Em Israel, a hora da inquisição
Projeto de lei sancionado por Benjamin Netanyahu promete impor novas exigências de transparência às organizações sociais israelenses. O texto, que visa punir as entidades que fazem oposição ao governo, se inscreve em um clima de caça às bruxas orquestrado pelos partidos que defendem a colonizaçãoCharles Enderlin
Não se passa uma semana sem que a direita e a extrema direita israelenses aleguem descobrir novos traidores. ONGs de esquerda denunciadas como “espiãs financiadas pelo estrangeiro” que colaboram com “o inimigo palestino”; escritores, artistas, personalidades políticas; na web, todos têm direito ao shaming, isto é, às intimidações e humilhações, frequentemente acompanhadas de insultos racistas e ameaças. Tudo isso porque se opõem à ocupação de territórios palestinos ou, pura e simplesmente, porque defendem a democracia.
Até o presidente do país, Reuven Rivlin, foi vítima dessa campanha em dezembro de 2015. Ele teve a má sorte de tomar a palavra na conferência organizada em Nova York pelo jornal de esquerda Haaretz em um momento em que representantes do Breaking the Silence se encontravam na sala. A associação de militares da reserva que se gabam de ter prestado serviço nos territórios ocupados é acusada de prejudicar a imagem de Israel e seu Exército. Ela também foi questionada por ter fornecido elementos probatórios à Comissão de Investigação da ONU sobre os conflitos em Gaza durante o verão de 2014. O governo israelense se recusara a colaborar com essa instância, cujo relatório denunciou violações suscetíveis de serem consideradas “crimes de guerra”, perpetradas ao mesmo tempo por Israel e pelos grupos armados palestinos.1
Em 8 de fevereiro último, por 50 votos a 43 (de um total de 120 deputados), o Parlamento israelense adotou em primeira sessão um projeto de lei sobre a “transparência” das ONGs. Apoiado pela ministra da Justiça, Ayelet Shaked, filiada ao partido da colonização Lar Judeu, esse texto obriga toda associação beneficiada por subvenções de governos estrangeiros a mencionar, na ocasião de seus contatos com órgãos e funcionários israelenses, a identidade dos doadores em seus relatórios públicos. Caso contrário, a organização terá de pagar uma multa de 29.200 shekels (R$ 1 = 1 shekel). Se por um lado a medida atinge várias associações de esquerda e de defesa dos direitos humanos que recebem financiamentos de governos europeus ou norte-americanos, por outro o projeto de lei não se aplica às entidades que se beneficiam de financiamentos estrangeiros privados, tais como as organizações de direita que contribuem para o avanço da colonização. Criticada pela União Europeia e pelos Estados Unidos, essa medida surgiu num contexto marcado por um clima de desafio a uma parte da sociedade civil e, sobretudo, pela afirmação do projeto político do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Graças ao apoio de vários ministros, os movimentos de direita e extrema direita multiplicam as campanhas para deslegitimar as ONGs de defesa dos direitos humanos. O mais ativo é o Im Tirtzu. Essa entidade estudantil cujo nome significa “Se quiseres”, em referência a uma frase famosa de Theodor Herzl (1860-1904), nasceu numa manhã de 2006 quando seu fundador, Ronen Shoval, se encontrou com Moti Karpel, um dos chefes do movimento dos colonos e autor de A revolução pela fé. A obra, publicada em 2003 com o subtítulo de O colapso do sionismo e a ascensão da mudança pela fé, conclama à reconstrução do Templo de Jerusalém e à imposição da soberania israelense sobre toda a “Terra de Israel”, ficando subentendido que os árabes só teriam aí o status de “Ger Thosav”, residentes estrangeiros privados de direitos políticos. Shoval atribuiu-se a missão de “renovar o pensamento e a ideologia sionistas, além de lutar contra as campanhas que deslegitimam o Estado de Israel, dando respostas aos fenômenos pós e antissionistas”.2 Os líderes do Im Tirtzu não gostam que seu movimento seja qualificado de “fascista”, mas não conseguiram condenar por difamação as muitas organizações que lhe haviam atribuído esse epíteto.3
“Vivem entre nós e são espiões”
Ajudado pelos membros da direita parlamentar, o Im Tirtzu logrou alguns sucessos, notadamente contra o Breaking the Silence. Acusados – injustamente – de sustentar a campanha internacional Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS)4 e de fazer o jogo dos inimigos de Israel, os veteranos da associação tiveram seu acesso proibido ao Exército e aos liceus. Desde então, o Im Tirtzu começou a sonhar grande. Com a ajuda de Moshé Klughaft, consultor próximo de Naftali Bennett, ministro da Educação e presidente do Lar Judeu, a organização produziu um vídeo5 onde se vê um homem brandir uma faca contra a câmera e se ouve ao fundo este comentário: “Antes de esse terrorista apunhalar você, ele sabe que Yishai Menuhin, do Comitê contra a Tortura, um espião plantado pela Holanda, vai protegê-lo do Shin Beth [o Serviço de Segurança Interna]. O terrorista sabe também que Avner Gvaryahu, do Breaking the Silence, um espião alemão, chamará de ‘criminoso de guerra’ o soldado que tentar impedir o atentado. O terrorista sabe ainda que Sigi Ben-Ari, do Centro para os Direitos Individuais, uma espiã do governo norueguês, o defenderá perante a justiça. Antes que de esse terrorista apunhalar você, ele sabe que Hagai Elad, do B’Tselem, espião da União Europeia, acusará Israel de crimes de guerra. Yishai, Avner, Sigi e Elad são israelenses. Vivem entre nós e são espiões. Eles nos combatem porque lutamos contra o terrorismo”.6 Segundo essa lógica, a Europa, que defende a solução dos dois Estados, seria, portanto, hostil a Israel e cúmplice do terrorismo.
