Elogio a Torto Arado: uma literatura reencantada da realidade
Itamar Vieira Junior consegue traçar a valorização histórica dos quilombolas e as desigualdades de um país de passado colonial e escravista, um país que permanece racista atualmente
“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”
“Toda memória é subversiva, porque é diferente, e também qualquer projeto de futuro”
Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina
Escrito por Itamar Vieira Junior, Torto Arado (2019) ganhou o prêmio LeYa em Portugal, em 2018, e os prêmios Jabuti e Oceanos, em 2020. O romance é localizado no interior do sertão baiano, trata de um realismo mágico — ou melhor, encantado —, atravessado por relações de poder e insubordinações, pelo contraste entre proprietários, moradores e também gerações. O protagonismo é assumido pelas irmãs Bibiana e Belonísia que, embora narrem os acontecimentos presentes de suas vidas, são transpassadas por questões familiares e encantadas que remontam aos passados de sua avó paterna e de todo um povo subalternizado na história brasileira.

Após um acidente na infância envolvendo uma faca de prata com cabo de marfim, a trajetória das irmãs é marcada de forma única, simbólica e simbiótica, uma vez que, por parte do longo período de vida, se tornam complementares e dependentes na vivência cotidiana. Dessa forma, suas vidas estão conectadas para sempre “a ponto de uma precisar ser a voz da outra”. A prosa melodiosa do autor prende o leitor num ritmo fluído ao contar uma história de vida e morte ao longo de processos micro e macrossociais, envolvendo, constantemente, combate e redenção. Com habilidade, consegue mesclar trajetórias individuais a processos da vida social, fazendo cruzar a cultura e os sentimentos, sempre marcado pelo movimento e pela transformação como condição humana. O livro é composto por três partes, a saber: Fio de corte, com 15 capítulos, Torto Arado, com 24 capítulos, e Rio de sangue, com 14 capítulos; e a trama se desenvolve em pouco mais de 250 páginas de história.
A versão do livro utilizada neste escrito é a 16ª reimpressão, do ano de 2021, da editora Todavia. A capa é de autoria de Elisa v. Randow, com ilustração de Aline Bispo, inspirada na fotografia de Giovanni Marrozzini para a série “Nouvelle semence”, de 2010. Desde já, vale esclarecer que esta resenha [1] não é capaz de dar conta da totalidade da obra, uma vez que são muitos temas e que, certamente, levariam muitos estudos e páginas para tocar em cada assunto abordado com relevância e profundidade, como violência de gênero, estupro, violência no campo, questões políticas, o não reconhecimento, a formação identitária, etc. Então, além de ser uma abordagem introdutória, é também um convite. Expostas as explicações necessárias, seguem sinteticamente as informações sobre a obra, por vezes com revelações importantes da trama (“spoiler”, como se popularizou no estrangeirismo desnecessário).
A primeira parte do livro é narrada por uma das irmãs – só será descoberto de quem é a voz ao final desta seção. De início, o leitor é surpreendido pelo acidente compartilhado entre as irmãs, que feriu a uma delas e de outra retirou a voz. Dessa tragédia, surge uma forte união entre elas, pois uma passa a ser a voz da outra e, para que isso ocorra, é preciso grande sensibilidade e reconhecimento dos sinais e sentimentos da irmã. Nesta parte, é apresentada a paisagem social do sertão nordestino, marcada por relações de domínio e poder entre os moradores da fazenda Água Negra e os donos da propriedade, gerando conflitos e também relações de dependência estrutural.
É na dinâmica cotidiana que passamos a conhecer os grupos familiares e de aparentados — que quando não de sangue, se faziam por vontade —, como o pai Zeca Chapéu Grande, curador mágico dos males da região e responsável pelo jarê, que ocorria regularmente em seu terreiro; a mãe Salustiana, que pouco a pouco passa a assumir a função de parteira da fazenda, ambos possuem grande estima e respeito entre os moradores. Figura importante e que, indiretamente, dá início à trama, é a avó Donana, detentora da faca de prata escondida num pano com sangue seco por motivos ainda desconhecidos e que terá sua história revelada ao longo das partes seguintes.
