Energia: Responsabilidade compartilhada
Quando se fala em nova crise é importante analisar a matriz energética brasileira frente ao contexto internacional; explicitar a diferença da política implantada pelo atual governo em relação àquela vigente durante o apagão de 2001; e apontar elementos para que as organizações da sociedade civil se posicionem no debate
Projeções sobre o aumento da demanda de energia elétrica no mundo até 2030 apontam para a necessidade de uma ampliação substancial da capacidade de geração instalada nos cinco continentes 1. E o aumento do preço do petróleo tem feito muitos países a elevarem a importância do gás natural e da energia nuclear, além de reforçar o papel desempenhado pelo carvão (combustível dominante para a produção mundial de energia elétrica), em suas matrizes energéticas.
Como pode ser notado na matriz elétrica mundial [gráfico 1], as principais fontes de energia utilizadas para gerar eletricidade são de origem não renovável. Mas a elevação dos preços dos combustíveis fósseis tem estimulado o interesse mundial pelas fontes de energia renováveis 2.
A expansão mundial da produção hidrelétrica está fortemente vinculada ao potencial existente nos países asiáticos, principalmente a China, o Laos e o Vietnã. Pois, nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) 3, além do Canadá (maior produtor de energia hidrelétrica do mundo, seguido de perto por China e Brasil), não há expectativa de um crescimento substancial desse tipo de energia 4. E, na América do Sul, em função dos consideráveis recursos hidráulicos já utilizados, e da necessidade de diversificar as matrizes, espera-se que os países invistam em outras fontes de energia, principalmente o gás natural.
O segmento hidrelétrico é amplamente dominante na matriz brasileira. A fartura de água faz com que responda por 85% da oferta total de energia (incluindo-se neste percentual os 9% relativos à Usina de Itaipu) [gráfico 3].
Entre as implicações decorrentes de uma matriz tão fortemente dependente da geração hidrelétrica, destaca-se a necessidade de uma rede de segurança, dada a sazonalidade do regime de chuvas. Tendo em vista as dimensões continentais do território, nosso setor elétrico criou uma estrutura de confiabilidade a partir do aproveitamento de grandes estoques potenciais de geração de energia, os chamados reservatórios de grande proporção, todos eles vinculados a alguma das sete principais bacias de geração hidrelétrica 5.
Ao lado da necessidade de reiterada expansão do fornecimento de energia elétrica, outros aspectos relacionados à eficiência do sistema, como a ampliação da rede de transmissão, também têm sido considerados, como formas de possibilitar o equilíbrio entre oferta e demanda. O aperfeiçoamento das linhas de transmissão viabiliza a troca de energia entre as regiões, permitindo, desta maneira, um maior grau de proteção do sistema frente às variações hidrológicas.
A conexão entre as diversas bacias, por meio de extensas linhas de transmissão, traz a possibilidade de compensar as baixas fluviais de uma região pelas altas fluviais de outra. A transferência de energia excedente das bacias “molhadas” para as “secas” compensa a diversidade hidrológica e torna o sistema eficiente 6.
Tendo em vista que esses reservatórios possuem vasta capacidade de armazenamento de água, o setor energético brasileiro, ao final da década de 1990, estimava uma capacidade de segurança de cerca de cinco anos. Ou seja, as decisões sobre novos investimentos no setor contavam com um horizonte de quatro a cinco anos para começar a ser postas em prática. E, em tese, os problemas conjunturais do setor (hidrologia desfavorável, aumento de consumo etc.) não teriam impacto no fornecimento de energia para os consumidores, pelo menos em um período de três anos. Esta foi a lógica presente nos Planos Decenais de Expansão, coordenados pela Eletrobrás.
Todas estas características são reconhecidas como uma vantagem comparativa do Brasil frente a outros países, não apenas por dispormos de uma fonte de energia de baixo custo de operacionalização como porque essa rede ainda pode ser significativamente expandida. Segundo o Balanço Energético Nacional 2006, existe uma reserva de 144 GW de energia firme/ano de origem hídrica no país 7. Tendo em vista que o aproveitamento de energia hídrica na matriz energética brasileira está em torno de 34 GW, conclui-se que apenas uma parcela equivalente a 24% está sendo utilizada.
A comparação entre as situações brasileira e mundial demonstra uma percentagem bem superior de utilização de recursos hídricos no Brasil [gráfico 2]. Dados de 2004 apontam o Brasil como o décimo produtor de energia e o terceiro produtor de energia hidrelétrica. Isso tem impacto direto na participação das fontes renováveis na matriz brasileira: 89%, contra apenas 18% no restante do mundo.
Qualquer proposta de diversificação da matriz elétrica brasileira deve obrigatoriamente levar em consideração esta situação. É comum pensar que as energias solar ou eólica possam alcançar o mesmo grau de importância que a hídrica na matriz brasileira. Mas os dados concretos indicam a necessidade de relativizar tal desejo e transferir para as franjas do sistema um eventual protagonismo das demais fontes renováveis.
Diferenças entre políticas
O sistema elétrico brasileiro tem sido impactado por mudanças estruturais em sua forma de funcionamento. Tal sistema, hegemonicamente controlado pelo Estado até o início dos anos 1990, se reestruturou para incorporar novos atores advindos do setor privado. Dentre as alterações estruturais do setor, a exploração da energia por terceiros e a segmentação das atividades (geração, transmissão, distribuição e comercialização) podem ser consideradas as adequações mais importantes.
As privatizações no setor elétrico, baseadas no Programa Nacional de Desestatização (Lei 8.031, de abril de 1990), começaram a ser efetuadas a partir de 1995. Durante o governo FHC, mas com o seu volume fortemente concentrado entre os anos de 1996 e 1998, foram privatizadas 20 empresas de distribuição e quatro de geração. Em função da desvalorização cambial, não houve privatizações em 1999. E no ano seguinte foram transferidas para o setor privado apenas três distribuidoras de menor porte 8.
Houve, no entanto, um grande descompasso entre o processo de privatização e o processo de reestruturação do setor elétrico brasileiro, uma vez que a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o órgão regulador, só começou a funcionar em 1997; o Operador Nacional do Sistema (ONS) e o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), em 1998; e o Conselho Nacional de Política Energética, em 2000 (embora previsto em lei desde 1997). Pelas datas referidas, é possível observar que a privatização se iniciou sem que instrumentos importantes para o planejamento, regulação e gestão do novo modelo estivessem implementados.
Tal descompasso custou caro ao governo que, em 2001, se viu responsável por administrar uma crise de abastecimento de grande proporção, popularmente chamada de apagão. Assim, sem um marco institucional bem definido, a expansão da oferta ficou comprometida. E a crise explicitou as deficiências de um Estado majoritariamente regulador no setor elétrico. O risco de colapso foi contornado pelo governo por meio de um plano de contingenciamento. No tocante às causas geradoras da crise, a não realização de novos investimentos privados na matriz assim como o atraso na execução de obras previstas são consenso entre os especialistas.
De 1995 a 2002, o aumento dos investimentos se apoiou no crescimento da participação do setor privado e na variação da matriz. Em outras palavras, a introdução da competição privada na geração de energia elétrica, tendo como pressuposto outro tipo de atuação reguladora do Estado no setor, se estabeleceu como um dos principais eixos de reestruturação do sistema. Em paralelo, a variação da matriz energética, principalmente com ênfase dada ao programa prioritário de termelétricas, configurou uma segunda agenda para manter o equilíbrio entre a oferta e a demanda de energia.
Enquanto os investimentos privados eram realizados aquém do nível ótimo, os analistas enfatizam que, apesar das condições favoráveis que as estatais tinham para investir, esta alternativa não foi utilizada pelo governo FHC para reverter, ou ao menos minimizar, o quadro de crise que se avizinhava. É fundamental reforçar que as estatais tinham como investir e não o fizeram em função da política ortodoxa do então ministro Pedro Malan.
Assim, a opção do Ministério de Minas e Energia (MME), de incentivar o setor privado para construir termelétricas com o intuito de complementar a geração hidrelétrica, estava vinculada às oportunidades políticas (construção do gasoduto Bolívia-Brasil) e às determinações palacianas, as quais pressupunham privatização de empresas e suspensão dos investimentos estatais 9.
A partir do trauma gerado pela crise de abastecimento de 2001 e com a vitória eleitoral do então candidato de oposição, constelou-se a idéia de que algo deveria ser feito para superar o que fora chamado de falência do modelo baseado na proibição de investimentos de empresas públicas no setor, na privatização das empresas geradoras e distribuidoras de energia e na intermediação da relação principal-agente por meio de agência reguladora.
O novo governo percebia como sendo de fundamental importância retomar o planejamento estratégico integrado e reordenar as atribuições das instituições envolvidas no setor elétrico – como MME, ANEEL, ONS, MAE e Eletrobrás.
Essa tarefa foi assumida como um dos compromissos de campanha e delegada à então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff. De fato, no curso de 18 meses, a ministra formulou com os agentes privados, incentivou a aprovação no Legislativo e promoveu a regulamentação no Executivo da lei que instituiu um novo marco regulatório no setor – processo concluído em 30 de julho de 2004.
Importante observar que, apesar de a política de superávit fiscal também ser uma realidade para o governo Lula, a decisão de autorizar que empresas estatais, como a Eletrobrás e Furnas, fizessem investimentos em geração de energia abriu todo um conjunto de oportunidades para o setor.
A comunidade de especialistas que se mobilizou durante o governo Lula não interpretou o ambiente de restrição orçamentária da equipe econômica como um limitador para a reestruturação do sistema. O gargalo na expansão da geração de energia elétrica, explicitado no período FHC, por meio da implantação do racionamento, foi superado em função de um planejamento estratégico integrado e do reordenamento de atribuições das instituições envolvidas na política setorial.
Tais medidas foram transformadas nos aspectos centrais da nova política energética. Se no governo FHC o núcleo central da política se resumia à reforma do modelo gerencial, à privatização e à ausência de investimento estatal; no governo Lula, essa tríade foi substituída pela reforma do sistema gerencial, pelo planejamento estratégico e pela combinação de capital estatal com capital privado para a expansão do investimento no setor elétrico.
Responsabilidade de quem?
Do que foi dito até agora, destacam-se dois elementos. Primeiro: a geração hidrelétrica é a base do sistema brasileiro e seguirá assim por muitas décadas, pois é uma vantagem comparativa ter 85% da matriz elétrica proveniente da força das águas, um recurso renovável. Segundo: há diferenças fundamentais entre as políticas implantadas nos governos FHC e Lula. Comparações entre os períodos de 2001 e 2008 serão superficiais se essas diferenças não forem levadas em consideração. O sistema elétrico, hoje, não é integralmente refém do capital privado. É claro que a participação desse setor não pode ser considerada desprezível. Porém, o atual governo brasileiro tem como política a utilização de suas próprias forças produtivas para ampliar o potencial de energia elétrica disponível. Isso implica dizer que, se ainda persistem dúvidas em relação às possibilidades de o sistema suportar as demandas social e produtiva, a questão não deve ser vista como mera continuidade do que ocorreu no passado, seja do ponto de vista político, econômico ou ideológico.
Entre os principais problemas a serem equacionados pelo governo está a ampliação da oferta de energia elétrica a partir de nossa vocação natural, isto é, a partir da utilização de recursos renováveis, para não dizer hídricos.
Em média, o Brasil precisa instalar 4 MW de energia potencial nova no sistema por ano. É bem verdade que a diminuição das perdas e a renovação do atual sistema por si só teriam um impacto positivo na ampliação da capacidade ofertada, porém estas decisões, que urgem ser tomadas, são de alcance conjuntural. De forma estrutural, a ampliação da potência não se viabiliza por meio da instalação de painéis solares, que não suportam o consumo intensivo e constituem uma opção extremamente cara. Também não se viabiliza por meio de turbinas eólicas, principalmente em função da intermitência e variabilidade dos ventos. A energia térmica e a energia nuclear, sim, são capazes de fazer frente à energia hídrica, porém, não se justificam do ponto de vista econômico e ambiental. E não constituem fontes renováveis.
A sazonalidade do regime de chuvas tem posto em cheque a eficácia da hidroeletricidade como principal fonte geradora de energia no país. Porém, a diminuição nos níveis dos reservatórios de água não pode ser imputada exclusivamente aos períodos de estiagem. A questão mais relevante que está por trás desse quadro é saber se o Estado e a sociedade brasileira ainda desejam manter as bases do atual modelo de oferta nacional. Mais do que isso, se este modelo já não é mais consenso, a questão é saber quais são as alternativas passíveis de serem implantadas no curto, médio e longo prazos para assegurar o desenvolvimento sustentável do país.
No que tocas às energias renováveis (solar, eólica e até mesmo as pequenas centrais hidrelétricas), estas não só podem como devem ser melhor aproveitadas no sistema elétrico nacional. Além disso, é urgente pensar em um padrão de consumo menos intensivo. Porém, estas demandas sociais, que terão impacto bastante positivo no desenvolvimento sustentável do país já no curto prazo, também devem buscar alternativas viáveis para a produção hidrelétrica. Parte significativa dos atrasos na construção de novas usinas hidrelétricas surge a partir de questionamentos socioambientais. A luta dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, em especial o Movimento dos Atingidos por Barragens, são essenciais, legítimas e contribuem para inserir a agenda social e ambiental na pauta de preocupações dos governos. No entanto, o problema persiste e agora não se trata apenas de falta de investimento público. Trata-se, isto sim, de um esforço coletivo que conjugue organizações da sociedade civil e governos na busca de alternativas que mantenham a vantagem comparativa da matriz elétrica brasileira.
*Cassio Luiz de França é cientista político, mestre e doutor em Administração Público e Governo. Exerce, atualmente, o cargo de diretor de projetos da Fundação Friedrich Ebert (FES/ILDES).