Em busca da soberania.
No espaço de semanas, o mito da passividade dos povos árabes e da sua inaptidão à democracia voou em estilhaços pelos ares. Pela primeira vez desde os anos 1970, não se poderá mais analisar a geopolítica sem levar em conta, ao menos parcialmente,as aspirações de povos e países que voltaram a ser donos do seu destino.Alain Gresh
Esse grande país muçulmano foi arrasado por greves e manifestações que duraram várias semanas. A crise econômica e social, os saques constantes do Estado perpetrados pela família do presidente e um autoritarismo sem limite abalaram esse pilar da política estadunidense na região. Apesar de tudo, Washington abandonou seu antigo aliado. A secretária de Estado pediu ao ditador que se demitisse, de maneira a “abrir caminho para uma transição democrática”.
Estes fatos não ocorreram no Egito em fevereiro de 2011, mas sim na Indonésia em maio de 1998. Foi Madeleine Albright quem deu aquela declaração, e não Hillary Clinton. O déspota Suharto, que ascendera ao poder com a ajuda da Agência Central de Inteligência (CIA) em 1965, após ter mandado massacrar meio milhão de comunistas, fossem eles militantes convictos ou supostos, teve que sair de cena. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da União Soviética (1991), a Indonésia perdera seu lugar de posto avançado da luta contra o comunismo e, em Washington, os dirigentes preferiram incentivar um movimento de democratização e orientá-lo num sentido favorável aos interesses dos Estados Unidos. Tanto mais que o presidente Bill Clinton estava querendo transmitir ao mundo uma imagem mais aberta da sua nação. Finalmente, a decisão revelou-se hábil, já que Jacarta manteve relações estreitas com Washington, embora a Indonésia, membro ativo da Organização da Conferência Islâmica (OCI), tivesse dado mostras de independência, por exemplo, em relação ao dossiê nuclear iraniano.
Quais lições podem ser tiradas desse episódio? Em primeiro lugar, a de que nenhuma ditadura é eterna, mesmo quando assola o mais povoado dos países muçulmanos. Em segundo lugar, que embora as mudanças internas influam na política externa, a amplidão das evoluções varia em função dos contextos: o Egito não é a Indonésia; o Oriente Médio não é o Sudeste da Ásia.
Há muito, nos corredores das chancelarias ocidentais, fazer escárnio da “rua árabe” era uma atitude que se tornara banal. Por que eles deveriam levar em conta aquilo que pensavam centenas de milhões de indivíduos dos quais nada poderiam esperar, a não ser, no melhor dos casos, slogans islâmicos ou antiocidentais, ao passo que eles se entendiam tão bem com dirigentes tão competentes na tarefa de impor uma ordem salutar em seu país? Por que deveriam eles se preocupar, já que monarcas e presidentes recebiam nossos dirigentes, e até mesmo nossos intelectuais, com uma hospitalidade tipicamente oriental? E já que esses autocratas mantinham a ficção de um “processo de paz”, ao passo que a colonização israelense ia se estendendo?
Tomando o destino nas mãos
No espaço de algumas semanas, o mito da passividade dos povos árabes e da sua inaptidão à democracia voou em estilhaços pelos ares. A revolta tunisiana e a egípcia, os movimentos que vêm abalando esta região, da Argélia ao Bahrein, passando pelo Iêmen e a Líbia, e que também atingem o Irã não árabe, não dizem respeito apenas a escolhas entre modelos de sociedade e de desenvolvimento, mas também à política regional. Pela primeira vez desde os anos 1970, não se poderá mais analisar a geopolítica sem levar em conta as aspirações de povos e países que voltaram a ser donos do seu destino.
Este é o caso, em primeiro lugar, do Egito. Embora seja cedo demais para adivinhar quais serão os contornos da sua futura política externa, todos os observadores admitem que a Casa Branca perdeu um aliado fiel, um amigo leal no qual, com Israel, baseava a sua estratégia regional havia 30 anos – o Egito participou, entre outras, na guerra contra o Iraque (1990-1991). Nos últimos anos, Hosni Mubarak havia tomado a frente da cruzada contra a “ameaça iraniana”; ele havia conseguido alimentar a ilusão de um “processo de paz”, exercendo pressão sobre a Autoridade Palestina para que ela seguisse participando nas negociações, recebendo regularmente em Charm El-Cheikh dirigentes israelenses que não pareciam estar interessados em acordo de paz algum. Ele havia participado do bloqueio a Gaza e contribuído para o fracasso de todas as tentativas de reconciliação entre o Hamas e o Fatah, até mesmo aquela negociada por outro país “moderado”, a Arábia Saudita (acordos de Meca, maio de 2007). Durante a insurreição atual, alguns manifestantes erguiam cartazes redigidos em hebraico, afirmando que esta era a única língua que Mubarak compreendia.
