos a preocupação de registrá-lo, sem saber exatamente o que íamos fazer com esse material. Eu guardei esse material já pensando na ideia de um filme depois de captar, mas não sabia exatamente qual seria esse filme.
Os anos foram passando e eu tive a percepção de que o tempo fazia bem para essa história. Se eu tivesse montado ele dois anos depois do evento, por exemplo, seria um filme muito diferente. Essa distância temporal foi muito interessante, porque permitiu que a gente chegasse à história completa. O Tom e a Elis completaram a parte presidencial de suas histórias – porque eles continuam sendo muito lembrados e escutados através do legado que eles deixaram – e também a história do disco, que ficou conhecido no mundo inteiro e hoje já é considerado o disco mais importante do Brasil no mundo todo. A história agora já estava madura para a gente montar.
Eu tive o privilégio de ser o cara que estava lá no início, tive a ideia de desenvolver esse projeto e agora estou tendo a oportunidade de contar essa história. Tem outra coisa também pouco usual, que é ter em detalhes o processo todo desde o início até hoje, então o filme ganha relevância pelo olhar completo dessa história.
Você sabe me dizer quanto tempo tinha de material filmado?
Acho que eu gravei umas quatro horas de imagem e vinte horas de material de áudio, conversas de bastidores, que a gente pretende usar numa exposição imersiva no ano que vem, comemorando os 50 anos do encontro e do disco. Essa captação de áudio também é muito importante.
O filme foi muito comparado ao Get Back mas, na realidade, ele vai muito além das gravações, e muito do tempo de tela é preenchido por entrevistas recentes. Você pode explicar essa escolha?
Ele já nasceu muito parecido, porque o Get Back é uma versão renovada do Let It Be, que é um filme de 1970. Utilizou-se o mesmo material para fazer um filme mais extenso. Esse material é um material de making off, assim como o nosso. A diferença é que o álbum Let It Be foi feito para isso, para ser filmado. Era uma gravação em que o cinema fazia parte do ambiente. No nosso caso, não. A presença do cinema ali tinha que ser muito discreta.
Os equipamentos e a equipe, tudo tinha que ficar quietinho, pois o ambiente não estava preparado para o cinema. Isso acabou trazendo uma vantagem: como a câmera ficava discreta, sem fazer ruído, quase imperceptível para os artistas, pegamos um pouco mais descontração, conversas descontraídas. Talvez se eles percebessem a câmera eles não teriam exibido isso, então, nosso material tem essa diferença, uma presença mais extensiva dentro da cena e isso foi muito bom. Acredito que isso tenha marcado o filme e dado a ele uma característica bem original. A câmera que está escondida, clandestina e por isso consegue captar momentos mais descontraídos.
O filme tem um foco muito grande na internacionalização das carreiras de Elis e Tom, e em momentos parece até feito mais pro público internacional – está sendo lançado nos Estados Unidos hoje, inclusive – do que para o brasileiro. Como tudo foi pensado por você?
O filme tem essa pegada para viajar, rodar o mundo. Porque é um encontro de dois artistas tão conhecidos e acessíveis, com um resultado tão bom, que foi o disco. Por isso, está tendo muito interesse em festivais de cinema e uma procura muito grande de distribuição em cinemas no mundo todo. A gente acha que talvez até tenha uma expansão maior de público no mundo, fora do Brasil, do que no Brasil mesmo, embora a gente preveja que ele tenha uma boa carreira no Brasil também.
Eu também procurei fazer um filme com uma abordagem que permite introduzi-los para novos públicos, sejam jovens, que não conviveram muito com os dois, sejam públicos de outros países, gente que não conhece a obra. Então o filme é muito acessível. Eu tive o cuidado de fazer uma primeira parte contando quem eles eram antes do encontro, depois mostrando o encontro, uma abordagem não nostálgica.
Também é dado um foco grande para o momento de vida e carreira que a Elis estava vivendo. Como empresário dela, como foi aquele momento, pessoal e emocionalmente?
A história de Elis, com o desaparecimento dela muito precoce, ganha uma tintura mais dramática. A morte dela aos 36 anos, no auge de sua carreira, chocou muito o país. Isso gera um certo inconformismo nas pessoas, então a história da Elis acaba sendo um pouco mais importante no filme que a do Tom, que teve uma vida um pouco mais regular – quer dizer, foi embora também cedo, mas viveu muito mais do que ela.
A Elis tinha alguns problemas de posicionamento na época. Ela estava sofrendo muitas críticas por ter participado de um evento da ditadura militar. Então ela precisava de um trabalho de reposicionamento que marcasse bem o prestígio dela, inclusive mostrando que essa coisa do evento foi algo ocasional, não era uma postura ideológica ou política dela. Esse encontro tinha esse objetivo também de lembrar a relevância do trabalho dela e responder às críticas.
O Tom já era o grande autor da bossa nova, mas também passava por um momento de indefinição do que fazer a partir dali e então o encontro foi bacana para os dois, os dois cresceram muito. A Elis se torna uma cantora melhor a partir da inserção do minimalismo Jobiniano na obra dela, ela começou a usar menos a potência vocal e mais a inteligência artística. O Tom também voltou a se sentir mais popular aqui no Brasil e nisso trouxe uma linguagem mais descontraída, mais popular.
Então o que eu tenho a dizer desse encontro é isso: um mais um não deu dois, deu dez. Foi muito bom para os dois e para a cultura brasileira, que ganhou essa obra que é considerada uma obra prima, considerada por todos os especialistas como praticamente perfeita.
Qual o papel das músicas na construção do filme e como elas foram escolhidas – já que não são todas que estão inclusas?
Além do álbum, quatro canções foram feitas exclusivamente para o filme e inclusive vão ser lançadas pela gravadora em um EP. Mas havia uma lista de 42 músicas, e optamos por um repertório mesclado: metade com músicas mais tradicionais do Tom, canções até de antes da bossa nova, e metade com músicas um pouco mais de sambas, que tiveram um tratamento um pouco mais moderno feito pelo arranjador César Camargo Mariano. Esse foi o critério de escolha. Ele não é muito extenso, mas a gente tinha muitos caminhos ali e optamos por esse, que funcionou bem em um mix interessante de diversos gêneros da obra do Tom.
Carolina Azevedo é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.