O Im Tirtzu tem padrinhos de prestígio. Entre eles, um grupo de professores universitários, como Israel Aumann, laureado em 2005 com o prêmio do Banco da Suécia de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, ou o francês Georges-Elia Sarfati, da Sorbonne, assim como advogados como Daphne Netanyahu, cunhada do primeiro-ministro. Valendo-se desses apoios, a organização deu mais um passo adiante e denunciou como “espiões” esquerdistas alguns dos principais escritores e artistas do país: Amós Oz, Abraham B. Yehoshua, David Grossmann, além de humoristas de primeiro nível. Se até então o governo e a direita tinham guardado um silêncio cúmplice em face desse macarthismo, algumas vozes, no entanto, se fizeram ouvir. “Indigitar assim pretensos traidores é uma velha técnica fascista, ao mesmo tempo feia e perigosa”, advertiu Benny Begin, personalidade histórica do Likud, o partido de Netanyahu, e filho do ex-primeiro-ministro Menahem Begin. Bennet também reagiu, chamando a iniciativa do Im Tirtzu de “embaraçosa e inútil”. Depois disso, Netanyahu não teve descanso: “Condeno o emprego da palavra ‘traidor’ para descrever aqueles que não concordam comigo. Somos uma democracia e existem aqui múltiplas opiniões”. Mas, ao mesmo tempo, ele denunciou o Breaking the Silence, “que enxovalha o nome de Israel mundo afora”.7
De seu lado, a ministra da Cultura, Miri Regev, declarou: “O público tem o direito de ser informado, mas convém evitar comentários que incitem à violência”. Porém, membro do Likud, essa personalidade muito atuante está sempre de olho nos artistas de esquerda. Considere-se, por exemplo, seu projeto de lei sobre a “lealdade cultural”: o texto pretende proibir a entrega de subvenções a todo artista que ofenda os símbolos do Estado, defenda o terrorismo ou se oponha à existência de Israel como Estado judaico e democrático.8 A população não rejeita a proposta. Em junho de 2015, a atitude agressiva da ministra para com o mundo artístico lhe valia o apoio de 59% dos judeus israelenses, segundo pesquisa do Instituto Israelense para a Democracia.9 Já as ONGs de defesa dos direitos humanos são impopulares: em outubro de 2013, 52% dos interrogados consideravam-nas uma ameaça ao Estado.