O Conselho Supremo das forças armadas egípcias, que assume por enquanto o poder efetivo no Cairo, fez questão de tranquilizar Washington e Tel-Aviv, confirmando que o país respeitaria seus compromissos internacionais – uma referência aos acordos de Camp David (1978) e à paz entre Israel e Egito assinada em 1979. Contudo, embora seja pouco provável que o povo egípcio reclame o retorno ao estado de guerra, ele não considera esses textos como um fator de paz e de estabilidade regionais – ao contrário.
Toda vez que essa possibilidade lhe foi oferecida, o povo egípcio manifestou sua solidariedade com a Palestina e o Líbano. Durante a guerra de 2006, retratos de Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah, cobriam as paredes das lojas no Cairo, enquanto no mesmo momento o regime condenava o caráter “aventureiro” da organização. Os manifestantes que lutaram para impor o pluralismo e a democracia não têm qualquer simpatia declarada com o Irã, um país não árabe e xiita, considerado historicamente como rival, cuja orientação repressora vem se confirmando um pouco mais a cada dia. Em contrapartida, eles gostam da sua recusa a se dobrar aos comandos dos Estados Unidos e de Israel.
Em breve, um novo governo egípcio deverá levar a sua opinião em consideração, tanto em sua maneira de lidar com a Faixa de Gaza quanto nas suas relações com Israel e, na certa, adotará uma política mais reservada em relação às tentativas estadunidenses de criar uma frente comum (não proclamada) dos países árabes e de Israel contra Teerã.
A margem de manobra do Cairo também dependerá do seu alicerce econômico, abalado por anos de “liberalização”. O país permanece dependente da ajuda militar e alimentar dos Estados Unidos e das contribuições dos fundos da União Europeia, as quais se destinam a compensar a fragilidade da sua economia. Alguns evocam a possibilidade de as autoridades egípcias adotarem uma política externa independente, similar àquela da Turquia; mas a margem de manobra de Ancara se baseia no dinamismo da sua economia e num Produto Interno Bruto (PIB) três vezes superior ao do Egito.
As mudanças no Cairo causaram preocupação nos outros países árabes apresentados como “moderados” e, em primeiro lugar, na Arábia Saudita, cuja principal autoridade, o rei Abdala, interveio junto ao presidente estadunidense em favor de Mubarak. Um temor assombra esses dirigentes: o do declínio estadunidense na região. Ainda que os EUA tenham demonstrado sua capacidade de consolidar uma ampla frente contra o programa nuclear iraniano e impor sanções, nada disso apagou o seu fracasso no Iraque, nem a situação crítica em que estão atolados no Afeganistão e a sua incapacidade em obter do governo israelense a suspensão da colonização.
A demissão do governo libanês de Saad Hariri, em janeiro de 2011, e o abandono de Mubarak à sua própria sorte agravaram os temores dos “moderados” árabes, apavorados com a extensão do movimento em favor da democratização, do Iêmen à Jordânia. A própria juventude do Golfo andou se mostrando receptiva aos acontecimentos na Tunísia e no Egito.
Quanto à Autoridade Palestina, ela perde com Mubarak um aliado fiel, hostil à reconciliação com o Hamas, que oferecia uma garantia para a sua política de negociação com Israel. Ela terá de levar em conta esta nova situação. Em meados de fevereiro, durante a discussão de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que ela havia apresentado, condenando a colonização israelense, Barack Obama contatou Mahmoud Abbas para pedir-lhe para retirar o texto. Apesar da forte pressão do presidente estadunidense, este último recusou-se a atender ao pedido, marcando um endurecimento da sua estratégia com o “grande irmão” estadunidense. Será que o impasse levará a juventude da Cisjordânia – assim como a de Gaza, aliás – a manifestar por sua vez as suas aspirações a uma maior liberdade e a mais dignidade? A inscrever a sua luta no quadro da defesa dos direitos humanos e da igualdade? A ocupar as ruas pacificamente, ao mesmo tempo contra os seus dirigentes e contra a ocupação? Conforme noticiou o Jerusalem Post 1, o exército israelense está se preparando com temor para esta eventualidade, criando uma força de reação rápida.
Ainda mais preocupado que os aliados árabes de Washington, o governo de Benjamin Netanyahu declarou seu apoio inabalável a Hosni Mubarak. Segundo comenta Daniel Lévy, membro influente do think tank New America Foundation, esta atitude projeta uma luz diferente e peculiar sobre a referência constante de Tel-Aviv ao fato de que Israel seria “a única democracia no Oriente Médio”: esta frase não expressa o temor de estar isolado, cercado por ditaduras, mas sim, ao contrário, um desejo de permanecer “‘sozinho’ nesta condição”2.
