Entendendo a derrota do Partido Trabalhista
“Não é a derrota de um homem, mas de uma ideologia!” Para o ex-primeiro-ministro Tony Blair, o fracasso do Partido Trabalhista nas eleições gerais de 12 de dezembro de 2019 seria explicado por um programa “radical demais”. No entanto, existe outra análise que cerca melhor as dificuldades encontradas pela esquerda britânica…
É difícil subestimar a magnitude da derrota sofrida pelo Partido Trabalhista (Labour) nas eleições legislativas do Reino Unido em dezembro passado. Redcar, um distrito eleitoral às margens do Rio Tees, no nordeste da Inglaterra, nunca havia levado ao Parlamento um deputado conservador até a noite de 12 de dezembro. Blyth Valley, um pouco mais ao norte, estava com os trabalhistas desde 1950 – e também virou para a direita.
Por muito tempo, a distribuição dos assentos do Partido Trabalhista refletiu a história social e econômica do país. No nordeste da Inglaterra, a indústria naval de Tyneside e as minas garantiam os batalhões trabalhistas. Mais ao sul, as grandes cidades industriais – Liverpool, Manchester, Sheffield – constituíam um sólido pilar eleitoral para a esquerda. Somando aí a grande concentração de socialistas da área industrial de Birmingham e das Midlands, foi possível assistir à constituição de um “muro vermelho”. Essa fronteira separava o norte, de alma trabalhista, do sul da Inglaterra, próspero e fiel à direita (sobretudo os famosos home counties do sudeste). Com seu ecossistema sociológico e político específico, Londres – o coração pulsante do apoio ao líder trabalhista Jeremy Corbyn – é uma exceção dentro desse mapa, como a maioria das grandes capitais europeias.
A representação política da classe trabalhadora no Reino Unido atravessa a história de três grandes atores: as igrejas não conformistas (ou dissidentes), os sindicatos e o Partido Trabalhista. Juntos, igrejas e sindicatos deram à luz o Partido Trabalhista, em 1906.1 Ao longo do século XX, sobretudo após a invenção do setor público moderno, na década de 1940 (sistema de educação público em 1944, sistema de saúde em 1946), a sociedade britânica estruturou-se em torno de certo número de instituições que governavam não apenas a vida política, mas também a econômica e cultural.
Por muitas décadas, o Partido Trabalhista britânico moldou um mundo, um conjunto de práticas cotidianas e de conhecimentos completamente distintos do universo conservador. Por muito tempo, conseguir esse ou aquele emprego era algo que poderia requerer a apresentação de um cartão de filiação ao Partido Trabalhista, por exemplo. A vida cotidiana em locais como Tyneside ou Wirral era organizada em torno da comunidade de esquerda, como também se podia observar nos subúrbios vermelhos de Turim e no Nord-Pas-de-Calais. Mas depois as coisas mudaram.
Aburguesamento acelerado
Os swinging sixties, a agitada década de 1960, com sua libertação sexual e de costumes, destruíram a aura das igrejas não conformistas e dessa religiosidade de esquerda tão determinante na fundação do Partido Trabalhista. O fim da década seguinte marcou o início de um doloroso processo de desindustrialização que solapou as fundações do mundo do trabalho, como mostra de maneira particularmente comovente Alan Bleasdale na série de televisão Boys from the Black Stuff, transmitida pela BBC em 1982. O neoliberalismo de Margaret Thatcher (1979-1990) transformou a velha sociedade industrial – sua economia, seus costumes e suas práticas – em uma casca oca: fábricas em ruínas, desempregados obrigados a se adaptar às exigências da nova economia dos serviços… Os sindicatos não saíram ilesos dessa mudança.
Após as igrejas não conformistas e os sindicatos, o desastre nas eleições gerais de dezembro de 2019 ilustra o abalo da última das três instituições que estruturaram a esquerda britânica: seu partido. De acordo com Maurice Glasman, figura de proa do atual Blue Labour (grupo conservador nas questões sociais, mas hostil ao neoliberalismo), o Partido Trabalhista já estaria no processo de esgotar-se: o ano de 2019 teria revelado o fosso intransponível que o separa da classe trabalhadora da qual ele afirma ser porta-voz.
