Em nome do povo ou com o povo?
Desde a “grande reviravolta” de 1928-1929, Stalin passou a regulamentar brutalmente a questão camponesa pela coletivização forçada das terras, o que causou a morte de milhões de pessoas. Do sonho populista – ingênuo, mas generoso – de autogestão do povo russo apegado a seu ideal, passou-se ao domínio das massas
Pouco antes do Outubro de 1917, Lenin achava que a primeira tentativa de derrubar o poder czarista em 1825, em São Petersburgo, havia fracassado principalmente porque os revoltosos estavam “muito longe do povo”. Embora visse com benevolência os primeiros a desafiar o czarismo, ressaltava o abismo existente entre os bolcheviques e os insurretos de 1825. Estes últimos, oficiais oriundos da nobreza, abominavam a ideia de insurreição popular: os massacres dos proprietários de terras que se seguiram às grandes revoltas do passado haviam inscrito, na memória da aristocracia russa, um terror profundo.
A censura que Lenin fazia aos revoltosos de 1825, empenhados em eliminar o regime czarista sem o apoio do povo, não poderia ser lançada igualmente sobre os marxistas russos? Com efeito, estes faziam da classe operária russa a ponta de lança da revolução. Desinteressavam-se dos que constituíam a esmagadora maioria da população do Império Russo até 1917, a saber, o mundo camponês, considerado por Jorge Plekhanov “menos capaz que os trabalhadores da indústria de tomar ‘iniciativas’ politicamente conscientes”. A população rural, explicava o pai do marxismo russo, tem mais dificuldade em assimilar a doutrina socialista porque “suas condições de vida diferem muito das que engendraram essa doutrina”.1
Ao contrário dos dezembristas, que queriam manter o povo a distância, e dos marxistas, que não acreditavam no potencial revolucionário dos camponeses, os populistas russos atribuíram um papel de destaque ao campesinato no advento de uma sociedade nova. Foi nos anos 1840 que emergiu o populismo ou socialismo russo,2 sob a pena de Alexandre Herzen. Deixando a Rússia em 1847, ele testemunhou, em Paris, o fracasso das revoluções de 1848 e perdeu todas as esperanças num progresso social e político originário do Ocidente. Seu olhar se voltou, então, para a Rússia, em particular suas comunidades rurais, que ignoravam a propriedade privada do solo, pois este era redistribuído periodicamente aos camponeses. Tal era o núcleo, dizia ele, a partir do qual se disseminariam os princípios igualitários, coletivistas, quando a servidão e a autocracia desaparecessem. O povo russo, visto ainda havia pouco como uma força destrutiva, se tornaria o depositário de valores morais, de formas de vida social que permitiriam ao país evitar a via capitalista e a burguesia para instaurar o socialismo com maior facilidade que em outros lugares.3
Em Londres, de onde no início dos anos 1860 comandou a luta contra o czarismo, Herzen exortava a juventude radical russa a “se aproximar do povo” a fim de ajudá-lo a obter o que ele sempre exigira: terra e liberdade.4 Anos depois, o exilado russo Mikhail Bakunin conclamou, da Suíça, essa mesma juventude a “concretizar a ideia do povo”, que ele considerava naturalmente revolucionário e socialista. O povo russo, esmagado e infeliz, poderia se rebelar a qualquer momento, afirmava o célebre anarquista:5 davam testemunho disso as grandes insurreições populares de outrora, bem como os conflitos que se seguiram ao fim da servidão em 1861. De fato, a terra não foi entregue gratuitamente aos camponeses, mas vendida.
