Em seu novo livro, Dia Nobre investiga apagamento de Maria de Araújo, protagonista dos milagres do Padre Cícero
Em “Incêndios da Alma”, a autora defende que o percurso da beata é fundamentado em uma aniquilação de si: dos desejos, do próprio corpo e, finalmente, de sua memória
A escritora e doutora em História Dia Nobre investiga o apagamento de Maria de Araújo, protagonista dos milagres do Padre Cícero na obra Incêndios da Alma, recém-lançada pela Editora Planeta. Uma versão adaptada da premiada tese de doutorado da autora, o livro examina o apagamento histórico da beata Maria de Araújo, uma das principais personagens do episódio que ficou conhecido como o “milagre de Juazeiro”. Ao longo das páginas, Dia compartilha o resultado de 10 anos de uma pesquisa profunda realizada em locais como Juazeiro, São Paulo e o Vaticano para reconstruir parte da trajetória de Maria e buscar entender por que apenas o padre Cícero é conhecido e creditado pelos eventos milagrosos até hoje.
Mais do que contar a história de Maria, Dia também analisa as questões políticas e religiosas da época e explica como a possibilidade de um milagre poderia impactar para a Igreja em um contexto de reordenação de forças, uma vez que chegava ao fim o padroado e se fortaleciam os poderes laicos e civis da República.
Dia Nobre nasceu em Juazeiro do Norte, no Ceará. Doutora em História e escritora, também é autora do livro O teatro de Deus (Editora UFC) e da tese de doutorado Incêndios da Alma (UFRJ), que lhe concedeu três prêmios, incluindo o Prêmio Capes de Teses em 2015.
Para o Le Monde Diplomatique Brasil, Maria Carolina Casati, mulher negra, professora e escritora, entrevista, exclusivamente, Dia Nobre. Maria Carolina atualmente cursa o doutorado na EACH-USP, no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política. Curadora do circuito gato sem rabo, é idealizadora do @encruzilinhas, um projeto de leitura e debate de textos sobre negritude, gênero, feminismos e militância.
Maria Carolina Casati — Para começar, gostaria de saber quando e de que forma você teve contato com a história de Maria de Araújo.
Dia Nobre — Eu sou natural de Juazeiro e venho de uma família interracial e de origem humilde. Além disso, fui criada por minha avó, uma mulher muito religiosa e devota do padre Cícero. Quando criança, o movimento da cidade em torno das romarias sempre me inquietou e, conforme fui crescendo, cada vez mais, me interessavam as trajetórias femininas em contraposição ao culto masculino predominante na cidade.
Quando optei pelo curso de História, já pensava em pesquisar algo relacionado às mulheres, principalmente, aquelas consideradas subversivas como as feiticeiras e as bruxas. Então, fui buscar referências na história da minha cidade, Juazeiro do Norte, que é fundada em torno da figura de um homem, o padre Cícero Romão Batista.
O que eu chamo, no livro, de “história oficial” de Juazeiro, diz que, em 6 de março de 1889, padre Cícero ministrou a hóstia à uma beata (raramente aparece o nome dela) e a hóstia sangrou. É como se esse fenômeno inaugurasse a fama de milagreiro do padre, enquanto a beata é deixada de lado. Fiquei muito curiosa sobre essa mulher e fui buscar informações sobre ela.
Ao ter acesso ao principal documento, um processo episcopal sobre o acontecimento de 1889, percebi que ela, Maria de Araújo, e não o Padre Cícero, era o foco da investigação da Diocese. Além disso, o suposto milagre da hóstia (conhecido oficialmente como transubstanciação eucarística, segundo o dogma) já havia acontecido outra vez, em 1886, e permaneceu acontecendo até meados de 1891, mesmo quando ela recebia a hóstia de outros padres, o que reforça a minha tese de que ela era o “instrumento dos milagres” e não o padre Cícero.
Maria de Araújo é o centro de toda a documentação em torno do caso que envolve desde um rico acervo epistolar (pesquisei em mais de duas mil cartas), jornais do Brasil e da Europa, atestados médicos, o processo episcopal e o relatório final da Santa Sé feito pelos cardeais da Congregazione per la Dottrina della Fede em 1898.
Inicialmente, foi justamente a invisibilidade historiográfica dela que me interessou, mas quanto mais eu pesquisava e entrava em contato com a documentação, mais me apaixonei por sua trajetória que é muito potente, principalmente, quando pensamos no contexto do final do século XIX.
