Em ano de copa, a goleada tem que ser contra o tráfico de pessoas
O tráfico de pessoas pode acontecer por meio de ofertas fraudulentas de trabalho, em geral, maquiadas por propostas apelativas. Outra forma menos conhecida é o tráfico de atletas, ou “tráfico humano desportivo” como também é chamado, que ocorre sobretudo no futebol
O tráfico de pessoas é, mais do que um crime e uma indústria bilionária, um problema mais próximo e comum do que pensamos.
Se engana quem o associa àquela imagem antiquada, quase caricata, de pessoas que são traficadas acorrentadas, claramente vítimas de maus tratos e violações. Hoje, o tráfico humano ocorre sobretudo de maneira silenciosa, sem que, em das muitas vezes, nem a própria vítima tenha percepção de sua própria condição.
Na sua forma mais comum, a prática criminosa se desenvolve por meio de ofertas fraudulentas de trabalho, em geral, maquiadas por propostas apelativas, que seduzem e dão esperança a sonhos, como o de ter uma carreira internacional, ascender socialmente e trabalhar com aquilo que se ama. Todos os anos, milhares de jovens mulheres, que se encaixam nos padrões de beleza impostos pela sociedade, mudam de país com a promessa de uma carreira de modelo internacional e acabam caindo em redes de exploração sexual.
Essa forma de tráfico de pessoas é bastante comum, mas há outra que é menos conhecida e afeta os jovens e, cada vez mais, as jovens brasileiras: o tráfico de atletas, ou “tráfico humano desportivo” como também é chamado, que ocorre sobretudo no futebol. A obrigação de elenco feminino nos clubes e a tardia, porém, necessária popularização do futebol feminino, acentua a necessidade de atenção ao tema, uma vez que a questão de gênero adiciona às possibilidades, gravidade e formas de exploração envolvidas.
A ideia de que somos “o país do futebol” se confirma no número de transferências internacionais de atletas: lideramos o ranking mundial de futebolistas jogando fora das fronteiras nacionais, com mais que o dobro de jogadores que a Argentina e Inglaterra, segunda e terceira colocadas, respectivamente, de acordo dados do Relatório de Transferências Globais de 2021 (em tradução livre) da Federação Internacional de Futebol (Fifa).
Ao mesmo tempo que essa cifra possibilita que grandes talentos tenham suas carreiras potencializadas e conquistem o sonho de ter uma trajetória de sucesso em clubes do exterior, há um lado sombrio que ela também carrega: traficantes, visando o lucro e obtenção de vantagem com situações de exploração de pessoas, se passam por empresários idôneos de times de futebol e atraem jogadores que acabam caindo em redes criminosas.
Em geral, os atletas já começam o processo de transferência com dívidas, pagas a título de agenciamento, e se veem presos a contratos cujas multas de rescisão são altíssimas e acabam desencorajando qualquer tipo de rompimento com a situação. É importante frisar que as melhores práticas no ramo operam o pagamento de comissão entre clubes e empresários, deixando os jogadores sem o ônus financeiro na tratativa, ou ainda, quando existe um pagamento do jogador em função do agenciamento, esse ocorre sobre a forma de desconto no salário, feito conforme o recebimento do mesmo.
Há ainda outros elementos que são comuns no tráfico desportivo, como contratos sem tradução para o português, ou mesmo para o inglês e espanhol, que acabam permitindo, ainda que por omissão, a cobrança de valores pela moradia, alimentação, uso de material esportivo, vestuário, entre outros, criando um sistema de endividamento e, consequentemente, a chamada “servidão por dívida” – prevista do artigo 149 do Código Penal brasileiro, que trata do crime de trabalho em condições análogas à escravidão.
Pode ocorrer ainda o trabalho forçado, em que os atletas acabam por assumir responsabilidades relacionadas à limpeza e manutenção de locais de treino, moradia, uniformes, entre outros, sem que isso seja remunerado à parte, e tampouco pactuado com observância às boas práticas laborais parametrizadas pela Organização Internacional do Trabalho.
A estratégia também costuma vir acompanhada de outra tática usada para aumentar a vulnerabilidade das pessoas exploradas e minimizar a chance de que elas denunciem a situação nos países que em se encontram: a retenção de documentos. Os supostos empresários ou agentes dos clubes ficam com a posse dos passaportes e outros títulos de identificação dos jogadores, sobretudo em países em que circular sem os mesmos pode trazer implicações legais.
A Copa do Mundo de Futebol tem papel relevante nesse cenário, já que, ao mesmo tempo que aguça os sonhos de nossos e nossas jovens, em momento de aprofundamento das desigualdades sociais, no qual as pessoas estão mais suscetíveis a abraçar oportunidades incertas, o evento da Fifa também pode servir de pretexto e palanque para visibilizar o problema, permitindo maior conscientização e, consequentemente, prevenindo sua ocorrência. É importante trabalhar o potencial transformador do esporte também pelo viés da informação que ele pode carregar.
Ainda, cabe observar o seu alcance, que permeia os mais variados extratos sociais, inclusive aqueles de menor grau de instrução, e a sua extensão em termos de alcance geográfico, já que a Fifa, cujo lema é “Pelo jogo. Pelo mundo”, congrega 211 federações nacionais, ao passo que Organizações das Nações Unidas conta com 193 países membros.
Desde 2013, a ONU instituiu o 30 de julho como Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com o objetivo de “criar maior consciência da situação das vítimas do tráfico de seres humanos e promover e proteger seus direitos”. Cabe não só alertar sobre a prática, mas também cobrar que clubes, sindicatos, órgãos públicos de fiscalização e repressão e também nossos políticos tenham a devida atenção com o tema.
São necessários mecanismos legislativos que deem conta da devida tipificação e punição do crime, além da instituição das melhores práticas regulamentadoras do exercício profissional desportivo. É fundamental a criação e o aprimoramento de políticas e protocolos que facilitem a identificação da prática, bem como a conscientização de atletas, seus familiares e da sociedade no geral com conteúdo de amplo acesso e fácil compreensão. Somente assim construiremos uma sociedade brasileira e global com o #EsporteSemTraficoHumano.
Victor A. Del Vecchio é advogado de Direitos Humanos, pesquisador do Observatório das Migrações em São Paulo (Unicamp) e mestrando em Direito Internacional Público na USP
Ricardo Barros é assistente social na Sociedade Esportiva Palmeiras, com passagem pelo Santos F.C., Red Bull Bragantino F.C.