A “Intifada dos Punhais”, isto é, a onda de ataques palestinos contra cidadãos israelenses militares e civis, contribui para o endurecimento da sociedade e para sua virada à direita. O site Relatório do Ódio, da Fundação Berl Katznelson, exibe mensalmente, em média, 500 mil comentários e discussões ofensivos ou racistas.10 Em janeiro de 2016, o editorialista Nahum Barnea descrevia o Israel de hoje aludindo à violência política na Alemanha de 1918 a 1933, às vésperas da tomada do poder pelos nazistas: “Isto aqui lembra a República de Weimar. Cheira como Weimar. É canceroso como Weimar. Não somos a República de Weimar, mas o que ocorre atualmente evoca sob muitos aspectos o que aconteceu lá. Talvez seja uma boa coisa. Talvez essa onda de incitações ao ódio mostre aos israelenses como a encosta é íngreme. A boa vida que levamos – em comparação com a de nossos vizinhos – nos deixa cegos. Conheci há algum tempo um dos escritores que estão numa lista [de ‘traidores’]. Ele me disse: ‘Netanyahu aponta nosso avião diretamente para a montanha’. Respondi: ‘Má notícia. A boa é que viajamos na classe executiva’”.11
À frente do governo há sete anos, Netanyahu tem certeza de que leva o país na direção certa e se mantém custe o que custar para a direita, tanto no plano econômico e social quanto no combate aos palestinos e a seus adversários políticos. A seu ver, a esquerda israelense é que sempre se enganou. Numa obra publicada em 1995, após a assinatura dos acordos de Oslo, ele já declarava que essa esquerda tinha “uma predisposição a absorver os argumentos da propaganda árabe fundada no princípio dos ‘direitos inalienáveis do povo palestino’, desembocando na criação de um Estado palestino fazendo fronteira com um Israel diminuído. Essa síndrome provém da doença crônica que aflige o povo judeu desde o início do século XX: o marxismo que impregna os movimentos judaicos de esquerda, de extrema esquerda e comunistas no Leste Europeu”. Isso explicaria por que “pessoas inteligentes, morais e cultas afirmam que Israel deve deixar os ‘territórios’ […] Assistimos a uma escalada do antissemitismo, a uma enorme onda de ódio a Israel em virtude do islamismo que se fortalece, enquanto a assimilação dos judeus na diáspora avança rapidamente. Mas isso não interessa especialmente à direção política da esquerda, que trabalha para realizar o objetivo de ‘libertar os palestinos do fardo da ocupação israelense’, abandonando o coração da pátria do povo judeu”.12
Uma lei para proibir o boicote às colônias
O primeiro-ministro se atribuiu, pois, a missão de garantir a sobrevivência do povo judeu em sua terra. Segundo o analista Eldad Yaniv, reitor do Centro Universitário Shimon Peres, “há uma coerência absoluta entre sua ideologia e sua estratégia política. Ele acha que a chegada ao poder de um governo de esquerda, ou mesmo de outros dirigentes de direita, seria uma catástrofe para Israel, do qual se considera pessoalmente o guardião”.13
Só depois de sua quarta vitória eleitoral em vinte anos é que Netanyahu conseguiu, em 14 de maio de 2015, formar uma coalizão a seu gosto. Livre da necessidade de integrar elementos centristas ou trabalhistas, ele pode agora dirigir o país como bem entende. Chefe de governo, conserva as pastas da Economia, da Comunicação e das Relações Internacionais, para a qual nomeou Tsipi Hotovely como ministra-delegada. Deputada pelo Likud e adepta do sionismo religioso, ela se opõe ferozmente à criação de um Estado palestino. Foi, portanto, com pleno conhecimento de causa que Netanyahu a mandou difundir a mensagem de seu governo à “comunidade internacional”: a Cisjordânia não está ocupada, é parte integrante da terra de Israel. No dia em que assumiu o cargo, ela expôs seu credo diante de um areópago de diplomatas e altos funcionários de seu ministério: “É importante repetir que esta terra nos pertence. Ela é inteiramente nossa. […] O mundo compreende as necessidades de segurança de Israel, mas os argumentos de ética e justiça sempre as suplantam”. Depois, citou Rachi, um talmudista do século XI: “Foi por Sua vontade que [Deus] deu Canaã às sete tribos e foi por Sua vontade que a retomou e a deu para nós”.
Em julho de 2011, Netanyahu fez a Knesset adotar uma proposta de lei contra o boicote das colônias. Lançada pelo deputado do Likud Zeev Elkin, essa iniciativa se deu após dezenas de artistas se recusarem a ir para os assentamentos. O texto, aprovado por 47 votos contra 38, permite processar “toda pessoa ou instituição que evite fazer acordos econômicos, sociais ou acadêmicos com uma pessoa ou órgão por motivo de seus vínculos com o Estado de Israel, suas instituições ou as regiões sob seu controle [os territórios ocupados]”. ONGs de esquerda que haviam apelado para a Alta Corte de Justiça foram ignoradas em 16 de abril de 2015. Os juízes contentaram-se em suprimir o artigo que autorizava os tribunais a infligir penas ilimitadas a quem apelasse para o boicote, mesmo não tendo sido comprovado nenhum dano comercial ou econômico.