Em 1873-1874, cerca de 2,5 mil rapazes e moças, em sua maioria estudantes, foram aos campos pregar o socialismo. Não tinham plano acertado nem programa político, mas acreditavam firmemente na iminência da grande sublevação revolucionária: “A mínima dúvida a esse respeito era interpretada como um insulto ao povo: ‘O povo está descontente e foi iludido; pensam então que ele vai permanecer tranquilamente de braços cruzados?’”, escreveu Vera Zasulitch.6 O fracasso teve a medida das ilusões: os camponeses não compreenderam aquela juventude que lhe vinha falar de liberdade. Sobretudo, repudiaram a ideia da terra em comum, já que queriam possuí-la individualmente. Pior ainda, alguns denunciaram os “propagandistas” à polícia. Das trinta províncias visitadas pelos missionários socialistas, nenhuma se sublevou ao apelo dos jovens, que não respeitaram nenhuma das regras da clandestinidade. O movimento falhou.
Seguiram-se anos de dúvidas e polêmicas. Como o povo estava demasiadamente esmagado por sofrimentos e resignado para se revoltar, foi preciso agir em seu nome a fim de golpear o coração do Estado: em 1881, uma bomba lançada por um membro da organização anarquista Vontade do Povo atingiu o czar Alexandre II durante seu passeio. Mas isso, longe de derrubar o regime, resultou num endurecimento do jugo autocrático em uma Rússia que se industrializava rapidamente e onde o proletariado se desenvolvia. Alguns populistas – Jorge Plekhanov e Vera Zasulitch são os mais famosos – voltaram-se então para o marxismo, que descobriram no exílio para onde os levou a repressão consequente do assassinato de Alexandre II.
De algum modo, os primeiros marxistas russos transferiram para a classe operária sua antiga fé no potencial revolucionário do campesinato. Plekhanov escreveu: “Uma vez que alcançaram um grau de desenvolvimento mais elevado que os camponeses e têm mais necessidades e um horizonte intelectual mais vasto, os operários da indústria se aliarão à nossa intelligentsia revolucionária na luta contra o absolutismo. E, depois de conquistar a liberdade política, se organizarão num partido socialista operário, que fará a propaganda sistemática do socialismo entre os camponeses”.7
Repositório de todas as esperanças de regeneração social alimentadas pelos populistas, o camponês encarna, para os marxistas, uma força passiva e conservadora. Mas como acreditar em vitória do proletariado num país majoritariamente agrícola? Até 1917, os marxistas permaneciam minoritários no seio do movimento revolucionário. Seus maiores concorrentes eram os socialistas revolucionários (SR), não marxistas, famosos até no exterior por atentados terroristas de irrefreável audácia. Os SR continuavam a defender a ideia de um socialismo camponês e tinham por objetivo principal a socialização da terra, isto é, sua repartição entre os que nela trabalhavam, segundo os princípios igualitários. Embora se mostrassem ativos também no meio operário, percorriam sobretudo os campos, onde as revoltas camponesas periódicas favoreciam sua propaganda.
Durante a Revolução de 1905, a atenção de Lenin se voltou para os campos, onde pululavam as agitações. Tentou, assim, sistematizar os papéis respectivos das duas classes dominadas. Como a burguesia estava muito comprometida com o czarismo para levar a bom termo uma revolução burguesa, os camponeses pobres não poderiam se aliar ao proletariado? Em Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, Lenin menciona pela primeira vez uma “ditadura democrática dos operários e camponeses”, ou seja, uma aliança das classes subjugadas das cidades e campos a fim de erradicar o antigo regime. Em razão de seu novo interesse pelos camponeses, alguns militantes o acusaram de afinidades com os populistas – o que era demais! Todavia, diferentemente destes últimos, ele não acreditava na capacidade revolucionária autônoma dos camponeses. O que Lenin pretendia era explorar seu potencial subversivo no processo revolucionário em curso.
Impossível vencer sem os camponeses
Em fevereiro de 1917, a revolução eclodiu, deitando abaixo o czarismo. Com a aproximação do verão, os distúrbios agrários colocavam o problema camponês na pauta do governo provisório e dos partidos revolucionários. Nas Teses de abril, Lenin proclama “a entrega do poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato”. Anuncia “a nacionalização de todas as terras do país” e acrescenta que “elas ficam à disposição dos sovietes locais constituídos pelos representantes dos assalariados agrícolas e camponeses”.