No final de novembro de 2019, duas semanas antes da eleição, o ativista e escritor Owen Jones soou o alarme: seria impossível os trabalhistas vencerem sem o voto operário, que estava sobredeterminado pela adesão desse eleitorado ao Brexit.2 Ele usou o exemplo do distrito de Grimsby, na costa leste. Embora a cidade esteja nas mãos do Partido Trabalhista desde 1945, as pesquisas previam que os eleitores tradicionais do Labour estariam prestes a votar em massa no Partido do Brexit de Nigel Farage, prometendo o distrito aos conservadores. Jones estava certo, porém um pouco atrasado, já que, prisioneiro de sua bolha londrina, por muito tempo ele usou seus artigos no The Guardian para recomendar um alinhamento do Partido Trabalhista contra o Brexit…
A transformação sociológica do Partido Trabalhista e o crescente distanciamento entre ele e a classe trabalhadora não começaram ontem. Seu início remonta à vitória de Tony Blair e do New Labor, em 1997, a qual possibilitou uma aliança de circunstância entre as classes populares e as classes médias. Ao longo dos anos 2000, muitos analisaram a ascensão do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip) como uma transformação no campo da direita. Mas os pesquisadores Robert Ford e Matthew Goodwin mostraram que o Ukip também tinha eleitores entre os cidadãos decepcionados com a esquerda.3 Em sua formação, o partido de Nigel Farage apenas se opunha à União Europeia, mas depois veio a se tornar o veículo de uma crítica ao mercado de trabalho britânico, especialmente após a ampliação do bloco europeu para o leste, em 2004. O Ukip abordou questões que o Partido Trabalhista se recusava a considerar, preferindo se preocupar com as prioridades de outro segmento do eleitorado: os moradores das áreas metropolitanas, que se beneficiavam em cheio com a construção da União Europeia.
No entanto, uma questão se coloca: se o divórcio entre o Partido Trabalhista e as classes populares estava sendo preparado havia mais de duas décadas, como explicar que ele tenha se manifestado tão repentinamente nas eleições de 2019? Há duas respostas para isso: o corbynismo e o Brexit.
O corbynismo, corrente política associada ao dirigente do Partido Trabalhista desde 2015, caracteriza-se por um paradoxo. A eleição de Jeremy Corbyn para a liderança do Partido Trabalhista marcou o início de uma radicalização ideológica: o retorno a uma ambição socialista com a qual ninguém sonhava desde os anos 1970, a reivindicação da nacionalização dos serviços públicos e o reavivamento de um espírito operário. O próprio Corbyn encarna essa corrente: sua carreira política é inseparável das manifestações anti-imperialistas e das greves das décadas de 1970 e 1980. Houve até mesmo uma expectativa de que essa virada para a esquerda pudesse recolocar o Partido Trabalhista no centro das redes sociais e culturais populares e de que os militantes trabalhistas pudessem recuperar sua centralidade nos territórios tradicionais do norte. Mas o corbynismo foi acompanhado por outro movimento, sociológico: sua radicalização ideológica ocorreu em paralelo a um acelerado aburguesamento.
A partir de 2015, o partido atraiu milhares de novos membros. Com mais de meio milhão de membros, ele é o maior da Europa. Mas, como explica o deputado trabalhista Jon Cruddas, a ruptura marcada pelo corbynismo em relação à era de Tony Blair está apenas no nível das ideias. Em termos de recrutamento, ele teria se tornado, ao contrário, ainda mais blairista:4 dominado por militantes da geração Y, instruídos, moradores de Londres ou de cidades universitárias como Cambridge e Brighton, ativos nos setores econômicos mais dinâmicos, porém afetados pela precariedade.
O programa da campanha eleitoral trabalhista reflete as preocupações desse grupo social. Ele fundiu uma forma de socialismo radical (renacionalizações, abolição das escolas particulares, novo internacionalismo em questões de política externa) e um grande interesse pelas questões de ordem identitária, muito em moda no início do século XXI. Ao lado de causas fundamentais, como o feminismo e o antirracismo, estão outras cuja urgência é menos marcante: defesa da fluidez de gênero em um mundo “ainda excessivamente binário”; reivindicação do fim da distinção entre banheiros para homens e mulheres, para não discriminar pessoas transgênero etc. Aos olhos de alguns membros da classe trabalhadora, a primeira ambição é utópica, e a segunda, uma preocupação que dificilmente chegaria ao nível de prioridade.
Quanto ao Brexit, alguns líderes do partido, como John McDonnell, logo o citaram como uma das razões da derrota. É verdade que o eleitorado do Partido Trabalhista se dividiu entre apoiadores e inimigos da saída da União Europeia aprovada pelos britânicos em 2016. Os conservadores exploraram essa fragilidade com o slogan “Get Brexit Done” (“Vamos resolver o Brexit”). Mas essa cisão ideológica no eleitorado trabalhista também reflete sua heterogeneidade sociológica.
