“Em um país misógino e racista, espero todo tipo de violência”
Atriz falou sobre a descoberta do ambientalismo como luta, o processo contínuo de evolução cultural e a construção da própria personalidade
Os cabelos cacheados estão quase sempre presos, e a fisionomia, acostumada ao sorriso de outras personagens, agora é séria. “A Verônica não dá brecha para o recurso sedutor”, explicou a atriz Taís Araújo ao analisar as características da advogada que é uma das protagonistas da série Aruanas, uma coprodução entre a Maria Farinha Filmes e a Rede Globo.
Lançado em julho, o folhetim mostra a rotina de uma ONG (Aruanas) que luta contra o desmatamento e a atividade ilegal de garimpo na cidade fictícia de Cari. Na vida real, a produção foi gravada em Manacapuru, na região metropolitana de Manaus. Ao lado de Taís Araújo, as outras ativistas são representadas por Leandra Leal (Luíza), Débora Falabella (Natalie) e Thainá Duarte (Clara). Conflitos pessoais, traições e esquemas – como o lobby entre empresários e políticos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal – são vistos na trama disponível em mais de 150 países.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), houve um aumento de 88% no desmatamento da Amazônia Legal no mês de junho, em comparação ao mesmo período do ano passado. Os dados alarmantes provocaram críticas de Jair Bolsonaro ao órgão, alegando que o instituto “está a serviço de alguma ONG”. As falas foram rebatidas pelo presidente do Inpe, Ricardo Galvão.
“Nosso foco não é o governo, mas a Amazônia, com o propósito de reunir quem deseja pensar a preservação daquele ecossistema, o respeito às comunidades ribeirinhas, a população indígena, entendendo que aquilo é uma fonte riquíssima de conhecimentos e possibilidades”, afirmou Taís Araújo. “A série tem um lado definido, que é o da preservação da Amazônia e o progresso com sustentabilidade”, completou.
Aos 40 anos, Taís Araújo entende que trabalhar com um tema que não é o seu habitual, em uma personagem diferente do que fez até aqui, ajuda a solidificar um caminho de autoconhecimento. “Adoro fazer entretenimento, mas se eu puder, além de entreter, provocar reflexões, minha opção sempre será essa.” A construção de uma personalidade está embasada também em um processo de descoberta. “Tenho lido muitas mulheres, mulheres negras, porque há uma lacuna na minha formação”, reflete.
É a partir da formação teórica que a atriz tem avaliado de maneira crítica o Brasil contemporâneo. Se a temática ambiental é novidade, as discussões que envolvem cor e raça estão no seu cotidiano. “Às vezes há uma enxurrada de violência gratuita, que existe pelo simples fato de ser mulher negra. No começo eu dava uma baqueada, mas depois você fica cascuda”, revela Taís Araújo.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Uma das primeiras frases que aparecem sobre essa série é: “Aruanas não é uma série de ação, mas de reação”. O que isso significa?
TAÍS ARAÚJO – Acho que tem dois significados. Ao ver o trailer, por exemplo, você acha que é uma série de ação, um thriller, uma mistura de gêneros. Mas eu também acredito que seja uma série pensada com o intuito de preservar. Mostrar que preservação e progresso podem caminhar juntos.
Como você acha que a série trata a contradição entre o capital e a exploração? Isso aparece?
Acho que a série trata isso de maneira inteligente. Tem as quatro personagens que são ativistas, trabalham na ONG. Mas há o ponto de vista do Miguel, empresário, e por que ele acha interessante agir de maneira exploratória, e o das meninas que estão no mercado de prostituição infantil. Alguns espectadores vão se identificar com o nosso ativismo, mas tem gente que vai se identificar com o empresário. Ao escutar a menina que está sofrendo exploração infantil, e obviamente não é possível dar razão a isso, você entende a realidade dela, que é outra. A série não mostra quatro heroínas contra o mal. Cada um coloca seu ponto de vista e o defende.
A escritora nigeriana Chimamanda Adichie costuma dizer que desenvolvemos discursos únicos sobre algumas histórias.