Em seguida, Lenin se adaptaria à marcha dos acontecimentos. Os camponeses começavam a se organizar em assembleias, que o governo provisório tentou em vão controlar instalando, por decreto, comitês agrários. A situação fugiu a seu controle. Sem contar com o apoio dos camponeses, ou pelo menos com sua neutralidade, Lenin reconheceu que era impossível vencer. Perto do verão de 1917, sua posição ficou clara: as terras permaneceriam sob o controle dos comitês agrários. Ele não falava mais em nacionalizar as terras, sabendo que os camponeses, em sua grande maioria, desejavam ser donos do chão onde trabalhavam.8 Dando prova de uma notável flexibilidade tática, acabou por adotar o programa político de seus adversários, os socialistas revolucionários: expropriação das terras e partilha igualitária das fazendas sob a égide da comunidade camponesa.
Logo após o Outubro de 1917, saiu o decreto fundiário, que declarava: “A propriedade privada da terra […] fica abolida sem indenização”. As fazendas “estão à disposição dos comitês agrários locais e dos sovietes dos representantes camponeses distritais, até a instalação da Assembleia Constituinte”. Revolucionário no papel, o decreto consagrava na verdade uma situação de fato: desde o verão, as comunidades aldeãs tinham se apossado das terras dos grandes latifundiários e dos camponeses ricos, cansadas de esperar que a partilha fosse enfim decidida pelo governo provisório. No entanto, o ministro da Agricultura, Victor Chernov, era dirigente dos socialistas revolucionários!
Logo no começo da guerra civil, os camponeses finalmente se insurgiram contra os bolcheviques, que vinham não apenas, como os populistas, pregar-lhes as virtudes do socialismo, mas também requisitar seus bens para alimentar as cidades esfomeadas. Em 1921, Lenin concedeu uma trégua ao país criando a Nova Política Econômica (NPE), que assinalou um retorno parcial a certas formas da empresa privada. Essa política contemplava mais os camponeses que os operários: em lugar das requisições da guerra civil, lançou um imposto in natura e depois em dinheiro, o que permitia aos camponeses vender seus excedentes. Eles podiam abastecer livremente o mercado a fim de facilitar o surto industrial, restaurando as relações comerciais entre a cidade e o campo. Mas o problema de uma agricultura ainda mais fragmentada que antes de 1917 continuava em suspenso, embora a agitação comunista tivesse se acalmado nas aldeias.
Desde a “grande reviravolta” de 1928-1929, Stalin passou a regulamentar brutalmente a questão camponesa pela coletivização forçada das terras, o que causou a morte de milhões de pessoas. Do sonho populista – ingênuo, mas generoso – de autogestão do povo russo apegado a seu ideal, passou-se ao domínio das massas. Os primeiros populistas, aqueles que “se aproximavam do povo”, não queriam tomar o lugar do povo, mas unir-se ao povo.
*Korine Amacher é professora adjunta de História da Rússia e da URSS na Universidade de Genebra.
3-4 de julho (16-17 de julho) – Insurreição popular iniciada pelos marinheiros de Kronstadt. Acusados de derrotismo e conluio com o inimigo, numerosos dirigentes bolcheviques são aprisionados. Lenin se refugia na Finlândia.
27 de agosto (9 de setembro) – Tentativa de golpe militar impedida pelos comitês de fábrica e sindicatos. Os KD ficam desacreditados por terem apoiado o general golpista Lavr Kornilov. Os bolcheviques são vistos como os defensores da revolução.
Fim de agosto – Início de uma grande rebelião camponesa contra os proprietários de terras.
9 de setembro (22 de setembro) – Novas eleições dão maioria aos bolcheviques em quase todos os sovietes dos centros industriais do país. Leon Trotsky é eleito presidente do soviete de Petrogrado.