Adicionando camadas a esta seção, o espectador é apresentado ao mundo dos encantados e sua dinâmica com o mundo material. Figuras sempre presentes e de suma importância para a relação entre os mundos espirituais e humanos, como o Velho Nagô, senhor e espírito do corpo de Zeca, das bênçãos e das curas que chegavam aos necessitados e à terra, e Santa Rita Pescadeira, que montava em dona Miúda e realizava danças como quem jogava rede e puxava os males da população, por exemplo. Ao fim da primeira parte, ocorre a fuga de uma das irmãs com o primo Severo para tentar a sorte, estudo e trabalho no mundo. Fica Belonísia e parte Bibiana, a irmã que emprestava a voz.
A segunda parte se inicia imediatamente ao final da primeira, porém alternando a voz narrativa para a irmã que ficou. Nesta seção, o leitor acompanha os interesses da personagem e também seu amadurecimento, chegando a se casar com Tobias, um vaqueiro recém-chegado na região. Em páginas de sofrimento, é notável observar a força descoberta e a mudança de pensamento experimentada e incorporada por Belonísia. Em sua insubordinação, tem conhecimento que nada deve a Tobias em sua morte, nem mesmo uma lágrima, pelo contrário. No desenvolver da personagem, ela entra em contato com a antiga faca que iniciou a história e aprofundou os laços com Bibiana, passando a carregar consigo e fazendo uso quando necessário, como quando sua vizinha Maria Cabocla sofria violência do marido, afugentando-o pelo corte da faca e de seu olhar.
Ainda na segunda parte, alternadamente à situação atual de Zeca, é apresentada a história de Donana e do filho em momentos anteriores à chegada em Água Negra, mostrando como houve o chamado dos encantados pela avó das protagonistas e como o cargo foi carregado por seu filho, que sai em busca de trabalho, acompanhado pelo Velho Nagô, Mineiro, Oxóssi, Mãe d’Água e Ventania, protegendo-o dos males da natureza e dos coronéis. Por fim, descobre-se que Bibiana e Severo conseguiram trabalho e se envolveram na luta por direitos ao povo trabalhador do campo, ocasionando conflitos com os novos donos da fazenda e culminando na morte do marido, assassinado a tiros por pessoas desconhecidas.
A terceira parte surpreende ao possuir como voz narrativa um encantado, conhecida como Santa Rita Pescadeira, que com a morte de dona Miúda não possui mais cavalo no qual montar e viver a realidade material da comunidade. Muito mais antiga que os humanos ali presentes, possui conhecimento mais longevos e amplos, fechando pontos abertos anteriormente, como a trajetória da faca que Donana possuía e o desenrolar da morte de Severo. Neste momento, é possível notar o avanço do café nas plantações, os embates acentuados entre os donos e os moradores e, também, a implantação de algumas modernizações e do evangelismo, que gera mais frações na região.
Reforçando o poder contido naquela comunidade e assumido por muitas mulheres, a entidade passa a montar no corpo de Bibiana para o cavar de uma cova, e o de Belonísia que “era a fúria que havia cruzado o tempo” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 261) para a caça de quem estava disposto a matar e fazer muito mal às pessoas daquele lugar. Morreu, enfim, o fazendeiro que visava destruir a região e seus moradores.
Após a muito breve exposição das seções que compõem o livro, compreende-se a questão da violência e da voz, isto é, de quem pode falar e, falando, quem pode ser ouvido. Ou seja, comunicação e violência. Sobre Torto Arado, compreende-se que se trata de uma obra literária e, por isso, possui impacto e relevância social através de um comunicador, uma mensagem e espectadores receptores. Como mencionado por Antonio Candido: “o destino da obra está ligado a esta circunstância; […] ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas.” (2006, p. 35). Se tal fato ocorre, há certa movimentação na realidade material para que isso encontre congruências entre obra, sua circulação e recepção. Ainda, se há tal relação nesse movimento, há de se considerar a questão da receptividade da obra e como ela é incorporada e transformada em movimento contínuo dialeticamente. Isto é, o autor produz algo que possui encontros com a realidade em determinados momentos, seja por historicidade e/ou por projeções de mudança no conhecimento, e a mensagem, quando recebida, pode ser utilizada por quem a recebe, alterando sua consciência e as formas de agir e ser no mundo.