Pois é, e a série toca justamente nisso. Nós somos muitos, e existem diversos tipos de empresários, muitos tipos de ativistas, indígenas, enfim, de pessoas que compõem nossa sociedade. A maneira como elas se comportam na vida diz muito de onde vieram e das possibilidades que tiveram. A série tem um lado definido, que é o da preservação da Amazônia e do progresso com sustentabilidade. Mas, ao mesmo tempo, ela não é unilateral, no sentido de que quem não pensa igual a gente está completamente errado.
A série foi gravada em Manacapuru, no Amazonas, que tem sofrido com a disputa entre grileiros e fiscais do Ibama. Em dezembro do ano passado, Jair Bolsonaro criticou os fiscais afirmando que existia um “ambientalismo xiita” na região. Como o ambientalismo entrou na sua vida?
Eu fui a primeira atriz a ser chamada e, de início, me encantei pela dramaturgia. Entendia que era um assunto importante, tinha consciência, mas o que me atraiu foi a minha personagem e os conflitos que ela apresenta. Entrando na história, o Marcos [Nisti] e a Estela [Renner], diretores da série, são dois ativistas. É impossível entrar nessa história e não ser absolutamente tomada por ela, porque o meio ambiente diz respeito a todo mundo que vive neste planeta. Quando me perguntam se a série foi uma resposta ao governo, sempre respondo que não, porque ela começou a ser escrita em 2012. Nosso foco não é o governo, mas a Amazônia, com o propósito de reunir quem deseja pensar a preservação daquele ecossistema, o respeito às comunidades ribeirinhas, a população indígena, entendendo que aquilo é uma fonte riquíssima de conhecimentos e possibilidades. É preciso mostrar que uma floresta em pé vale muito mais do que a floresta no chão, que a pesquisa científica é importante e que graças a ela nós achamos a cura para diversas doenças. Por isso somos contra o desmatamento. Uma vez que desmatou, ferrou, você perdeu, não tem mais.
Durante uma entrevista ao Lázaro Ramos, no programa Espelho, você disse que só tem aceitado trabalhos que de fato possam trazer algo relevante para sua carreira. Esse foi o caso?
Sim, pela temática e porque minha personagem é muito complexa.
Ela é muito diferente de você como pessoa?
Totalmente. Na primeira vez que me vi interpretando, fiquei assustada. Ela é uma pessoa muito dura. Normalmente, faço mulheres malemolentes, que utilizam mais o carisma. A Verônica é seca, direta e não abre nenhuma brecha para o recurso sedutor, que muitos atores usam, inclusive eu. Como atriz, foi um desafio muito grande, além de toda a história pessoal dela, que tem um caso com o marido da amiga na ONG… Eu tenho muitas críticas ao comportamento dela, e isso também me motivou.
A Fernanda Montenegro, em uma entrevista para nós no ano passado, falou sobre o ator ser um viajante das almas.
Ela está certíssima. A Verônica advoga em prol de uma causa tão nobre, mas vacila na vida pessoal em algo que é ético, de caráter. Às vezes é assim na vida: você escolhe, faz a merda e já era. Isso é muito humano. Grandes personagens permitem isto: entender que a humanidade é falha. Aí entra o ator, que passa por várias personalidades, tipos de caráter, e entende que, por maior que seja o meu julgamento moral, o erro faz parte da vida. Passear por essas histórias é uma delícia.
Como você tem transformado a sua arte em cultura? Ao fazer a peça O topo da montanha, por exemplo, grande parte dos espectadores são negros e negras.
Meu trabalho não tem sentido se não for assim. Adoro fazer entretenimento, mas se eu puder, além de entreter, provocar reflexões, pensamentos e fazer que possamos melhorar nossa vida como sociedade, minha opção sempre será essa. Para fazer essa série, por exemplo, tive que conciliar com uma novela. Implorei para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, porque sei que é importante falar sobre o assunto. Isto é o que me mobiliza como artista: provocar reflexão. E não só no outro, mas em mim também. Quando isso acontece no espectador, impacta minha vida. Eu trabalho desde criança, mas ter essa consciência foi um processo. Hoje, não me enxergo como atriz sem ter alguma questão que envolva responsabilidade social na minha atuação.