25 de outubro (7 de novembro) – Os bolcheviques tomam o Palácio de Inverno e os principais centros de poder. Após a partida dos mencheviques e dos socialistas revolucionários, o II Congresso Geral dos Sovietes elege um governo exclusivamente bolchevique.
26 de outubro (8 de novembro) – O novo poder anuncia uma paz em separado com a Alemanha e a Áustria-Hungria, e abole a grande propriedade rural.
12 de novembro (25 de novembro) – Eleição da Assembleia Constituinte. Os socialistas revolucionários predominam; os bolcheviques conquistam apenas 168 cadeiras de 703.
14 de novembro (27 de novembro) – As empresas industriais expropriadas ficam sob a responsabilidade de comitês eleitos pelos trabalhadores. O governo reconhece o princípio da jornada de oito horas. Os bancos serão nacionalizados no mês seguinte.
15 de novembro (28 de novembro) – O decreto sobre as nacionalidades reconhece a igualdade e a soberania dos povos, além do direito à autodeterminação, à federação e à secessão. Poloneses, finlandeses, bálticos, ucranianos, georgianos, armênios e azerbaijanos proclamam sua independência.
7 de dezembro (20 de dezembro) – Criação da Tcheka (Comissão Especial Pan-Russa de Luta contra a Contrarrevolução e a Sabotagem), a polícia política do novo regime.
Fim de dezembro – Recrutamento de um exército contrarrevolucionário “branco” no sul do país.
5 de janeiro (18 de janeiro) de 1918 – Reunião da Assembleia Constituinte. A maioria se recusa a validar os decretos do governo. Lenin decide dissolver a Assembleia em proveito do Congresso dos Sovietes.
3 de março – A assinatura do tratado de Brest-Litovsk com os Impérios Centrais acarreta a perda de 26% da população, notadamente das regiões mais produtivas em aço e trigo.
Maio-junho – Grupos de reabastecimento procedem à requisição forçada do trigo nos campos. Nacionalização das empresas de capital superior a 500 mil rublos.
6-7 de julho – Os socialistas revolucionários “de esquerda” tentam, sem sucesso, um golpe de Estado.
Agosto – Início da intervenção aliada para apoiar os russos “brancos”.
30 de agosto – A socialista revolucionária Fanny Kaplan tenta assassinar Lenin em Moscou. O regime responde com o “terror vermelho” (prisões preventivas, execuções de reféns). Os “brancos”, por sua vez, multiplicam as exações nas cidades cujo controle retomam e anulam os decretos sobre a terra, alienando-se assim as massas camponesas.
21 de novembro – Monopólio do comércio exterior. Todas as lojas são municipalizadas. A proibição do livre-comércio e as requisições agravam a miséria.
Março de 1919 – Primeiro grande expurgo do partido. Um terço dos efetivos é excluído por “carreirismo” ou “passividade política”.
11 de novembro de 1920 – As últimas tropas de russos “brancos”, encurraladas na Crimeia, fogem para Constantinopla. Resistência dos “brancos” no Extremo Oriente até 1922.
Fevereiro-março de 1921 – Insurreição dos marinheiros e operários em Kronstadt contra a “ditadura dos comissários bolcheviques”. Na mesma ocasião, surto de revoltas camponesas.
8 de março de 1921 – Abertura do X Congresso, após o qual são reintroduzidos elementos da economia de mercado: a Nova Política Econômica (NPE).
3 de abril de 1922 – Josef Stalin se torna secretário-geral do partido.
Dezembro de 1922 – Doente, Lenin redige notas para alertar contra os riscos de esfacelamento e burocratização do partido. Desconfiado da arrogância de Trotsky, considera Stalin ainda mais perigoso.
21 de janeiro de 1924 – Morte de Lenin.
Fontes: Nicolas Werth, Les Révolutions russes [As revoluções russas], Presses Universitaires de France, Paris, 2017; e Histoire de l’Union Soviétique de Lénine à Staline, 1917-1953 [História da União Soviética de Lenin a Stalin, 1917-1953], Presses Universitaires de France, 2017.