Em um país ecumênico, o racismo religioso é líder de audiência

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Em um país ecumênico, o racismo religioso é líder de audiência

por Liliane Rocha e Fernanda Macedo
3 de março de 2023
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Será que a um homem negro gay de religião de matriz africana é vetado o direito de andar durante a noite sem que recaia sobre ele algum tipo de acusação?

Um grupo de pessoas, que não se conhecem entre si, está reunido em uma casa. Elas precisam passar algum tempo juntas, interagir e realizar atividades cotidianas, como limpar a casa, comer e dormir. Em uma das noites, uma dessas pessoas se sente mal e precisa sair do quarto para pegar remédio. Ao voltar para o quarto, toma algum tempo andando lentamente, por vezes parando, acostumando sua visão à escuridão para chegar em sua cama.

Até aqui, tudo normal e corriqueiro, se não fosse o fato desse episódio ter ocorrido no BBB23, e o homem em questão ser Fred Nicácio, homem negro, homossexual e que tem religião de matriz africana. Na noite de 20 de fevereiro, Fred passou mal e foi até a produção para pedir medicamentos para o braço, que estava doendo. Ao voltar para o quarto, lentamente, foi visto pelo também participante Cristian Vanelli, que diz ter sentido uma dor no coração ao ver Fred parado próximo de sua cama.

Em seu relato, Cristian diz ter acordado e visto Fred Nicácio também perto da cama de outros dois participantes, Key Alves e Gustavo Benedeti. Na narrativa, o que se dá a entender é que Fred, devido à sua religião, estaria fazendo algo ruim aos demais participantes. Como diriam os antigos – de forma bem preconceituosa e coloquial – a acusação é a de que Fred estaria “jogando uruca”, energia ruim nos demais participantes.

(Foto: Reprodução/TV Globo)

Felizmente, as quase cem câmeras da casa mostraram aos expectadores que Fred, de fato, estava somente seguindo a sua rotina e que a ocorrência, digna de atenção neste caso, era de racismo religioso por parte dos colegas de confinamento. Afinal, será que a um homem negro gay de religião de matriz africana é vetado o direito de andar (em qualquer lugar) durante a noite sem que recaia sobre ele algum tipo de acusação?

Ao longo dos anos, uma forma pela qual o racismo estrutural tem se perpetuado no Brasil é rechaçando, desqualificando, criminalizando e, por que não dizer?, demonizando toda a cultura e história oriundas dos povos africanos.

Recordamos até hoje de ter assistido a uma palestra de Taís Araújo, no TEDx São Paulo, em 2017, ocasião na qual, ao trazer seus filhos como exemplo, ela narrava situações cotidianas e inconscientes que pessoas negras vivenciam diariamente. Taís disse que o racismo no Brasil, dentre tantas outras coisas, é fluído, sistêmico, socialmente partilhado e socialmente produzido.

E uma das formas pelas quais esse racismo religioso se perpetua é por meio de uma construção de pensamento coletivo que solidifica a ideia de que religiões, como umbanda e candomblé, têm como objetivo práticas más, ruins, com a finalidade de prejudicar as pessoas. Assim as cores, hábitos e costumes são vinculados a malefícios.

Nesse sentido, lidar com a prática sistêmica racista em um país deve ser trabalho de enfrentamento não só do Estado, mas de toda sociedade civil, tais como a inserção da cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio; a conscientização da população quanto ao sistema discriminatório no qual estão inseridos; e o controle legal, rigoroso e permanentemente vigilante no que tange a crimes raciais.

O ocorrido pode passar despercebido, mas, na prática, e se Fred passasse por uma acusação como aquela fora da casa do BBB23? Teria como provar que estava sendo caluniado? E se, em vez do riso, do deboche e do medo, tivessem partido para uma agressão física? Pode parecer exagero, mas temos visto ao longo dos últimos anos diversos casos de racismo religioso no Brasil. Relatório da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) revela que 78,4% dos adeptos das religiões de matriz africana no Brasil afirmam ter sofrido algum tipo de violência motivada por racismo religioso. Ao fazer uma pesquisa rápida pelos sites de notícias, as manchetes chamam a nossa atenção, “Sétimo terreiro é depredado em Nova Iguaçu nos últimos meses”, “Terreiro de umbanda é invadido e depredado em Araraquara”, “Terreiro de candomblé novamente depredado na região de Salvador”, para mencionar apenas alguns casos encontrados. Esses são exemplos de crimes de ódio que ferem diretamente a dignidade de pessoas pretas.

Mesmo o ano de 2023 tendo começado com marcos históricos, em termos legais, para a garantia da liberdade religiosa e do combate à discriminação racial, ainda é cedo para atestarmos as mudanças práticas e cotidianas advindas da Lei nº 14.532/2023. No entanto, destaca-se o avanço que é termos hoje, diante de casos como este, instituída as diretrizes para o combate ao racismo religioso.

A injúria praticada em razão da sua crença tem previsão legal. Com isso, a conduta de ofender a pessoa valendo-se de elementos relacionados à religião é crime. É importante salientar a existência da figura típica do racismo religioso em suas formas básica e equiparada. Constitui racismo praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e, ainda, de forma equiparada, quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas, demonstrando superioridade, menosprezando, diminuindo, segregando, impedindo a existência, a prática ou manifestações religiosas de matrizes africanas.

Ironicamente, em meio à desconfiança que sofria, ao responder pelo que rezava dentro do confinamento, Fred respondeu que rezava pelo seu bem-estar e o de seus colegas.

 

Liliane Rocha é mestre em Políticas Públicas pela FGV, CEO e Fundadora da Gestão Kairós e Conselheira de Diversidade.

Fernanda Macedo é advogada e consultora de treinamentos especialista na temática racial da Gestão Kairós.



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