Você falou um pouco sobre o processo de conscientização social. O que você tem lido?
Tenho lido muitas mulheres, mulheres negras, porque há uma lacuna na minha formação. Durante muito tempo não li mulheres, sobretudo negras. Tem um coletivo, por exemplo, o Di Jejê, que possui teses e cursos sobre questões raciais no Brasil. Mas é algo que preciso preencher. Não que isso me tenha sido negado, mas o fato é que não tive essa formação. Está em tempo, porque sou uma mulher em construção.
Como é na sua casa, com os seus filhos? Conversam sobre racismo?
Meus filhos são pequenos. A mais nova tem 4 anos e o mais velho, 8. A gente vive em um mundo no qual uma criança negra tem mais possibilidade de encontrar certas coisas, como livros, algo que eu não tive na infância. Se ver retratado e representado.
O que eu faço é fortalecê-los e trabalhar a autoestima deles com livros temáticos, super-heróis e princesas, todos negros e negras. Não acho justo pegar crianças de 4 e 8 anos e tirar delas a inocência para apresentar um mundo tão cruel e um país mais cruel ainda. Jogar isso no peito delas e dizer “vai, se vira”. Não seria justo. Quero que sejam duas crianças com a infância plena.
Durante uma palestra no TEDx, você fala sobre não se deixar afetar pela brutalidade cotidiana. Como se blindar?
Acho que tenho plena consciência do país em que vivo. Às vezes há uma enxurrada de violência gratuita, que existe pelo simples fato de ser mulher negra. No começo eu dava uma baqueada, mas depois você fica cascuda. Vivo em um país que é misógino, racista, preconceituoso, então posso esperar todo esse tipo de violência, já que estou no centro do debate. Entendendo isso, fica tudo mais fácil. Quando o outro vem com violência, isso diz muito mais sobre a origem dele, como ele enxerga o mundo, do que sobre mim.
Sou uma mulher negra cheia de privilégios, muito diferente de uma menina nascida e criada na Maré. Só que para mim não faz sentido ficar com esse privilégio só para mim e fingir que aquela menina não existe, porque, se eu não fortalecer a vida dessa garota, a minha filha não vai ter um país legal para viver. Por mais privilégios que eu tenha, não posso ignorar o fato de outro não ter a mesma vida que eu e seguir flanando por aí com o meu salário da Rede Globo. Não faz sentido como artista e principalmente como cidadã.
No ano passado, a Elza Soares me disse que via uma sociedade com medo. O Criolo tem aquela música que diz “as pessoas não são más, elas só estão perdidas”. Como chegamos a esse ponto?
Acho que tem a ver com falta de possibilidade e educação precária. Se a gente fortalecesse a educação desse povo, seríamos outro país, porque teríamos aumentado as possibilidades. Sou otimista, acredito que ainda há tempo. A solução, para mim, está na educação. O que tem acontecido no Brasil desde a sua fundação é que só se fortalece uma parcela da sociedade: quem está na ponta da pirâmide. Quem está nessa posição reclama muito de violência, mas está dentro do seu carro blindado. E toda essa gente que está embaixo, cadê? Falta olhar para o outro.
Para mim, parece evidente: se fortalecermos quem está necessitado, as possibilidades de todos aumentam. Seu filho vai poder ir para uma boate sem você ficar se preocupando se ele morreu, foi assassinado ou qualquer coisa do tipo. Para quem está na base, o filho é assassinado no caminho para a escola. A universidade deve ser para todos, e não para poucos. Falo o tempo todo isso, mesmo cheia de privilégios. Meu carro é blindado, porque eu tenho medo! É um horror viver neste estado de alerta e é um horror não olhar para o que é simples, que é educar e fortalecer o povo. Não estamos olhando a longo prazo, está todo mundo olhando para o seu, sua família, seus netos. Como se eles fossem os únicos habitantes do Brasil. Não são.
Guilherme Henrique é jornalista.