O livro, de certa forma, também propõe uma importante reflexão sobre narrativa, linguagem e hierarquias de poder. Gostaria de te ouvir um pouco sobre isso.
Uma das preocupações que eu tive, ao analisar a documentação sobre o sangramento da hóstia, foi compreender como a Beata Maria de Araújo elaborava seus testemunhos e como eles eram transcritos, uma vez que ela era analfabeta. É interessante notar como ela se apropria de uma linguagem erótica, muito comum nos relatos de místicas modernas como Teresa D’Ávila e Santa Catarina de Siena.
Ela se utiliza de metáforas da teofagia cristã (o ato de comer o corpo e beber o sangue de Cristo) que cria o dogma da transubstanciação eucarística em 1263, mas também há uma obsessão pelo corporal, e, principalmente, pelo corpo que sangra. Ela narra experiências de êxtases, viagens espirituais, recepção de estigmas, visões nas quais precisa beber copos cheios de sangue ou mergulhar em piscinas de sangue para purificar-se.
Sua narrativa é organizada e ela possui um repertório erudito, com citações em latim e uso de parábolas bíblicas. As juras de amor que ela troca com Jesus, em suas visões, são comparáveis aos textos de Cânticos dos cânticos, o que me fez pensar na erotização advinda da experiência mística que ela espelha já no final do século XIX, um século conhecido justamente pelo oposto, pela recusa ao místico, por seu processo de secularização e por um zeitgeist anticlerical.
O que Maria nos diz com estes relatos é que ela não precisa da mediação da Igreja para viver sua experiência de santidade. Esta é minha hipótese central. Ao dispensar essa intermediação, ela se apropria de sua trajetória e a condenação da Santa Sé em 1894 (todos os documentos, medalhas, panfletos que falassem sobre Maria deveriam ser queimados e ela deveria ser reclusa em uma Casa de Caridade) não altera sua experiência, ao contrário, a valida, pois segundo ela, “o próprio Cristo não havia sido perseguido?”.
Minha hipótese é que o percurso de Maria de Araújo (traçado também no processo episcopal) é fundamentado em uma aniquilação de si: dos desejos, pois eles se conformam aos desejos de Jesus; do próprio corpo, que vai aos poucos se deteriorando pelas doenças e enfermidades que aparecem, interpretadas, por sua vez, como um sinal de eleição; e, finalmente, de sua memória. O que temos aqui é um projeto de santidade pessoal que se apoia nas representações coletivas sobre o valor da santidade e, portanto, se configura como uma afronta à hierarquia eclesiástica.
Você sempre conta a história de quando, ao final de uma apresentação do seu trabalho sobre a beata Maria de Araújo, um homem sugeriu que você lesse seu próprio livro, o qual ele jurava ter sido escrito por um homem. Podemos dizer que Incêndios da alma, é ele mesmo, mais um exemplo de como o machismo estrutura nossas sociedades, uma vez que a história de Maria de Araújo precisa ser legitimada por homens e é um homem – Padre Cícero – que permanece até hoje numa posição de destaque no imaginário popular?
Totalmente. Apesar do trabalho ter recebido o Prêmio de Teses da Capes e ser muito valorizado dentro da Academia, não é bem aceito pelos estudiosos locais, a maioria, interessados somente na figura do Padre Cícero; nem pela Diocese do Crato que abriga o Arquivo Histórico onde está a maior parte da documentação. Inclusive, eu tive meu acesso restrito neste arquivo e grande parte dos documentos que eu poderia ter acessado lá, só consegui acessar no Arquivo Secreto do Vaticano em 2011.
Durante a minha pesquisa, cheguei a receber uma carta de duas pesquisadoras locais, dizendo que meu texto era “muito feminista” e “perigoso” porque eu considero que com a condenação de Maria de Araújo pela Santa Sé, há um processo de deslocamento da crença. Conjecturo, com base na documentação epistolar, que o padre acaba, de forma consciente ou não, se apropriando (ou aceitando) a transferência do culto: do “Sangue Precioso” de Maria para ele próprio. Há uma rica troca epistolar entre padres da região que demonstram que as primeiras romarias eram feitas diretamente para Maria de Araújo e que o “corpo sangrento” dela era o objeto de culto dos peregrinos. Com a primeira condenação da Santa Sé em 1894, as romarias passam a ser direcionadas para a Capela de Nossa Senhora das Dores, depois ao túmulo da Beata, após sua morte em 1914, e, finalmente, para o Padre Cícero após a destruição do túmulo dela, em 1931, pelo monsenhor José Alves Lima, pároco da Igreja de Nossa Senhora do Socorro.
