Enfrentando Hollyworld
Com uma rede de produção e distribuição que opera em escala mundial, estimulada pela concentração em grandes conglomerados midiáticos, as majors dominam o mercado cinematográfico. Mas, apesar desse cenário arrasador, existem formas de resistir à uniformização do acesso aos produtos audiovisuais hegemônicos
“Se cinema é cachoeira, vídeo é arrebentação” (Guiwhi)
“Quem não deve não treme” (dito popular)
Por um processo histórico, a concentração da indústria cinematográfica remonta ao período entre guerras, em que o cinema hollywoodiano conquistou os mercados mundiais com uma distribuição massiva. No entanto, nas últimas décadas é visível o aprofundamento desse processo de centralização. Um oligopólio de seis empresas (Warner, Sony, Disney, Paramount, Universal e FOX) domina a indústria cinematográfica mundialmente, de modo que dos vinte filmes de maior bilheteria lançados em 2008, apenas um não tem participação de uma dessas companhias. São empresas que funcionam numa integração vertical, em que o domínio de suas atividades está na distribuição, e não propriamente na produção ou na exibição, comprovando que a circulação é o fator-chave desse modelo.
Por outro lado, essas empresas integram outros conglomerados ainda maiores, de forma que os estúdios cinematográficos tornaram-se parte de grandes conjuntos midiáticos. O exemplo mais significativo foi a fusão entre AOL, Time e Warner, englobando, num mesmo oligopólio, líderes globais de produção de conteúdo cinematográfico e de mídia impressa, além de um grande player na indústria de tecnologias de comunicação. O passo seguinte a esse processo foi a incorporação desses conglomerados em outros mais robustos, de maneira que a indústria midiática fosse apenas parte de um todo que resulta nos mais diversos produtos, numa lógica de consolidação de marcas e de pulverização dos investimentos como forma de redução dos riscos. Um exemplo é a compra da Universal pela General Electric (GE), empresa que fabrica produtos tão diversos quanto turbinas para aviões ou equipamentos hospitalares.
Operação em escala global
Apesar de falados em língua inglesa, os produtos fílmicos dessas grandes corporações não são propriamente estadunidenses, mas essencialmente globais. Em vez de representarem o domínio de Hollywood, são na verdade representantes de uma “Hollyworld”, já que atualmente a minoria dessas empresas ainda permanece sediada em Los Angeles. Além disso, o mercado externo já se tornou a maior parte das receitas dessas companhias: em 2006, 65% da receita das majors foram obtidas fora do território estadunidense. Com uma rede de produção e distribuição que opera em escala mundial, estimulada pela concentração em grandes conglomerados midiáticos, pela velocidade dos fluxos financeiros e pelos efeitos multiplicadores das ações de marketing com a difusão da informação através das tecnologias de comunicação sociais massivas, as majors dominam o mercado cinematográfico não apenas dos EUA, mas da maior parte de países do mundo, inclusive das grandes potências econômicas europeias, como Itália, Alemanha e Reino Unido. Mesmo na União Europeia, a participação dos filmes estadunidenses é de 70%, sendo que os europeus representam apenas 28,4%. Ou seja, os cinemas nacionais são “estrangeiros em seu próprio território”, dominados por um cinema hegemônico, que atua em escala global.
Como seria de se esperar, o Brasil não se trata de exceção à regra mundial. De fato, a invasão de filmes de “Hollyworld” é esmagadora num mercado de grandes desigualdades, onde 92% dos municípios não têm uma única sala de cinema em funcionamento regular, e 61% da renda de bilheteria está concentrada nas dez principais capitais. Possuindo pouco mais de 2.000 salas (2.063 salas em 2008), o mercado de exibição é pequeno, em se tratando seja do número de espaços físicos per capita, seja por km2. Os filmes distribuídos pelas “Big Six” são exibidos comercialmente no mercado brasileiro por meio de grandes lançamentos, numa estratégia integrada mundialmente. Alguns deles chegam a ocupar mais de 500 salas simultaneamente, configurando uma invasão maciça de um único produto na fatia mais privilegiada desse nicho: os multiplex dos grandes centros urbanos, com filmes que estimulam a fantasia e o escapismo, repetidos e reiterados através de sucessivas continuações, como Homem Aranha, Harry Potter e Missão Impossível. Em 2008, as “Big Six” tiveram uma participação de cerca de 80% no mercado de distribuição cinematográfica no Brasil.
Nesse contexto, produzir cinema fora do contexto dessas seis empresas se revela um projeto de resistência; de luta pela sobrevivência de outras formas de se contar uma história e de mostrar valores que não coincidam com a hegemonia da veiculação das marcas e da lógica mercantil. Os países têm tentado garantir essa possibilidade em diversos fóruns. Recentemente, no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), alguns Estados, liderados pela França e com participação marcante do Brasil, lançaram o conceito da “exceção cultural”, mostrando que o audiovisual não deve ser simplesmente regulado como um mero produto industrial, já que traz consigo uma carga de valores simbólicos que não podem ser simplesmente substituídos por um bem cultural de outro país.
Apesar desse cenário arrasador, existem formas de resistir à uniformização do acesso aos produtos audiovisuais hegemônicos. Hoje, é possível produzir conteúdo com boa qualidade técnica, com câmeras digitais portáteis, a um preço bastante acessível. A difusão desses materiais se tornou possível por meio de inúmeros portais e plataformas na web, responsáveis por divulgar não só novos talentos, mas especialmente as formas alternativas de produção e de veiculação de ideias, já que o grande risco da exposição massiva de um pequeno número de obras audiovisuais mundialmente é que o espectador conclua que existe uma forma hegemônica de pensar, agir, viver. Ter acesso a diferentes modos de fazer é, portanto, um sinal de liberdade, exercício de cidadania, em que aprendemos a observar o outro e respeitar as diferenças.
Os cineclubes e as mostras de audiovisual continuam sendo um espaço importante para o encontro de pessoas, a veiculação de filmes e realização de debates sobre os desafios da produção contemporânea. A Mostra do Filme Livre (www.mostradofilmelivre.com), realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, é um exemplo, ao completar nove anos de atividades privilegiando os novos formatos e abrindo portas para formas alternativas de se pensar o audiovisual. Exibindo filmes de diversas regiões do país, com diferentes modos de produção, em geral com um orçamento bastante reduzido, mas com muita criatividade, a Mostra oferece ao público uma possibilidade de reflexão sobre os rumos dos produtos midiáticos no mundo de hoje: os “filmes livres” não só podem como devem também entrar em cartaz.
O desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação tem provocado grandes mudanças nos modos de produção e consumo no mundo de hoje. Essas transformações, cada vez mais aceleradas, provocam impactos não somente sobre as técnicas, mas essencialmente sobre os espaços econômicos e sociais. O campo da cultura sente a influência dessa movimentação de maneira íntima, transformando o jeito de ser em produtos de uma indústria cultural cada vez mais materializada, guiada por uma lógica fundamentalmente mercantil. A unicidade dos fazeres dessa “aldeia global” inevitavelmente afeta ideias, padrões e valores socioculturais, impulsionando a adesão a uma cultura de massa que produz mercadorias midiáticas em escala nacional e por vezes mundial. Os meios de comunicação globais modificam radicalmente o imaginário de todos, por meio da circulação de livros, filmes e músicas, transformado-os em produtos que carregam consigo uma padronização crescente nos modelos de percepção do mundo e das coisas.
*Guiwhi Santos, formado em Jornalismo, é criador do site Curta o Curta (wwww.curtaocurta.com) e da Mostra do Filme Livre. Marcelo Ikeda é cineasta e crítico de cinema e professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará.