Defender quem nos oprime: questão ideológica?
Por que a classe trabalhadora propaga e defende políticos e ideias que vão contra seus interesses de classe?
No Brasil (e no mundo), as divergências políticas sempre ganham uma efervescência em épocas de eleição. Entretanto, o Brasil tem vivido uma polarização política intensa desde 2013. Desse modo, posições antagônicas (nós X eles) têm ganhado espaços nas redes sociais, televisão, mídia alternativa, jornais além de universidades, escolas e empresas. Todos viraram analistas políticos e, não raro, surgem ataques pessoais em vez do ataque às ideias “do opositor”. Essa veemência em defender um partido político, um candidato ou uma teoria econômica ganhou forte notoriedade na sociedade brasileira ao ponto de serem ignorados fatos, notícias, estudos, viabilidade e a própria situação social. Diante disso tudo, essa defesa beligerante pode ser explicada? A discussão seguirá as seguintes etapas: a) somos todos atravessados pela ideologia; b) a civilização está pautada no conflito entre as diversas formações ideológicas; c) não apenas os indivíduos, mas também as instituições reproduzem as ideologias; d) e aparelhamento.
Como seres que surgiram por meio da linguagem complexa, nós (os humanos) existimos e nos manifestamos na linguagem. Esta carrega em si as marcas históricas e subjetivas não só do indivíduo que se comunica, mas de todos que construíram os discursos reproduzidos por ele. Isto é, é por meio da Ideologia que nos tornamos sujeitos. Segundo Michel Pêcheux, a identidade-sujeito se constitui no atravessamento ideológico, uma vez que construímos nossos pensamentos em contato com o que nos é apresentado por outros sujeitos também ideológicos. A ideologia é o lugar de onde vemos um objeto do discurso (ou do saber).
Para exemplificar, vou usar o objeto “meritocracia”, um conceito muito em pauta em disputas políticas e ideológicas. Há diversos “influencers”, “coachings” e “analistas de investimento” dizendo que para sair da pobreza basta investir, ter força de vontade e trabalhar muito. Gerando dessa forma um sentimento de que a responsabilidade é exclusivamente do indivíduo: sucesso ou fracasso. Esse discurso apresenta um erro simplório: não funciona para todo mundo embora queira parecer que sim. Onde está o problema desse discurso que “não há miséria que resista a 14 horas de trabalho”? Ele é proferido dentro de uma certa classe social, em que há acesso ao estudo, ao trabalho e à renda para investimentos. Desconsidera que 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil e mais de 120 milhões estão em vulnerabilidade alimentar, que há um problema sério de moradia, de subemprego, e que em torno de 70% da população brasileira sobrevive com até R$ 1.800 por mês. A meritocracia é uma mentira? Não necessariamente. Mas quem a prolifera tem condições materiais de realizá-la. E muito provavelmente quem a divulga não consegue perceber que isso não se aplica a todo mundo, pois seu lugar social de fala é privilegiado e não conhece (ou não quer conhecer) as outras realidades. A ideologia, como conceito para este artigo, é isso, um lugar de onde se vê os objetos.
Formações ideológicas
Dito isso, a sociedade está organizada no choque dessas ideologias, ou, como dizia Michel Pêcheux, formações ideológicas. Cada formação ideológica é composta por um conjunto de ideias, que favorece os posicionamentos dos sujeitos (políticos, econômicos, científicos etc.). Quando dizemos que alguém tem um posicionamento mais à direita ou à esquerda, estamos nos referindo ao conjunto de ideias que esse sujeito está reproduzindo. Todos reproduzimos ideologias, mesmo que seja com capas diferentes. E além dos sujeitos, as instituições também reproduzem e proliferam ideologias. Bourdieu vai chamar de campos o conjunto de discursos (ideologias) sobre um determinado objeto. A política, a religião, a medicina e a educação são exemplos de campos. Por meio dos sujeitos ligados a esses campos, seus discursos são proliferados. Louis Althusser irá chamar de aparelhos ideológicos do Estado. De certa forma, funcionam como aparelhos no sentido em que reproduzem valores que beneficiam certo grupo social: a classe dominante, os mais ricos.
Bourdieu apresenta em seus estudos que a cultura (ou ideologia) de um Estado é a cultura da classe dominante, pois ela adquire valor simbólico e é reproduzido por meio das instituições políticas, educacionais, religiosas, mídia etc. Dessa forma, toda a sociedade é bombardeada pelos valores simbólicos da classe dominante, que detém o controle dos meios de divulgação por conta do poder econômico. E ao entrar em contato com esses valores, os sujeitos vão se filiar a essas formações ideológicas e reproduzirem suas ideias, seus gostos, seus sonhos, seu modelo ideal de sucesso. Embora haja outras formações ideológicas na sociedade, raramente elas terão mais força do que a dominante, por conta de escassez de recursos financeiros, sendo que 1% dos mais ricos detém o poder econômico de 50% da população, no Brasil. E 10% dos mais ricos têm o poder econômico de 90% da riqueza nacional. Agora posso responder à pergunta do título.
