Em 2030, teremos várias potências globais
Longe de sofrer um declínio em hard power, os maiores estados nacionais continuam reforçando suas capacidades militares. A lista dos dez países que mais gastaram com defesa em 2015 inclui Estados Unidos, China, Rússia, Índia, Japão e AlemanhaRobert Muggah
O cenário político mundial em 2030 terá uma aparência consideravelmente diferente. As nações continuarão a ser os atores centrais. Mas não haverá uma força hegemônica única, e sim algumas – as principais serão Estados Unidos, Rússia, China, Alemanha, Índia e Japão, com tendências semi-imperiais. O poder estará mais amplamente distribuído por redes não estatais, inclusive as conservadoras. E enormes conurbações urbanas e suas periferias terão influência cada vez maior. A ordem mundial do pós-guerra, de pé desde a metade do século XX, está começando a desmoronar. Podemos prever um futuro de incerteza e instabilidade.
Os estados nacionais estão voltando. Os maiores estão expandindo ativamente seu alcance global, ao mesmo tempo em que reforçam suas fronteiras territoriais e digitais. Com o avanço de uma violenta ofensiva da política reacionária em todo o mundo, não há qualquer garantia de que esses vastos domínios e territórios que gravitam em torno deles venham a se tornar mais liberais ou democráticos. Em vez disso, a mudança inexorável do clima, a migração mais intensa, o terrorismo, a desigualdade e a rápida mudança tecnológica vão aumentar definitivamente a ansiedade, a insegurança e, como infelizmente já podemos constatar, o populismo e o autoritarismo. Embora arranhado, o reinado de quatro séculos dos estados nacionais ainda persistirá por algumas décadas.
Mas não era para ser assim. Durante os anos 1990, estudiosos previram o declínio e o fim do estado nacional. Esperava-se que a globalização decretasse sua irrelevância. Com o aparente triunfo da democracia liberal, a disseminação do capitalismo de livre-mercado e a promessa de interferência mínima do Estado, Francis Fukuyama fez a famosa previsão do fim da história e, por extensão, do desaparecimento dos anacrônicos estados nacionais. Uma afirmação semelhante havia sido feita um século antes por Friedrich Engels, que previu o “definhamento do Estado” na esteira do socialismo.
O fim do Fim da História
As previsões revelaram-se exageradas. O fim da história não chegou e a democracia liberal não está em ascensão. Misha Glenny sustenta que “Fukuyama e outros subestimaram a arrogância ocidental e a ganância do capitalismo financeiro, fatores que contribuíram em 2008 para uma das mais sérias crises políticas e econômicas desde a Grande Depressão. Esses choques – ao lado de uma reação feroz contra a globalização – possibilitaram que modelos alternativos de governança se reafirmassem […], como a China e a Rússia por exemplo, mas também outros Estados na Europa […], e a consolidação de estados nacionais não liberais”.
Longe de sofrer um declínio em hard power, os maiores estados nacionais continuam reforçando suas capacidades militares. A lista dos dez países que mais gastaram com defesa em 2015 inclui Estados Unidos, China, Rússia, Índia, Japão e Alemanha. Alguns destes – juntamente com grandes compradores de materiais bélicos como Israel e Arábia Saudita – estão claramente se preparando para participar de confrontos na próxima década. E não estão sozinhos. O gasto mundial com defesa vem aumentando regularmente desde o final dos anos 1990, superando o US$ 1,3 trilhão no ano passado. É bastante provável que essa tendência se mantenha nos próximos dez anos.
Esses mesmos Estados ainda vão dominar o cenário econômico. Estados Unidos, China, Alemanha, Índia e, em menor medida, Rússia tiveram alguns dos maiores PIBs de 2015. Se ajustados por paridade de poder de compra, o PIB da China supera o dos Estados Unidos, e o da Rússia também sobe nos rankings. É provável que esses países também continuem a ser os maiores produtores em 2030, ao lado de Brasil (se conseguir pôr ordem na casa), Canadá, França, Itália, México, Indonésia e outros. A menos que haja um enorme colapso do mercado global ou um conflito armado catastrófico (ambos agora mais plausíveis na esteira da vitória de Donald Trump), esses países continuarão a ditar o rumo dos assuntos internacionais.
Os estados nacionais, não são, evidentemente, a única forma de organização político- econômica. Eles estão perdendo terreno para modos alternativos de governança, poder e influência. A quarta revolução industrial está acelerando essa mudança. Como explica Anne-Marie Slaughter, “os estados nacionais são o mundo do tabuleiro de xadrez, da geopolítica tradicional […] [mas a] web é o mundo das redes empresariais, cívicas e criminais que recobrem e complexificam o jogo jogado pelos estadistas”. Na visão dela, estadistas mulheres devem aprender a utilizar a web para mobilizar e articular o poder não-governamental da mesma forma com que o estadismo faz com o poder governamental.
Grandes regiões metropolitanas já estão fazendo frente a estados nacionais em termos de influência política e econômica. Tome-se o caso da Cidade do México, que dispõe de 100 mil policiais, uma força de segurança maior que os departamentos policiais de 115 países. Ou considere-se o orçamento anual de Nova York, de US$ 82 bilhões, maior que todo o orçamento nacional de 160 países. Enquanto isso, as populações de megacidades como Seul e Tóquio são maiores que a da maioria dos estados nacionais. Muitas cidades estão rapidamente forjando parcerias transnacionais e integrando infraestrutura energética, de transportes, de telecomunicações. E os cidadãos estão expressando novas formas de pertencimento à cidade, abarcando as esferas física e digital, e desafiando a noção tradicional de identidade nacional.