Então, há uma estrutura patriarcal que é muito cruel com as mulheres na sociedade, que limita seus espaços de circulação, que as apaga e as silencia. A cidade de Juazeiro do Norte, enquanto microssistema, vive em torno da devoção a um homem. É isto que não devemos esquecer, antes de ser um santo, o Padre Cícero era um homem branco da Igreja. Mesmo tendo perdido suas ordens sacerdotais em 1894 (já recuperadas pela Diocese do Crato), ele continuou sendo um homem da Igreja, enquanto Maria era uma mulher leiga, pobre e negra.
Maria de Araújo é apresentada ou como (quase) santa, ou como demoníaca; ou como pura e inocente, ou como completamente ardilosa. É, portanto, uma “personagem” rasa, plana, superficial. Como você vê o machismo presente na investigação conduzida pela igreja?
Na documentação que pesquisei existem, pelo menos, quatro Marias de Araújo: a santa, a embusteira, a histérica e a possessa.
Havia uma parcela de padres que acreditavam nos chamados “fenômenos extraordinários” manifestados por Maria de Araújo e defendiam sua condição de pessoa santa. Outra parcela, a maioria, acreditava que ela forjava as manifestações, embora, não soubessem explicar como. Alguns médicos chegaram a defender a hipótese da histeria, uma enfermidade atribuída aos humores femininos durante o século XIX. Uma pequena parcela, representada, principalmente pelo bispo Dom Joaquim Arcoverde da Diocese do Pernambuco, defendia que ela era objeto de uma possessão demoníaca.
Para mim, é importante percebermos Maria de Araújo fora dessa classificação externa, ou seja, fora da condição maniqueísta de mártir ou vilã, atribuída por outros. Meu interesse, no trabalho, foi entender quem era Maria de Araújo em seu contexto. Quem era essa mulher que dizia se comunicar e ter “encontros amorosos” com Jesus, chegando até a se casar com ele na Capela de Nossa Senhora das Dores (em uma de suas visões)?
O que temos aqui é um projeto de santidade pessoal que se apoia nas representações coletivas sobre o valor da santidade. Como tantas místicas, Maria de Araújo permanece em uma tênue fronteira entre a emancipação espiritual e a subserviência à ortodoxia. Ela não é, portanto, uma personagem simples de ser interpretada.
Maria de Araújo é fruto “de um cruzamento das duas raças mais detestáveis, não pode deixar de ser, em todos os sentidos, uma hibridez horrível […], sendo seu pai […] um negro e [sua mãe] uma cabra [mestiça]”. Essa é apenas uma das formas usadas para descrever Maria de Araújo encontrada nos documentos oficiais. De fato, a dita feiura de Maria de Araújo (explicada pela cor de sua pele e seus traços negróides) chega a ser uma das justificativas para o suposto charlatanismo da beata (“Jesus não se manifestaria naquele lugar, nessa mulher tão feia”). Esse parece o real motivo da negativa da Cúria: o racismo atrelado ao machismo. É dessa forma que você enxerga o desfecho da beata?
Quando o padre francês Auguste Chevalier diz: “Deus não deixaria a França para obrar milagres no Brasil!”, talvez, ele pensasse: “a Igreja não deixaria de produzir santas brancas para produzir uma santa negra”.
Entender Maria como uma mulher negra dentro de uma sociedade branca, racista e cisheterocentrada é importantíssimo para entendermos também a recusa imediata da Igreja em aceitar que ela era capaz de produzir os milagres atribuídos a ela. Não é uma coincidência que o primeiro fenômeno público do sangramento da hóstia tenha acontecido pouco depois da abolição da escravatura no Brasil e da separação entre a Igreja e o Estado que culminou com a Proclamação da República.
A hostilidade da Diocese Cearense e da Congregação para a Doutrina da Fé foi uma manifestação da imposição civilizatória da branquitude europeia. O contexto não permitia que essas instituições simpatizassem com a imagem de uma santa negra, daí também as inúmeras tentativas de reduzi-la aos adjetivos: doente, bêbada ou histérica.
No meu trabalho, eu não trato, especificamente, das relações entre raça e gênero, e também não acredito que seja um trabalho definitivo, ao contrário, há muito o que ser estudado, pois Maria é uma personagem complexa e multifacetada. Sua História representa, certamente, a história de muitas mulheres negras e pobres que não puderam exercer sua espiritualidade e, por isso, foram punidas pela Igreja.