Emily in Paris e as horizontalidades e verticalidades de Milton Santos
As verticalidades desestabilizam as horizontalidades. Para Milton Santos, uma outra globalização é possível, mas precisamos nos unir horizontalmente.
Nada mais clichê do que o império cinematográfico estadunidense sediado em Hollywood, mas influente na construção do imaginário popular de diferentes lugares do mundo. Lily Collins é Emily Cooper, uma jovem de classe média de Chicago que se muda para Paris como parte de uma estratégia de promoção no trabalho na Gilbert Group, um conglomerado de marketing que recentemente comprou uma empresa francesa do ramo da moda e precisa de “olhos americanos” para supervisionar o escritório parisiense. Savoir é uma empresa que tem tradição de trabalhar com importantes marcas francesas do mercado de moda e é comandada por Sylvie Grateau, interpretada por Philippine Leroy-Beaulieu. A primeira temporada se deu quase inteiramente em inglês, quase como uma tentativa de mostrar como os estadunidenses gostam de serem servidos pelo resto do mundo que deve se submeter a falar seu idioma, hoje tido como global e presente de modo estrutural em nossos hábitos cotidianos. Emily in Paris, produzida pela Netflix, confronta esse cenário e oferece uma série de exemplos do que Milton Santos, geógrafo e professor brasileiro, trabalhou na década de 1990 a respeito da globalização, corroborando com seus conceitos de verticalidades e horizontalidades.
Se tem algo que a série faz muito bem é denunciar o assédio de grandes corporações internacionais aos mercados locais e regionais, vinculados a uma espécie de soberania nacional estruturada em grande medida pela cultura da sua sociedade, a qual é prioridade para as empresas locais e seus negócios. Evidente que estamos falando do Norte Global, uma série que conta uma história entre metrópoles globais dos países do capitalismo central, como Estados Unidos e França. Nós, latino-americanos, precisamos ser provocados a consumir esse conteúdo de outra maneira, sem nos esquecermos das hierarquias impostas pelo capitalismo que empurra regiões como a América Latina para a periferia do sistema.
Ainda que a série faça questão de evidenciar símbolos parisienses dos mais conhecidos e monumentais, como a própria Torre Eiffel, está posto que a metrópole mantém suas horizontalidades que permeiam a própria elite local que transita também nos arredores interioranos e na costa mediterrânea, onde preserva o orgulho da língua e dos hábitos locais. São muitos os momentos de vergonha alheia provocados por Emily, que tenta mostrar sua cultura imperialista por meio dos filmes estadunidenses, sobretudo os que foram produzidos no continente europeu, o que lhe rendeu situações constrangedoras com os franceses. É interessante a desconstrução do imaginário de uma Paris irreverentemente global, a cidade luz que se firmou como uma das sedes do mundo ocidental. Mesmo essa Paris não está solidamente segura das investidas dos mercados globais, afinal, como bem disse Emily ao seu parceiro orgulhosamente londrino, Alfie, que trabalha em um grande banco internacional, “La Defense é Pittsburgh”. A personagem tentava convencê-lo de que seu ódio por Paris vinha do desconhecimento da verdadeira Paris, já que o parceiro morava e trabalhava no centro financeiro de estilo internacional que pouco tem a ver com a maior parte da metrópole parisiense. Qualquer percepção de similaridade com o que sentimos em relação aos turistas que conhecem São Paulo pelas avenidas Faria Lima, Berrini e Rebouças não é mera coincidência.
Na quarta temporada, lançada em 2024, situação parecida acontece com uma empresa familiar da região de Roma, capital italiana, já que recebeu uma proposta de um grande conglomerado de luxo sediado em Paris, o JVMA. O conglomerado em questão é comandado por uma família que dá mais importância para sua aparência nos tablóides e na escalada dos herdeiros à posição de CEO do que às identidades dos seus clientes e empresas que se submetem às suas aquisições. Quando a empresa assume sua posição vertical, ela se iguala ao conglomerado norte-americano ao interferir de maneira negativa nas empresas de âmbito local, o que evidencia o caráter abstrato dos processos capitalistas que, ora apresentam uma cidade de aspectos verticais, ora de particularidades horizontais, resultando em complexidades que estão além de bem versus mal ou de um país contra outro. Inclusive, esse processo se complexifica quando a fundadora da empresa italiana exige que a empresa de Sylvie tenha um escritório em Roma para que aceite a proposta de negócios.
Mesmo em casos de famílias multimilionárias como a de Mindy Chen, uma cantora natural de Xangai, megacidade chinesa, onde seu pai é conhecido pelos zíperes que sua empresa produz, a série faz questão de demonstrar suas relações com as bases nacionais. Emily, ainda que protagonista, é o bode expiatório dos vexames dos Estados Unidos na sua tentativa de domínio por meio da exportação de uma cultura massiva e que pouco tem de real sobre os lugares que apresenta. Isso fica claro na dificuldade de Emily em aprender francês, diferente dos outros personagens que dominam duas ou mais línguas, dentre elas, o inglês. Em Roma, com Emily, Mindy recebe o convite para composição do júri do programa que lhe causou um trauma ao engasgar durante uma apresentação, o Chinese Popstar. Mais uma vez, as raízes nacionais são evidenciadas, independente do cosmopolitismo metropolitano que uma série como essa gosta de evocar e aproveita para escalar na audiência ao mencionar uma série de grandes cidades globais, tais como Chicago, Paris, Londres, Nova Iorque, Xangai, Roma, entre outras. Para Saskia Sassen, professora de sociologia dos Estados Unidos, a globalização vem borrando cada vez mais as fronteiras entre centro e periferia ao render territórios inteiros para os interesses corporativos, onde a fronteira física não é mais central na questão, ameaçando a soberania nacional de muitos países e outras divisões político-administrativas locais e regionais.
No fundo, a exclusividade tão almejada por Sylvie no trato com seus clientes, embora soe como um elitismo barato, faz oposição à massividade fomentada por Emily por meio do seu perfil no Instagram, onde se tornou uma influencer da sua vida em Paris e acaba por provocar o controle da empresa em âmbito local. É uma tentativa de preservar as particularidades frente a uma globalização predadora que pouco se importa com os nomes dos bairros das cidades que atropela, com suas administrações municipais e muito menos com as relações afetivas entre as pessoas e seus negócios. Em muitos casos, não se importam nem com as leis nacionais, como vimos recentemente com o banimento do X (antigo Twitter) no Brasil, pela tentativa de interferência na política brasileira por parte do bilionário Elon Musk. O Brasil se destacou internacionalmente por suscitar discussões a respeito da regulação da internet, sobretudo das redes sociais, o que também ocorreu com a Austrália, país que também tem sido assediado por Musk, que agiu de maneira diferente ao acatar as exigências da Índia, Turquia e de países da União Europeia e não alegou censura à “liberdade de expressão”. As verticalidades desestabilizam as horizontalidades. Para Milton Santos uma outra globalização é possível, mas precisamos nos unir horizontalmente.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).