Quatro ameaças ao estado nacional
A maioria dos estados nacionais continuará a existir nas próximas décadas. Eles serão, no entanto, tensionados de várias maneiras.
Em primeiro lugar, a redistribuição de poder entre um punhado de grandes estados nacionais está desorganizando profundamente a ordem global. Potências estabelecidas no século XX, como os Estados Unidos e a União Europeia, estão cedendo importância e influência para a China e a Índia, que apresentam crescimento mais rápido. Velhas alianças formadas depois da Segunda Guerra Mundial estão dando lugar a novas coalizões regionais na América Latina, na Ásia e na África. Embora essas reconfigurações reflitam alterações regionais políticas, econômicas e demográficas, elas também aumentam o risco de volatilidade, inclusive de guerra. Como explica Parag Khana, “grandes estados nacionais de dimensões continentais continuarão tentando controlar as cadeias de fornecimento nas áreas de energia e tecnologia, e estados menores precisarão agir em grupo ou arcar com as consequências de sua irrelevância”.
Em segundo lugar, a desconcentração de poder para fora dos estados nacionais está produzindo um nível paralelo de governança. Na verdade, os próprios estados nacionais estão estabelecendo enclaves legais e físicos para terceirizar funções essenciais, delegando-as a entidades privadas. Já existem mais de 4 mil zonas econômicas especiais registradas espalhadas pelo mundo – de zonas de livre comércio e processamento de exportações a portos livres e parques de inovação. Muitas das estabelecidas na China, Malásia, Coreia do Sul e Emirados Árabes Unidos são consideradas relativamente bem-sucedidas, enquanto outras – em especial zonas na África e no Sul da Ásia que foram estabelecidas de forma muito rápida – tiveram pior desempenho. Esses para-estados fundem deliberadamente interesses públicos e privados e põem à prova a capacidade de controle da soberania estatal.
Em terceiro lugar, estados nacionais e para-estados serão pressionados por redes descentralizadas de atores e coalizões não estatais, muitas delas possibilitadas pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Grandes empresas multinacionais já estão bastante envolvidas na construção de políticas públicas nacionais. O mesmo se dá com organizações não governamentais, sindicatos, grupos religiosos e outros. Trabalhando de modo construtivo com o estado e não contra ele, essas redes digitais serão um teste decisivo para os estados nacionais. A disseminação de novas tecnologias renova as possibilidades para a democracia participativa, mas também pode acabar com ela. Eis as duas facetas da sociedade quantificada: traz vantagens e oportunidades extraordinários, mas também riscos que vão da eliminação de empregos de baixa qualificação a assustadoras novas formas de guerra, terrorismo e criminalidade.
Em quarto lugar, os estados nacionais estão vendo o poder ser devolvido às cidades. Em parte, o responsável por isso é o ritmo irrefreável da urbanização. O número de cidades de médio e grande porte é dez vezes maior que nos anos 1950. Hoje há 29 megacidades com 10 milhões de habitantes ou mais. Outras 163 cidades têm mais de 3 milhões de pessoas, e pelo menos 538 têm no mínimo 1 milhão. As cidades não mais apenas adotam normas, mas as criam. Está surgindo uma nova geração de prefeitos e literalmente centenas de coalizões municipais que vão garantir que nosso futuro nas cidades seja tema integrante das relações internacionais. Não é de se estranhar que a geografia do poder também esteja mudando: cidades competem cada vez mais entre si e com os países por água, comida e energia.
Saskia Sassen mostrou de forma convincente como o surgimento de cidades globais é gerado pela importância crescente da intermediação. Em The Global City, ela explica como a desregulação e a privatização de economias nacionais foram cruciais para a globalização de cidades durante os anos 1980 e 1990. Isso, por sua vez, aumentou drasticamente a demanda por talentos altamente especializados e contribuiu para a hiper gentrificação, que os habitantes de Londres, Nova York, Xangai e Hong Kong conhecem tão bem. Todos esses acontecimentos alteraram fundamentalmente a tessitura da vida urbana, suscitando questões sobre a sustentabilidade dos estados nacionais.
Há uma enorme quantidade de desafios pelos quais os estados nacionais devem passar na próxima década e meia. Tendo sobrevivido por 368 anos, eles provaram ser uma forma extremamente resiliente de organização política, social e burocrática. Mas, dadas a escala e a gravidade dos desafios globais – e a paralisia de nossas instituições nacionais e multilaterais –, podem estar se tornando obsoletos e hostis à sobrevivência coletiva da humanidade.
A possibilidade de que os estados nacionais mais poderosos se tornem reféns de interesses bairristas e protecionistas está mais presente do que nunca. Por outro lado, as redes de cidades e da sociedade civil constituem fortes centros político-econômicos de e e poder. A questão é se elas vão cumprir a função de canais de ação coletiva para dar conta das ameaças do futuro.
Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé
*Com contribuições de Anne-Marie Slaughter, Saskia Sassen, Misha Glenny e Parag Khana.