Em Iaras, o MST produz
Todo mundo deve saber que no interior de São Paulo há um senhor plantando abóbora e um casal que cultiva verduras e vende ovos caipiras. As famílias são pobres, mas têm uma enorme consciência política. Uma visita ao assentamento dos sem-terra mostra uma vida solidária e cooperativa
Iaras, no interior de São Paulo, é uma cidade bem pequena. Para quem está acostumado a andar, é possível cruzá-la, de ponta a ponta, em mais ou menos 20 minutos. Do trevo até a praça principal, onde estão a igreja e a Câmara dos Vereadores, acho que são seis ou sete ruas. Logo, um caminho de chão batido aparece e, virando a esquina, damos de cara com algumas pequenas propriedades, de tamanho aparentemente simétrico, ao longo de uma estrada de terra.
Quando cheguei, fui visitar a primeira das casas. Antes de passear pelo quintal, experimentei uma porção de “mandioca frita sem agrotóxico”. Shirlei, a dona da casa, acrescentou orgulhosa que tinha acabado de colhê-la. De fato, estava bastante fresca e macia. Foi difícil manter a educação e não comer todas. No quintal, ela cultiva uma horta com algumas verduras, um pouco de jiló, banana e pimenta. A produção garante a subsistência da família e oferece ainda alguma renda, sobretudo com o comércio da pimenta, já famosa na região. Shirlei, toda alegre com a visita e orgulhosa com a plantação, me oferece um gole da cachaça Nova Vida.
O gosto é suave, com um leve toque frutado. Faço um elogio e ameaço repetir. Adenilton, o primo dela que me apanhou na rodoviária, comenta que a cachaça é produzida num miniengenho ali perto. Peço para visitá-lo, e logo um senhor simpático, com todo o jeito de homem do campo, nos recebe. O orgulho, aqui, é um sentimento muito presente: é com um enorme sorriso que o seu Celso me leva para ver a sua microfábrica. São três ou quatro aparelhos, limpos e organizados, que ele manipula sozinho desde 4 de agosto de 2007. Aliás, reparo que meus novos amigos guardam muito bem as datas (dia, mês e ano, sempre assim), sinal de quem tem apreço pelo que é importante.
Tanto a plantação da Shirlei quanto o microengenho do seu Celso fazem parte de um projeto muito bem-sucedido de famílias que reivindicavam terra para produzir. São exemplos de como a reforma agrária não é apenas possível como, se for feita direito, tem tudo para dar certo. Antes de ir embora, pergunto para a Shirlei como é a relação entre os assentados e os moradores da cidade de Iaras. “Agora é muito boa. Quem estraga a relação do campo com a cidade é o político.” Mesmo já regularizados e produzindo, alguns assentados dessa primeira região que visitei não se sentem seguros. Eles temem que a qualquer momento alguma tramoia política os expulse.
Depois dessa primeira visita, com a tarde já caindo, peguei uma carona no carro do Lega, um líder local do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), até a área que eles ocupam, na zona rural de Iaras e de um município vizinho. Junto comigo vão dois outros líderes: Marcelo e sua esposa. As estradas de terra são precárias, eu noto em voz alta. Lega reclama que o prefeito não faz nada para conservá-las, mas logo depois me tranquiliza: “Você tem um piloto de verdade aqui”. No banco de trás, Marcelo comenta que talvez Lega seja o melhor conhecedor daquelas terras. “Eu decorei cada buraco”, ele confirma com mais um tanto de orgulho.
Reparo que estou entre pessoas de cabeça erguida. Elas gostam de mostrar suas habilidades, falam com segurança, refletem o tempo inteiro sobre questões políticas e não parecem sentir vergonha do estado de privação que, em muitos casos, vivem. Marcelo e a esposa, por exemplo, moram em um barraco bastante precário no meio de uma plantação de árvores que, Lega me explica, foi levantada em terras da União (destinadas à reforma agrária) com o objetivo de produzir papel. Marcelo mostra como sobrevive com a energia elétrica de uma bateria, acaricia os três filhotinhos de cachorro que trouxe da cidade e reclama da presença de insetos e aranhas. Uma fogueira serve ainda para espantar as cobras à noite. A gente se despede.
Quando volto para o carro, olho embaixo do banco para ver se alguma cobra não está se escondendo para me dar um susto, já que eu tinha deixado a porta aberta. Lega dá risada: “Não tem perigo”.
Vamos em direção ao Agrocentro, uma fazenda desapropriada que está em posse do MST. Alguns lotes já foram regularizados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), enquanto uma grande parte da terra aguarda definição. Até a documentação adequada sair, muitos ficarão acampados, plantando e sobrevivendo em condições desfavoráveis. Aliás, a região inteira é formada por terras da União que aguardam a reforma agrária. Elas já estão reservadas para isso, mas tudo caminha muito devagar.