Ideologia dominante
Por que a classe trabalhadora propaga e defende políticos e ideias que vão contra seus interesses de classe? Como exemplos: a reforma trabalhista, que tirou direitos da classe mais vulnerável; ou a atuação violenta da polícia, que recebe apoio de uma grande parte da população mesmo que promova chacinas. Volto à questão da ideologia: essas pessoas estão olhando o objeto por outro lado ou só estão tendo acesso à formação ideológica dominante?
Dizer que existem posições diferentes em uma sociedade não isenta as pessoas de cometerem atrocidades ou defenderem absurdos, mas explica como os discursos se organizam e moldam a maneira de pensar das pessoas. A classe dominante, nas sociedades capitalistas, é composta pela burguesia. Vivem o mundo de acordo com suas posses, que são muitas. Reproduzem seus valores e estilo de vida para todas as camadas sociais, que os absorve por meio da mídia e do sistema educacional, principalmente. Esses valores ganham ainda mais relevância por serem dotados do poder simbólico de pertencerem à classe que comanda o país, além de serem conhecimentos exigidos por toda a carreira estudantil e profissional da população. Assim, são chamados de ideologia dominante, pois estão ligados diretamente aos interesses da burguesia. A posição da burguesia diante de seus valores reflete o seu modo de ver o mundo, já que está numa posição privilegiada, dotada de todas as condições materiais possíveis e enxergam do ponto de vista constitucional: todos são iguais. O que não é verdade. E mesmo que veja as profundas desigualdades, não irão promover ideias que vão contra os seus interesses e perdas de privilégios.
A maior parte da população vive sob esses aparelhos estatais para reproduzirem esses valores. A educação pública sendo sucateada cada vez mais (Novo Ensino Médio e no caso do estado de São Paulo que recusou o Programa Nacional do Livro de Didático são dois exemplos), reduzindo o viés crítico do ensino e afastando o povo de ideologias contrárias à dominante leva a população à alienação. E muitos sujeitos vão lutar para defender quem os oprime. Muita gente concordou com falas do tipo: “se quer direitos, não tem emprego, se quer emprego tem de ser sem direitos”. E sim, faltaram conhecimentos para entender que o Brasil deixa os ricos ainda mais ricos e que as empresas têm uma mina de ouro por conta da exploração da mão-de-obra e um enorme mercado consumidor. A falta de educação leva o povo a rejeitar aquilo que lhe é estranho, que soa diferente do que os mais ricos vivem falando na TV, e as explicações dos políticos como tudo deve ser.
Manipulação
A alienação provém da manipulação ideológica no sentido de criar fantasmas e inventar mentiras sobre qualquer assunto. Desde a “revolução de 1964” a “o Brasil foi uma ditadura comunista entre 2013 e 2016”. Uma enquete recente demonstrou que 52% dos brasileiros acham que há o risco do Brasil se tornar comunista. As pessoas não sabem nem o que é comunismo, não por culpa delas, mas porque esses assuntos não são do interesse da burguesia.
Do mesmo modo, apenas 62% da população brasileira é a favor da taxação das grandes fortunas. É um número baixo se tomarmos por base que não chegam aos 5% da população os que seriam devidamente taxados. São valores da burguesia reproduzidos pelo povo. A quem não interessa a mudança de sistema econômico no país? A quem não interessa a taxação das grandes fortunas? Ou a mudança no imposto de renda para progressivo? A reforma agrária justa? Saúde pública com qualidade? Educação de primeiro mundo e gratuita?
Para encerrar a discussão, tudo se inicia na manipulação ideológica de todo aparato técnico que está nas mãos da classe dominante, tanto na reprodução quanto na degradação do acesso a outras ideologias. Levando o povo a sofrer uma alienação ideológica e por conta da destruição do sistema educacional, diminuindo as chances de uma reflexão sobre o mundo em que vivemos e sobre nossas reais condições de vida. A chave ainda são a educação e o contato com a diversidade. Assim, será possível perceber o que deve ser mantido e deixar mais aparente as contradições de um sistema opressor.
Victor Hugo da Silva Vasconcellos é doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade da Coruña e em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Além de pesquisador, é professor particular de língua portuguesa e linguística.
Infeliz e coerentemente quanto ao conteúdo do texto, a falta de melhor leitura e compreensão do mundo não são exclusividade de gente com baixos graus de acesso aos sistemas de ensino: pessoas ditas letradas, em todos os extratos educacionais, se deixam levar por cantos de sereias para apoiar a reforma trabalhista brasileira ou serem contrarias à taxação de grandes fortunas, exemplos utilizados no texto.