Em tempos sombrios, vamos falar de saúde mental
Não dá mais para camuflarmos o sofrimento e o adoecimento psíquico e sua relação com as determinações sociais
Em 10 de outubro comemoramos o Dia Mundial da Saúde Mental. Já em setembro tivemos a campanha nacional de prevenção ao suicídio, conhecida como “setembro amarelo”, que vem ganhando espaço e tem como objetivo sensibilizar a sociedade para a valorização da vida. Além disso, no corrente ano, a Lei 10.216/2001 – conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira – completou vinte anos e o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) fará, em dezembro, 36 anos.
Apesar das múltiplas e diferentes movimentações do campo da saúde mental nunca foi tão urgente abordarmos o tema. Podemos dizer que a pandemia de Covid-19, aliada ao agravamento da conjuntura política brasileira, trouxe para a cena uma pauta silenciada. Outrora, o assunto restringia-se ao circuito dos especialistas e, hoje, ele ganhou espaço nas mídias e redes sociais de todos os tipos. Ou seja, não dá mais para camuflarmos o sofrimento e o adoecimento psíquico e sua relação com as determinações sociais.
Considero importante a proliferação do tema, porém com ressalvas. O capitalismo recria-se cotidianamente incorporando pautas e reinvindicações de diferentes grupos e ressignificando-as para gerar mercadoria e lucro. A banalização da vida, a naturalização do sofrimento e a intensificação do adoecimento são estratégias para a perpetuação da exploração e das opressões de gênero, raça/etnia, sexualidade. Inclusive, Karl Marx, no livro Sobre o suicídio (Boitempo, 2006), apresenta três casos de suicídios cometidos por mulheres relacionados as expressões da violência patriarcal.
Entretanto, precisamos compreender as múltiplas concepções de saúde mental que estão em disputa e representam diferentes projetos políticos e econômicos. Não podemos nos permitir a ingenuidade, uma vez que a produção de doenças e adoecimento não está restrita aos olhares e atenção do campo da saúde mental. O controle dos corpos e subjetividades de mulheres, pobres, negros, LGBTs e usuários de drogas sempre perpassou a patologização, medicalização e institucionalização, o que vem sendo atualizado, inclusive, pela suposta “guerra às drogas”.
Historicamente temos uma proposta conservadora que entende o hospital psiquiátrico, a internação, o isolamento e a centralidade do saber e poder médico como base para o tratamento. Tal concepção segue aliada ao avanço do crescimento da patologização da vida e da medicalização dos corpos. A naturalização do uso de psicotrópicos, principalmente, sem acompanhamento especializado, está aliada aos interesses econômicos da clássica “indústria da loucura” que só se atualiza. De acordo com o Conselho Federal de Farmácia, as vendas de antidepressivos e estabilizadores de humor tiveram um crescimento de 13% nos primeiros cinco meses de 2021, além do uso indiscriminado de paracetamol para alívio de febres e dores após a vacinação contra a Covid-19, conforme nos alerta a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Esse projeto conservador segue em curso no país, e, atualmente, dá a direção da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Ao mesmo tempo vinculou-se a outro projeto que estava em silêncio até o final da segunda gestão do governo Lula: a proposta das comunidades terapêuticas (CTs). Inauguradas no país no final dos anos 1970, só em 2010 elas começaram a ocupar espaços institucionais políticos e, nos últimos anos, conquistaram editais de financiamento público para sua expansão. Tal modelo de tratamento objetiva atender pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas baseadas no tripé laborterapia, disciplina e espiritualidade. Conforme explicita o relatório do Ipea Perfil das Comunidades Terapêuticas brasileiras, a religião está demasiadamente presente nas 83.530 vagas das instituições analisadas, sendo 40.793 cristãs, 21.461 católicas, 5.327 outras religiões não citadas e 15.918 não possuem orientação religiosa.
Já o terceiro projeto é aquele defendido pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Tal proposta emerge no bojo do processo de democratização ganhando fôlego e institucionalidade no início dos anos 1990. De 1992 a 2015, antes do golpe parlamentar, tínhamos coordenadores da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas que coadunavam com os princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Cabe destacar que não é possível homogeneizar o posicionamento dos grupos, entidades, sujeitos e coletivos que compõem o campo, contudo, a diretriz central que nos unifica é a superação do modelo conservador de saúde mental. Dessa forma, compreende-se que o aparato manicomial faz parte das estratégias de contenção dos corpos e subjetividades considerados desviantes e anormais.
Desde o início do atual governo a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas sofre com a intensificação dos ataques e retrocessos. Nos primeiros dois meses da gestão de Jair Bolsonaro, a coordenação nacional publicou uma nota técnica que apresentava a suposta necessidade de ampliação de leitos psiquiátricos, financiamento de eletrochoque, internação de crianças e adolescentes e ampliação das comunidades terapêuticas. Já, no final de 2020, o governo propôs um “revogaço” de mais de cem portarias que sustentam a Reforma Psiquiátrica brasileira.
Nesse caminho, afirmamos que abordar saúde mental é falar de vida. Em outras palavras, a negação das possibilidades de realizar escolhas concretas e subjetivas ocasiona sofrimento e pode levar ao adoecimento. Não ter um salário digno, condições de moradia e saneamento básico, alimentação adequada, transporte público, lazer e cultura, saúde, educação etc. impacta na existência dos indivíduos podendo ocasionar tristeza, angústia, insônia, irritabilidade, ansiedade e outros sentimentos que prejudicam o bem-estar em sua integralidade. Portanto, em tempos sombrios nada mais relevante do que retomarmos estratégias de cuidado em saúde/saúde mental para a promoção de ações coletivas de resistência. Afinal, de qual saúde mental interessa falar?
Rachel Gouveia Passos é assistente social, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense e autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.