Essa decisão surpreendeu Talia Sasson. Durante 25 anos, ela foi uma das responsáveis pelos serviços de procuradoria do Estado; atualmente ela preside o New Israel Fund, que financia dezenas de ONGs israelenses. “Tive vergonha ao saber que a Alta Corte homologou essa lei. Seu único objetivo é amordaçar a esquerda. Seria preciso distinguir interdição do boicote ao Estado de Israel – disso eu seria a favor! – e interdição do boicote às colônias. É inaceitável. Com efeito, em seus julgamentos, a Corte Suprema estabelecera que a Cisjordânia não fazia parte do Estado de Israel e não lhe impusera sua soberania.”
A determinação de Netanyahu foi confirmada pelo exame que o conselho de ministros fez do projeto de lei sobre a “transparência” das ONGs. O chefe de governo deu assim seu imprimatur ao texto, emendando-o na margem: suprimiu um dispositivo segundo o qual os membros das ONGs que recebem financiamentos de um governo estrangeiro deveriam usar um crachá especial para entrar na Knesset. Deputada no Parlamento e dirigente do partido Hatnuah (centrista e aliado do Partido Trabalhista), Tzipi Livni ocupou diversos postos ministeriais no curso da última década. Diz ela sobre o alcance desse texto polêmico: “Quando eu era ministra da Justiça [três vezes, a última de março de 2013 a dezembro de 2014], tinha a possibilidade de vetar tais projetos de lei ou de rejeitar a maior parte deles. Mas acontece que, no fim das contas, as coisas não dependem do ministro da Justiça, e sim do chefe de governo. Se ele quiser, pode alterar um projeto de lei. Quando deseja preservar a coalizão, deixa que os elementos extremistas de seu governo deem o tom, o que, para grande pesar meu, é o caso aqui. Sou contra esses projetos de lei. Estamos na oposição e tentamos bloqueá-los, mas nossos poderes são limitados”. Por sua vez, Sasson qualifica esse texto de “estupidez destinada a reduzir ao silêncio o campo da esquerda. A política da direita, hoje, não consiste em ir ao debate, à controvérsia entre esquerda e direita, mas em calar a esquerda”.
Esquerda que vai perdendo velocidade, como bem o constata a professora Tamar Hermann: “No início dos anos 1990, ainda podíamos falar em dois campos que se opunham. Hoje, já não há isso. Não falo mais de ‘esquerda’, mas dos 20% da população judia adulta que constitui o grupo leigo, urbano, educado, universalista, de sensibilidade liberal […] Os mais jovens daí saídos não receberam as respostas que esperavam de seus pais e se voltaram para uma forma de identidade judia básica, da qual são prisioneiros”. A professora lembra ainda que, já em 2009, a análise sociológica mostrava que mais de 51% dos judeus israelenses acreditavam na vinda do Messias. Havia entre eles religiosos, mas também tradicionalistas e seculares. Uma maioria mais considerável (67%) achava que o povo judeu era o povo eleito.14 Sete anos depois, o campo nacionalista religioso se fortaleceu ainda mais, pois 22% da população judia se identificava com seus valores.15
Livni lamenta as tendências que se desenvolvem no seio da sociedade: “O público judeu tem a impressão de que estamos rodeados de inimigos. É, aliás, verdade, considerando-se a vizinhança difícil em que vivemos. Existe terrorismo contra Israel; o extremismo islâmico ganha força. Infelizmente, parte da sociedade se dobra sobre si mesma. Desconfia de uma ameaça externa, mas também interna, a cargo de minorias e grupos que se opõem à política do governo. Netanyahu mostrou-lhes isso durante a campanha eleitoral. Vemos uma união entre os árabes cidadãos de Israel, as organizações de esquerda e alguns governos estrangeiros. Setores da sociedade israelense são assim identificados com o inimigo […] Para mim, sem dúvida nenhuma, Israel é a única democracia verdadeira do Oriente Médio e deve ser parte integrante do chamado ‘mundo livre’”.
Já Netanyahu quer impor um projeto de lei constitucional que redefina Israel como Estado-nação do povo judeu e preveja que o legislador se inspire nos princípios do judaísmo. O regime seria definido como democrático, mas, nele, só os judeus teriam direitos coletivos; os muçulmanos e cristãos, ou seja, 20% da população, só gozariam de direitos pessoais previstos em lei. Para Sasson, isso significa que atualmente “o antagonismo essencial no país não é ‘esquerda ou direita’, mas ‘a favor e contra a democracia’”. Agora que o fracasso do processo de paz com os palestinos parece levar inexoravelmente a uma forma de Estado binacional, a campanha orquestrada contra a esquerda pelo governo e pela direita coloca em questão o futuro da democracia em Israel. E esse problema diz respeito também às comunidades judias no estrangeiro, em que a maior parte dos intelectuais guarda um silêncio ensurdecedor sobre essa evolução.