Neste ponto, há de tensionar a consciência possível e seu ponto máximo, isto é, para além da consciência de classe, a ideia de consciência possível busca não saber o que pensa um grupo, mas quais “são as mudanças suscetíveis de se produzirem na sua consciência, sem que haja modificação na estrutura essencial do grupo” (GOLDMANN, 1972, p. 9). Isso diz respeito tanto aos momentos de transformações no contato social dentro da obra, como também nas repercussões externas. Ou seja, trata-se de entender “quais os limites que sua consciência da realidade não pode ultrapassar sem uma profunda transformação social prévia” (ibid., p. 17). Majoritariamente, a transformação social acontece sob conflito, tensões e contradições que objetivam ser superadas. Estimular os valores de liberdade e de cultura, ao mesmo tempo em que se busca compreender o campo da consciência social no qual determinado grupo pode variar suas maneiras de pensar sem modificar sua estrutura, pois embora as sociedades mudem e se transformem, as pessoas permanecem — modificadas ou não por novas transformações. Esse movimento comum, no âmbito artístico cultural, não se contrapõe ao pensamento, mas dá sentido ao sentimento numa consciência prática em uma continuidade viva e interrelacionada, isto é, é uma construção lógica e emotiva que corroboram para sua formação e significação ao longo da história.
Desse modo, a mudança possível de um mesmo grupo que permanece em sua vida cotidiana, mas que entra em contato com outras perspectivas e possibilidades, busca falar sobre si e sobre como interpretar o mundo. Da mesma forma como quem pode falar e ser ouvido, acontece com qual mudança é incorporada e qual é recusada. A obra de Vieira Junior apresenta a chegada da modernidade em vários elementos e, também, como ela é vivida ou rejeitada a depender da projeção do futuro, visando sobrevivência ou exclusão. Tanto na teoria sociológica quanto na obra literária em questão, a modernização — mesmo que arcaica, para relembrar Florestan Fernandes — é acompanhada do desencantamento, como demonstrado na teoria weberiana. Isto é, a racionalização econômica do mundo em detrimento das forças mágicas, o que impacta justamente o ponto da consciência máxima possível e sua transformação através da modificação ou não da realidade em que se vive.
É nesse conflito, pelo conhecimento trazido sobre sindicatos e direitos do povo do campo, pela resistência e insubordinação experimentadas e praticadas por muitos na comunidade, pela questão da mulher e como ela assume o protagonismo tanto nas dinâmicas individuais quanto nas revoltas massivas, pela questão da herança escravocrata que marca com sangue a história brasileira e em sua perpetuação, entre outras, que a violência instituída pelos moradores surge não como elemento de barbárie, mas como elemento de sobrevivência. Glauber Rocha, na Estética da fome (1965), diz que: “a mais nobre manifestação da fome é a violência” e que “enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino”, sendo que nossa fome é o nervo da própria sociedade. Logo a violência realizada pelos moradores não é despolitizada, mas ao contrário, é a violência de “gente que suportou tudo, suportando a crueldade que lhes foi imposta” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 261).
“De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação” (ROCHA, 1965). Numa escrita profunda que causa sentimentos de angústia, aflição — “de uma inocência pisada, de uma miséria anônima” como disse Clarice Lispector sobre A hora da estrela [2] — e alívio em alguns momentos, o autor consegue traçar a valorização histórica dos quilombolas, as desigualdades de um país de
passado colonial e escravista, um país que permanece racista atualmente e ainda desenhar um futuro menos centrado no norte global: o reencantamento da terra e, consequentemente, da nossa vida cotidiana sempre em movimento e processo de transformação. O convite citado ao início da resenha é amplo, é tanto para a leitura da obra quanto para a mudança de perspectiva contra os diversos males que assombram a sociedade atualmente e que já assombram por tempo demais.
Maurício Brugnaro Júnior é graduando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Membro do Laboratório de Pensamento Político (PEPOL/Unicamp) e pesquisador-associado do Núcleo Práxis de pesquisa, educação popular e política da Universidade de São Paulo (USP).
[1] Vale expor meu conhecimento sobre a obra, sendo realizada graças a descoberta e entusiasmo de Júlia Ferraz, artista, estudante e minha parceira, que me contava sobre a narrativa e fazia correlações com o pensamento social crítico. E, em conversas sobre as questões brasileiras, a professora Carolina Bagnolo, que acompanha meu estágio de formação docente, me emprestou o livro com boas recomendações.
[2] Panorama com Clarice Lispector (1977): https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 12 jul. 2023.
Referências bibliográficas
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. 1ª ed. 16ª reimp. São Paulo: Todavia, 2019.
ROCHA, Glauber. Estética da fome. 1965. Disponível em: https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/leia-a-integra-do-manifesto-uma-estetica-da-fome-de-glauber-rocha/. Acesso em: 09 jul. 2023.
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 9ª ed, Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo, SP: DIFEL, 1972.