Enquanto me explica a situação das terras, Lega vai desviando dos buracos com muita habilidade. Tenho mesmo um piloto aqui. Atravessamos uma plantação de cana e um terreno cheio de árvores destinadas à fabricação de papel. A situação dessa área também é complexa: grandes empresas arrendam a terra da União – Lega enfatiza que ela é destinada à reforma agrária – e plantam um tipo de árvore que estraga o solo, tornando-o muito seco. Depois, quando a empresa deixa para trás um terreno infestado de tocos, os lotes são divididos.
Nessa condição, no entanto, o solo não produz muito bem. “Tem gente que fala que os sem-terra recebem o lote e, alguns, passam adiante. A gente não deixa, mas muitas vezes fazem a reforma agrária em terras muito ruins”, Lega explica.
De repente, o pneu canta e o carro fica paralisado. Encalhamos em um banco de areia. Lega manobra para um lado, força o volante para o outro, mas não saímos do lugar. O sol ainda não se pôs completamente. No escuro, ficar ali parado seria perigoso porque o carro é preto e poderia não ser visto por algum veículo que viesse pela mesma estrada. Rápido e sem reclamar, Lega se joga no chão, faz um buraco e começa, com as mãos mesmo, a abrir um caminho por baixo do carro. Quando vejo, ele quase desapareceu no meio da areia.
“Você vê, Ricardo, a gente passa por isso todo dia e depois os caras querem prender a gente.” Com a ajuda de um assentado que passava por ali, conseguimos desencalhar e chegar ao Agrocentro. Só depois, de volta a São Paulo, entendi a frase do Lega: é que ele é um dos acusados pela ocupação da fazenda da Cutrale1, ali em Iaras mesmo, no final de 2009. Segundo muita gente, inclusive parte grande da mídia, é um “elemento perigoso”. Não sei como. Durante o tempo inteiro em que Lega me levou para conhecer a região, não vi nenhuma atitude agressiva. Ao contrário, parece um sujeito paciente, o que espanta, por causa da quantidade de café que toma: uma xícara por barraco em que parávamos. Nunca vi nada igual.
Os sem-terra começam a trabalhar logo cedo. Um pouco depois das 6 h da manhã, Cícero já está cuidando da ordenha das vacas reunidas no Agrocentro. De domingo a domingo, ele e Maurício extraem o leite que irá engordar os quase 3 mil litros que, na região de Iaras, os sem-terra produzem. Um caminhão leva a maior parte para uma cidade vizinha, onde é vendido. Alguns litros, porém, são consumidos no lugar mesmo.
Cícero tem prática: desde jovem, trabalha com gado. Com o MST, está há quatro anos. “Aqui recuperei a minha dignidade. Eu estava com depressão, vim para cá e logo fiquei bom de novo.” Ele foi mandado embora do enorme latifúndio em que trabalhou por muito tempo, depois que ficou velho. Muitos trabalhadores rurais passam pela mesma situação, sem ter qualquer tipo de seguridade social. “O empresário do campo faz uma lista dos que vão ser condenados. Aí ele vem e executa a gente. É como se você morresse.” Cícero mergulhou em uma profunda tristeza, até que veio morar no acampamento Rosa Luxemburgo, perto do Agrocentro. “Vim de Avaré para recuperar a minha vida”, ele diz sorrindo. Pelo jeito, recuperou mesmo, e com vantagem.
Maurício, que também mora no Rosa Luxemburgo e, como Cícero, aguarda a definição do seu lote pelo Incra, explica que as vacas se alimentam apenas de pasto. Não há dinheiro para comprar ração, então os animais não produzem o tanto que poderiam. O problema do financiamento é outro que os assentados acabam tendo que enfrentar. A burocracia às vezes impede que a plantação ou a criação de animais prospere. Desconfio que seja proposital: atualmente é possível fazer um empréstimo de valor razoável, sem qualquer comprovação de renda, pela internet. O agronegócio de larga escala também conta com muito crédito. Por que para eles é tão difícil?
Quando a ordenha terminou, eu e Lega resolvemos visitar alguns assentamentos da região. Juntam-se a nós, no carro preto, o Torto, um rapaz de mais ou menos 20 anos que vive com o movimento já faz tempo, e Idalvo, mais conhecido como Cabeça Branca, por causa do cabelo grisalho. Ele conhece tudo sobre a região, inclusive a realidade bastante estranha dos documentos que regulam as propriedades. “É terra reconhecida pela União para fins sociais. Não sei por que demoram tanto para fazer a reforma agrária.”
