Ensino superior, sociedade e Enem 2023
O Enem torna-se peça-chave para a denúncia de situações sociais que são preteridas pelas ideologias dominantes
O ensino superior no Brasil
Nos dias 5 e 12 de novembro, ocorreu a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) da edição de 2023. Essa avaliação é um dos métodos utilizados para selecionar os alunos mais bem preparados para ascender aos bancos universitários, uma vez que não há vagas disponíveis para todos. De acordo com o INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), em 2019, somente cerca de 20% da população entre 25 e 34 anos possuía um diploma de nível superior no país.
Outro fator que dificulta o acesso e a continuidade de todo o processo de estudo até a formatura no curso superior é a questão social, pois o Brasil é um dos países com as maiores desigualdades do planeta. Ainda de acordo com o INEP, 40% dos ingressantes em universidades, pertenciam aos 20% da população com maior poder econômico. Só 5% pertenciam aos 20% mais pobres da população, no ano de 2019. Desse modo, o ensino superior no Brasil, historicamente, é quase que exclusivo aos estudantes das classes A e B.

A dificuldade em seguir nos cursos de graduação é mostrada na pesquisa do Censo do Ensino Superior (2022), em que constatam que em torno de 80% dos jovens de 18 a 24 anos não estão na faculdade e 32,3% nem concluíram o ensino médio. Em relação à evasão, nas instituições particulares, 80% das vagas não são preenchidas e, nas públicas, as desistências chegam a 40%, tornando essas vagas ociosas.
Portanto, são duas questões muito relevantes no acesso ao meio universitário brasileiro: o primeiro é a escassez de vagas que forçam os interessados a passarem por sistemas seletivos baseados em uma prova escrita como o Enem e os tradicionais vestibulares. Medida que exige conteúdos ministrados por todo o Ensino Médio favorecendo aqueles que podem estudar por mais tempo e com ajuda extra, ou seja, candidatos das classes mais abastadas e que podem pagar um cursinho pré-vestibular. Enquanto os candidatos das classes A e B podem se preparar melhor, os candidatos das outras classes necessitam muitas vezes trabalhar cedo, privando-os do tempo de estudo.
O segundo ponto é a dificuldade que o estudante tem para manter-se durante o curso. Muitas das desistências na rede particular é por conta de não conseguirem pagar as mensalidades. Nas públicas, mesmo sem a taxa mensal, o custo de transporte, de alimentação e de material é bastante elevado. Tanto na faculdade particular como na pública, perda do emprego, diminuição da renda, aumento do custo de vida, emergências familiares entre outros eventos podem levar um jovem periférico à desistência de uma jornada longa e cara que não oferece garantias no futuro de uma vida melhor. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômico Aplicada (Ipea), cerca de 45% de pessoas entre 24 e 35 anos com diploma superior no Brasil exercem funções que requerem menor qualificação do que a escolaridade adquirida.
Sociedade do consumo e da exploração
Duas questões do primeiro fim de semana de prova – que incluiu linguagens, ciências humanas e a redação – chamaram a atenção das mídias, já que a bancada ruralista pediu a anulação dessas questões além de maiores explicações do governo Lula. Segundo a bancada (que conta com 324 deputados e 50 senadores) as perguntas não teriam critério científico e foram usadas como retórica política para encobrir falhas do governo atual.
No texto “Defender quem nos oprime: questão ideológica?”, publicado no Le Monde Diplomatique em agosto deste ano, apresentei a questão da ideologia e da imposição da visão de mundo que representa os interesses da classe dominante. Desse modo, as críticas geradas pela bancada ruralista representam interesses de classe em suas falas, pois as questões que a incomodaram tratam do desmatamento da Amazônia para plantação de soja e da exploração do cerrado, cuja população vive sob a opressão capitalista do agronegócio. Logo, as questões do Enem atacaram a lógica da prática brutal capitalista enquanto a bancada e os envolvidos no agronegócio veem a exploração da terra e das pessoas como progresso laboral e o meio pelo qual o mundo é alimentado com seus produtos cheios de agro(tóxicos).
Nessa mesma prova, além dessas duas perguntas interessantes (muito comentadas por vários veículos de comunicação), há outras questões importantes para pensarmos a sociedade brasileira.


A questão 11 traz um texto em que o jornalista angolano Agualusa aborda o preconceito linguístico sofrido por brasileiros em Portugal, divulgando o trabalho de uma editora brasileira. Essa discussão torna-se importante num momento histórico em que há grande imigração de brasileiros a Portugal, cuja situação econômica não é a melhor dos últimos anos. Em 2023, há muitos brasileiros vivendo pelas ruas portuguesas (muitos em barracas) por causa do alto custo de vida esperando ajuda para voltar para sua terra natal. Com essas notícias de brasileiros em situação delicada em Portugal, chegam ao Brasil também notícias de xenofobia.
O preconceito linguístico, como o da questão, está vinculado a um modelo ideal de língua que só pode vir do colonizador, uma vez que há forte carga ideológica de segregação nesses pensamentos preconceituosos. A formação discursiva é a capitalista, pois fomenta a competição e o protecionismo local, gerando aversão ao diferente e àquele que vem de fora. Essa disputa surge por conta da própria superestrutura que precariza a mão-de-obra, estabelece uma reserva de mercado para o desemprego a fim de manter os baixos salários e desperta a xenofobia ao culpar o imigrante pela falta de oportunidades. Em resumo, rebaixar o nível linguístico (porque não intelectual) do brasileiro é uma forma de desqualificá-lo para exercer cargos em Portugal e diminuir a concorrência para empregos entre os portugueses, numa lógica racista da formação ideológica capitalista, que cria falsos espantalhos em vez de assumir suas contradições e sua exploração gritante.


