Enquanto é tempo
Em 1962, bastou o bom senso de um punhado de homens, encastelados em Washington e Moscou, para exorcizar o fantasma da guerra total. Agora, a natureza foi provocada além da medida, seus elementos foram despertados e estão em curso processos incontornáveis.
Em outubro de 1962, o mundo viveu 13 dias de extraordinária tensão. O episódio, que ficou conhecido como “a crise dos mísseis”, quase levou as duas superpotências militares da época – os Estados Unidos e a União Soviética – ao confronto total1. Da guerra fria à guerra quente, dos insultos limitados à destruição sem limites. Eu tinha, então, 11 anos, e me lembro como se fosse ontem do clima de terror. À noite, meu pai, um homem de esquerda que sempre se interessou pelos problemas do mundo, recebia telefonemas de amigos de todos os matizes ideológicos, que não conseguiam dormir de tanta apreensão. Ele os tranqüilizava com frases otimistas, que, a bem da verdade, eram mais produto de seus bons sentimentos do que de qualquer análise aprofundada da situação. Sua intuição, porém, funcionou. O susto passou; a Terra seguiu seu curso ao redor do Sol; a União Soviética, depois de alguns anos, desapareceu do mapa; e, hoje, nossas insônias têm outros motivos.
O que nos preocupa já não são os cenários de cidades volatilizadas por cogumelos nucleares, mas de metrópoles inundadas pela elevação do nível dos mares; de regiões inteiras varridas por furacões; de populações em fuga, lutando por água e comida. Enquanto escrevo este texto, recebo a informação de que a plataforma Wilkins, um formidável bloco de gelo de 16 mil quilômetros quadrados – mais de 10 vezes a área de São Paulo – está prestes a se desprender na Antártica. Por força de uma elevação de 2oC a 3oC na temperatura local!
O brasileiro tem o mau hábito de acreditar que questões como essa não lhe dizem respeito. Elas seriam, por assim dizer, coisa de gente grande, assunto de país do Primeiro Mundo. No entanto, para citar apenas dois aspectos do problema, objetos de nossa matéria de capa, o Brasil abriga a maior floresta tropical do planeta, que está sendo devastada em ritmo alucinante; e também metrópoles muito conturbadas, que já estão sofrendo os efeitos das mudanças climáticas, e serão dramaticamente castigadas com o recrudescimento do aquecimento global.
O desmatamento galopante da Amazônia está associado a fatores bem conhecidos: a exploração madeireira, a mineração predatória, a pecuária extensiva, os monocultivos, o agronegócio empresarial. O modelo econômico no qual essas formas de exploração se inscrevem – ganancioso, imediatista, concentrador – responde também, em escala planetária, pela ascensão das colunas de mercúrio dos termômetros.
Os desafios são imensos. E os governos comportam-se diante deles com notável indiferença: empurram com a barriga para futuros mandatos ou agem apenas em situações de absoluta emergência2. A grande mídia – oligopolizada e oligárquica – poderia fazer bem mais do que faz, mas está de mãos atadas por seu alinhamento com a mesma lógica econômica que promove o desastre. Mal atendida, mal informada, com suas esperanças frustradas e sua atenção desviada por factóides e distrações, a sociedade segue à deriva. Amma, a grande líder humanitária e espiritual indiana, comparou nossa inconsciência à dos jovens transviados que brincam de roleta russa: encostam o revólver na têmpora e puxam o gatilho. Porém, é preciso acordar, porque os blocos de gelo estão se desprendendo e a motosserra e o fogo estão agindo depressa demais.
De 7 a 11 de maio próximo, em Brasília, será realizada a III Conferência Nacional do Meio Ambiente, que tem como pauta exatamente as mudanças climáticas. Seria uma pena, seria verdadeiramente um crime, perder a oportunidade de deflagrar um amplo debate em todo o país. É crucial que a Presidência da República, os ministérios, em especial o Ministério do Meio Ambiente, as empresas, a mídia, as organizações da sociedade civil, os movimentos sociais, as mulheres e homens de bem se imbuam de um sentimento de grandeza e coloquem a defesa do planeta acima de seus interesses particulares.
Em 1962, bastou o bom senso de um punhado de homens, encastelados em Washington e Moscou, para exorcizar o fantasma da guerra total. Agora, a natureza foi provocada além da medida, seus elementos foram despertados e estão em curso processos incontornáveis. Ainda assim, o bom senso pode evitar o mal maior. Mas, para isso, precisamos nos mobilizar. E agir enquanto é tempo.
*José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.