Chegamos ao lote do Miguel, um dos assentados mais produtivos de Iaras. Enquanto o carro estaciona, reparo no cuidado de suas plantações. A horta é muito bem organizada, há um forno no qual em determinadas épocas do ano ele produz queijo, e suas galinhas colocam uma boa quantidade de ovos. Ele cultiva ainda frutas e verduras.
Miguel está com os sem-terra há 25 anos. Além de um assentado muito bem-sucedido, é um dos pioneiros do movimento. Começou no Sul e veio para São Paulo há 18 anos. Participou de várias ocupações históricas, como a de Getulina. “Fui preso um punhado de vezes”, diz com um pouco de vergonha. Entre os vários “crimes” de que foi acusado, um é o de formação de quadrilha. É algo sintomático: no Brasil, um movimento social organizado e com grande consciência política, reivindicando uma reforma agrária que, em muitos casos, mostra-se bem-sucedida, é tratado como coisa de quadrilheiros…
Ele é um pouco desconfiado e cita as diversas vezes em que a televisão e muitos jornais trataram os sem-terra como bandidos e vagabundos. De fato, não entendo como pode ser vagabundo um senhor que acorda às 5h30m da manhã para ordenhar o gado, e outro que produz ovos, queijo, frango, frutas e um monte de verduras diferentes.
Quando confia um pouco mais em mim, Miguel começa a contar a história da região. Ela remonta a 1908, do esforço do governo para abrigar imigrantes europeus. De lá para cá aconteceu de tudo: documentos que não aparecem, suspeitas de grilagem e mil e uma promessas que nunca se realizam. Segundo Miguel, até trabalho semiescravo foi encontrado na região. Ele é uma verdadeira enciclopédia da história de Iaras. Sabe o nome de pretensos proprietários de terras vizinhas e lista uma série enorme de esquisitices, para dizer o mínimo, que emperram o processo da reforma agrária. Há muitos políticos e empresários envolvidos. No final da conversa, para mim fica evidente por que interessa tanto à elite que ele seja preso.
Rosi, a esposa de Miguel, é vereadora na Câmara Municipal de Iaras. Ela faz parte da oposição, que é minoritária, e vem sofrendo algumas tentativas de intimidação da maioria. Conversamos na véspera de uma reunião em que seria decidida a continuidade de um processo interno que ela vem enfrentando desde a ocupação da Cutrale, no ano passado.2
A vereadora reclama muito da ausência de políticas públicas para os assentados. Para ela, a situação mais grave é com relação ao acesso das crianças ao ensino regular. Não existe nenhuma escola dentro do assentamento e elas precisam se deslocar longas distâncias até o lugar onde estudam. Com um pouco de tristeza nos olhos, Rosi me conta algo estarrecedor: para construir a Fundação Casa (a antiga Febem), o governo gastou seis meses. A escola não sai há quatro anos. Prender, portanto, é bem mais importante para esses políticos do que garantir estudo. Só isso já deixa claro quem é quem no enorme imbróglio que se seguiu à ocupação da Cutrale.
Do assentamento do Miguel e da Rosi vamos para o da dona Cleonice. Aqui está outro exemplo de sucesso da reforma agrária e da luta do MST. Junto com o marido, ela produz alface, couve, cebolinha e almeirão. A minigranja que montou em um dos cantos do lote conta com 300 galinhas. Há algum tempo, o casal fechou um contrato com o presídio de Iaras (além da Fundação Casa, a cidade abriga uma penitenciária de segurança máxima) para fornecer verdura.
Enquanto fala, lá vai ela toda orgulhosa buscar o cronograma do abastecimento. Cada dia da semana ela entrega um produto diferente. Outra parte do que colhe é vendida nas cidades próximas. Com o assentamento, que aconteceu há pouco mais de um ano, a família do casal teve um notável aumento no padrão de vida. Em pouquíssimos meses, já produz o suficiente para consumo próprio e o comércio. “Se continuar assim, e tudo indica que a produção só vai aumentar”, ela fala sorrindo, “logo vamos precisar contratar ajuda.” Ou seja: haverá, além de tudo, geração de emprego.
Mesmo que não faltem exemplos de sucesso entre os assentados, uma grande parte das terras de Iaras e dos municípios vizinhos destinadas à reforma agrária continua sem ser regulamentada pelo Incra. Enquanto aguardam a definição de seus lotes, muitas famílias vivem acampadas. Para elas, a situação é mais complicada: os barracos muitas vezes estão sobre o chão de areia, a infraestrutura é precária e o estado transitório não permite um trabalho mais cuidadoso com a terra.
Ainda assim, mesmo nos acampamentos, há bastante produção. Seu João Cristão Camargo nasceu em Iaras e está no acampamento Maria Cícera (o nome é uma homenagem à militante que morreu durante a marcha do MST em 2008) enquanto aguarda a regularização de seu lote. Ele é um desses idosos que guardam no olhar uma dignidade impressionante, a mesma que não deixa suas costas se curvar e que impulsiona as mãos em direção à horta. “Olha, moço”, me diz bastante alegre, “aqui eu planto milho, feijão e abóbora.” Mas o orgulho de João Cristão é a pequenina criação de porcos. Ele pretende distribuir alguns filhotes para os assentados, com a intenção de começar uma grande criação entre os sem-terra. “Na minha idade, o que eu mais desejo é multiplicar isso aqui.”
Almoçamos no barraco do Nelson. Ele reclama muito da imprensa e da opinião pública. “Já chamaram a gente de ladrão. Mas aqui ninguém nunca tirou nada de ninguém.” Não tenho a menor dúvida disso. Enquanto a salada está sendo feita (com verduras colhidas ali mesmo), ele me leva para conhecer a sua horta, outro orgulho do acampamento Maria Cícera. Com um graveto, mostra na terra como vai fazer quando sair o seu lote. “Aqui vou plantar um pouco de laranja e banana”, ele indica no pequenino quadrado, “já comprei uma muda de abacaxi. Depois, com o dinheiro que vou ganhar vendendo as frutas, quero comprar umas duas ou três vacas que vão ficar aqui. Olha, eu acho que vai dar certo.” É um sonho, penso enquanto me sirvo do almoço, mas até um ano atrás, a minigranja da dona Cleonice e do marido também era…
O acampamento Rosa Luxemburgo vive uma situação mais difícil. Localizado em terreno irregular, quando chove forte a lama escorre em direção aos barracos da parte mais baixa. Aqui as pessoas também aguardam a definição de seus lotes pelo Incra. Marta, por exemplo, está no MST há seis anos, e chegou a Iaras vinda de Sorocaba. Ela é a responsável pela organização do acampamento. Sempre que o movimento quer passar alguma informação ou precisa de algo, é Marta que se reúne com as famílias. Josi, uma espécie de braço direito de Marta, veio para cá depois de passar pelo Pontal do Paranapanema. Ela estava atrás de alguma tranquilidade, mas a tensão acabou aumentando em todos os lugares que visitei, depois da ocupação da Cutrale.
Aliás, muita gente que está aqui atrás de terra para produzir e ter uma vida com o mínimo de dignidade, agora tem outro motivo, além da chuva e da demora do Incra, para perder o sono. Todos sentem medo de que uma ação policial espalhe o terror. Enquanto me mostra o acampamento, Josi e Marta se dizem felizes. “O difícil aqui é o transporte. Se alguém ficar doente, até a ambulância chegar, morre.”
Apesar das dificuldades, Iaras é um dos casos bem-sucedidos do MST. Volto para São Paulo com certo sentimento de alívio: a mídia, como eu suspeitava, conta só uma parte da história. Por que nunca fala do sucesso dos assentados? E a história das terras, eu me pergunto, por qual motivo é tão escamoteada? O leitor não precisa ouvir a resposta, é evidente demais. A estrutura agrária brasileira, baseada no latifúndio, remonta às sesmarias. Qualquer país com um pouco mais de bom senso já teria feito uma amplíssima reforma agrária.
Seja como for, todo mundo deve saber que no interior do estado de São Paulo há um senhor, seu João Cristão, plantando abóbora e começando uma criação de porcos, e que um casal cultiva verduras e vende ovos caipiras. As famílias são pobres, mas têm uma enorme consciência política. De vez em quando um pedido de prisão preventiva, de intenções muito claras, atrapalha um pouco, mas as reivindicações não irão desaparecer. Em momento algum o orgulho dessas pessoas some, e é fácil saber o motivo: elas não são culpadas.
Mas não é só isso. A cabeça erguida de todos deixa bem claro que a mudança pode demorar, mas é inevitável. Ninguém vai desistir. Do lado de cá, na cidade, falta a gente abrir os olhos para os interesses envolvidos. Entre a Cutrale e o MST, entre o agronegócio para exportação baseado no latifúndio e a justiça no campo, eu agora já sei exatamente de que lado estou.
*Ricardo Lísias é escritor, autor de vários livros, entre eles O livro dos mandarins (ed. Alfaguara).
1 Em outubro de 2009, o MST ocupou a Fazenda-Indústria Cutrale, na área do Complexo Monções, supostamente grilada da União.
2 Vale lembrar que, em 15 de março último, o jornal Folha de S.Paulo denunciou que a Cutrale está sofrendo, junto com outros latifundiários da laranja, grave acusação de formação de cartel. Apesar da seriedade, a notícia não causou nem metade do estardalhaço com que a mídia tratou a ocupação.