Na questão 12, há um trecho do poeta Baticum Proletário sobre a realidade da juventude negra no Brasil. Há uma relação direta entre a estrofe do poeta com os índices de violência; do contrário, não haveria número imenso de mortes violentas nem as asserções acerca da população negra, vítima do racismo estrutural. Essa pergunta traz de modo cru esses índices demonstrando que mais de 75% das mortes violentas são de pessoas negras, tornando-as alvos de um extermínio racial.
Voltando à questão da ideologia, o Brasil tem uma classe dominante praticamente representada por pessoas brancas enquanto as classes mais vulneráveis são compostas majoritariamente por pessoas negras. Essa imagem pode ser vista na política, nos moradores de bairros nobres, grandes empresários, afastando aqueles que não se encaixam nesse estereótipo. E aliada a essa imagem há a formação ideológica capitalista liberal que dificulta a ascensão de quem está nas classes mais baixas, favorecendo prioritariamente quem se assemelha ao perfil de quem está no poder, segundo Pierre Bourdieu, sociólogo francês.
Devido a essa desigualdade social profunda, as classes mais pobres são vigiadas, julgadas e punidas constantemente pelas formações discursivas moldadas pelos interesses dominantes de limpeza étnica, seja essa limpeza por meio da proibição da circulação dessas pessoas (detenção – mais de 68% dos presos são pessoas negras e em torno de 35% das pessoas encarceradas não foram julgadas) e da execução covarde por parte do poderio militar do Estado.


Na questão 13, há a famigerada discussão acerca da criação do mundo por meio da palavra / discurso. Ainda que esse uso seja metafórico na Bíblia, a linguística estabelece cientificamente esse ponto como verdadeiro: a linguagem é o meio por onde a espécie humana se desenvolve coletivamente na constituição subjetiva do sujeito a partir da ideologia, segundo Michel Pêcheux. Uma vez constituído, o sujeito opera no mundo a partir da materialização de sua ideologia por meio do verbo, isto é, da comunicação.
Entretanto, com o desenvolvimento da normatização das línguas, criou-se uma barreira entre as falas populares e a língua culta, afastando os menos escolarizados das discussões políticas e jurídicas. Mesmo na era contemporânea, em que se tem mais acesso a estudos sociais, a consciência desse afastamento gerou privilégios para aqueles que detêm o domínio da variante culta, principalmente profissões que ainda têm destaque social como advogados, médicos e políticos.
Em consonância com Pierre Bourdieu, o impedimento de que as classes menos escolarizadas (e também as de menor poder aquisitivo, já que cultura e educação viraram bens de consumo na sociedade capitalista) possam ter acesso à compreensão desses discursos (já que são enunciados na variante culta) é o que se chama violência simbólica. A questão do Enem especifica se tratar do uso especializado da linguagem, o que é conhecido como jargão profissional, termos específicos da área de atuação de um profissional. Além da variante culta, que já é um obstáculo a muitas pessoas, o uso dos jargões segrega ainda mais, constituindo uma redoma em torno desses profissionais, violentando o restante da população por meio de sua exclusão.
Relevância do Enem 2023 no âmbito social
Tanto as questões atacadas pela bancada ruralista como essas três que foram trazidas à discussão auxiliam na compreensão da situação brasileira vista por um lado mais progressista. A questão ideológica ainda é uma questão sensível no Brasil, embora, cientificamente, seja ponto consensual: não existe neutralidade.
A prova do primeiro dia da aplicação do Enem gerou mais do que essas reclamações: outros parlamentares e figuras que representam a direita (e extrema-direita brasileira) acusaram a prova de ser “ideológica”. Traduzindo essa acusação, seria como dizer que a prova explicitaria pautas do governo Lula (que para os acusadores trata-se de um “governo comunista”).
A partir dessa problemática, o Enem torna-se peça-chave para a denúncia de situações sociais que são preteridas pelas pautas conservadoras e pelas que reproduzem as ideologias dominantes. Pautas essas que negam o racismo estrutural, ignoram políticas públicas de distribuição de renda, reproduzem os privilégios das classes mais abastadas – tanto no acesso quanto na linguagem – e também ignoram a quantidade de imigrantes brasileiros pelo mundo que saíram em busca de condições melhores.
Os sujeitos não controlam a ideologia, eles são os meios para que ela possa se manifestar. Assim, o sujeito vai ver o mundo com essa lente, rechaçando tudo aquilo que lhe for estranho. Por mais absurdo que pareça defender a exploração do campo e da mão-de-obra paupérrima, não apenas a bancada ruralista acredita nisso, mas todos aqueles que recebem esse discurso como verdadeiro, até os próprios trabalhadores muitas vezes.
Assim, numa prova de âmbito nacional aplicada a jovens (em sua maioria) que buscam se tornar universitários, apresentar essas questões permitem uma oportunidade de contato com outras visões acerca do mundo, gerando representatividade e questionamento do status quo.
Victor Hugo da Silva Vasconcellos é doutorando em estudos linguísticos pela Universidade da Coruña e também doutorando em letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Além de pesquisador, é professor particular de língua portuguesa e linguística.
No Brasil, infelizmente, a elite e as classes dominantes se apropriam de todos os mecanismos possíveis para manipular e controlar as outras camadas sociais, mantendo, assim, seus privilégios, com suas regalias intocáveis e com um discurso irredutível reprova com veemência qualquer ameaça, mesmo que sem potencialidade, mas que apresenta algum descontentamento com suas ideologias e pensamentos. Isso ficou bem claro como algumas questões do Enem gerou foram questionadas pela bancada ruralista, retratada de forma brilhante neste artigo. Historicamente, o acesso ao ensino superior é privilégio de poucos e isso só perpetua a desigualdade social no Brasil e não percebemos nenhum sinal de melhora até o momento.