Por enquanto, o governo israelense parecer estar paralisado pelo medo diante das mudanças que estão ocorrendo; exagera deliberadamente o papel dos islâmicos; tenta apontar paralelos com a revolução islâmica de 1979 em Teerã, multiplicando as bravatas a respeito da “ameaça iraniana” que o mundo não estaria compreendendo ou anunciando aos soldados, como fez o ministro da defesa, Ehoud Barak, por ocasião de uma visita na frente norte, que eles poderiam ser chamados a invadir novamente o Líbano3.
Se “o Ocidente perdeu”, será o caso de afirmar que o eixo Damasco-Teerã e seus aliados do Hamas e do Hezbollah levaram vantagem com isso? Sem dúvida, mas os seus pontos fracos são patentes. O Hamas está circunscrito à área de Gaza, enquanto o provável indiciamento dos dirigentes do Hezbollah pelo Tribunal especial para o Líbano enfraquece a organização liderada por Hassan Nasrallah4.Embora as autoridades iranianas tivessem saudado a revolução egípcia, elas abafaram de maneira impiedosa os manifestantes que apresentavam reivindicações similares e se envolveram numa terrível lógica repressiva.
Já na Síria, o presidente Bachar Al-Assad dispõe de dois trunfos: o medo da população de que insurreições desemboquem numa instabilidade à iraquiana, com enfrentamentos confessionais, e a sua posição de firmeza frente a Israel, incontestavelmente popular. Contudo, o país, envolvido em programas de liberalização econômica, conhece uma forte expansão demográfica e está tendo de enfrentar graves dificuldades econômicas e sociais, sem falar das aspirações dos jovens sírios à liberdade, bastante similares àquelas dos demais árabes.
Evocamos na introdução a Indonésia e a maneira pela qual Washington havia sido capaz de adaptar-se à queda da ditadura. A principal diferença com o Oriente Médio de hoje diz respeito à Palestina, a qual muitos observadores creem, equivocadamente, que se tornou secundária para os manifestantes. No Cairo, os organizadores baniram deliberadamente todo slogan antiestadunidense e anti-israelense, tendo decidido concentrar-se num só adversário, o regime; vontade que foi entendida por todos. Mas após a queda de Mubarak, quando da gigantesca celebração da vitória no Cairo em 18 de fevereiro, os manifestantes retomaram maciçamente os slogans sobre a liberação de Jerusalém.
Ao longo de décadas, os Estados Unidos puderam apoiar Israel de maneira quase incondicional, sem pagar qualquer preço por isso – a não ser o da impopularidade, o que não tinha importância alguma para eles –, já que os dirigentes árabes permaneciam seus aliados fiéis. Esse período está chegando ao fim. O novo contexto geopolítico vai forçar a administração estadunidense a fazer escolhas cruciais. Mas será que ela vai querer fazê-las? Terá capacidade para tanto? Essas indagações também podem ser dirigidas à União Europeia, igualmente comprometida pela sua colaboração, sem qualquer atrito, com Ben Ali e Mubarak.
No espaço de alguns anos, o mundo tornou-se policêntrico. Cada grande país, do Brasil à China, da Índia à África do Sul, busca ocupar o seu lugar, não contra o Ocidente, nem a seu serviço, mas sim ao lado, interessado em defender seus próprios interesses. Assim, a Turquia, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliada dos Estados Unidos, vem desempenhando um papel regional crescente, dando mostras de independência tanto em relação ao dossiê nuclear iraniano quanto à Palestina5. O Magreb6 e o Oriente Médio buscam por sua vez integrar essa movimentação. “O que os povos da região estão pedindo”, analisa Graham Fuller, antigo profissional da CIA e autor do livro The future of political islam, “é poder controlar sua vida e seu destino. (…) Em curto prazo, isso pressupõe uma medicação severa: Washington deve se distanciar deles e deixar as sociedades resolverem seus assuntos por conta própria, o que implica pôr fim à antiga política de infantilização dos povos do Oriente Médio (…) com base numa visão míope dos ‘interesses estadunidenses’7”.
“Nem o Leste, nem o Oeste”, gritavam os manifestantes iranianos em 1979, afirmando sua vontade de confrontação tanto com os Estados Unidos quanto com a União Soviética. “Nem com o Ocidente, nem contra ele”, poderiam gritar os manifestantes de hoje pelo mundo árabe afora, que afirmam uma vontade de independência e soberania num mundo que eles sabem ser multipolar. Eles julgarão o Ocidente pela sua capacidade de defender os princípios da justiça e do direito internacional em todo lugar no mundo e, principalmente, na Palestina. Mas eles não mais aceitarão que o seu governo se valha da luta contra o Ocidente para impor a ditadura.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).