Enquanto Jeremy Corbyn – discretamente – permanece próximo da crítica de esquerda à União Europeia, visão majoritária no Partido Trabalhista na década de 1970, muitos militantes jovens e urbanos leram o voto pelo Brexit como uma manifestação de xenofobia e racismo. Para a maioria dos trabalhistas, a visão crítica quanto à União Europeia parece ter se transformado em um vínculo identitário em relação a ela. Como ser a favor da União Europeia significava ser aberto, tolerante, internacionalista e curioso, votar no Brexit só poderia ser visto como o mais grosseiro chauvinismo.
Essa ruptura causou uma mudança importante na atitude do Partido Trabalhista. Em 2017, o programa do partido pedia concretamente a saída da União Europeia, em um capítulo intitulado “Como negociar o Brexit”. Em 2019, ele prometeu submeter um possível acordo com a União Europeia a um segundo referendo, no qual seria possível votar contra a saída.
Foi de fato realista deixar uma parte dos militantes desprezar durante três anos os apoiadores do Brexit, acusando-os de racistas e mentirosos, mudar de posição sobre esse assunto a fim de persuadir os simpatizantes da União Europeia e voltar-se às classes populares favoráveis ao Brexit para pedir apoio?
Qual será o futuro do Partido Trabalhista nessas condições? Desde as eleições, muitos, considerando que a ruptura sociológica ainda não foi consumada, questionam-se sobre como se reconectar com a classe trabalhadora. Outros duvidam dessa possibilidade e convidam as classes populares a revisitar sua própria história de representação direta de seus interesses, sem esperar que alguém fale por elas.
*Chris Bickerton é cientista político da Universidade de Cambridge.
1 Sobre a origem do Partido Trabalhista e também do Partido Conservador, o livro de referência é o de Robert Trelford McKenzie, British Political Parties: The Distribution of Power within the Conservative and Labour Parties [Partidos políticos britânicos: a distribuição do poder entre o Partido Conservador e o Partido Trabalhista], Heinemann, Londres, 1955.
2 Owen Jones, “Labour needs its leave voters too – or a Johnson era beckons” [Partido Trabalhista também precisa dos eleitores favoráveis ao Brexit – ou pode dar boas-vindas à era Johnson], The Guardian, Londres, 27 nov. 2019.
3 Robert Ford e Matthew Goodwin, Revolt on the Right: Explaining Support for the Radical Right in Britain [Revolta à direita: explicando o apoio à direita radical na Grã-Bretanha], Routledge, Londres, 2014.
4 Jon Cruddas, “The left’s new urbanism” [O novo urbanismo da esquerda], Political Quarterly, Londres, 28 jan. 2019.
“Sou trabalhista, votei nos conservadores”
Em um artigo publicado no site The Full Brexit, o ator Chris McGlade explica as razões da virada à direita de antigos bastiões trabalhistas durante as eleições gerais de 12 de dezembro (“Why Labour’s ‘red wall’ finally crumbled” [Por que o “muro vermelho” trabalhista acabou desmoronando], 17 dez. 2019. Disponível em: <thefullbrexit.com>).
Eu sou de Redcar, uma antiga cidade industrial às margens do Rio Tees. Nós nunca tivemos um deputado conservador aqui. Mas, embora os conservadores tenham dizimado nossa indústria, desligado nossos fornos de coque e fechado os maiores e mais antigos fornos da Europa, Redcar votou nos conservadores em 12 de dezembro. […]
A classe trabalhadora não é intolerante. Eu não estou nem aí para sua raça, sua religião ou sua orientação sexual. […] Mas, desde que os resultados das eleições foram divulgados, a burguesia progressista caiu sobre nós com a acusação de sermos ignorantes, estúpidos e racistas. Explicam que demos um tiro no pé. […] Vão às ruas das grandes cidades para denunciar o resultado de uma eleição democrática e cantam “Oh, Jeremy Corbyn”. Mas eles não percebem que Jeremy Corbyn odeia a União Europeia tanto quanto nós? Eles é que gostam da União Europeia, não ele, que foi forçado por seu próprio partido a defender uma posição que não era a sua. […]
O Partido Trabalhista não representa mais a classe trabalhadora no nordeste da Inglaterra. Ele não fala mais nossa língua, não pensa mais como nós. […] Nós não temos mais meios para sermos ouvidos. Então, votamos no único partido que se propõe a respeitar nosso voto [no referendo sobre a saída da União Europeia] de 2016. Escolhemos a democracia e a dignidade de nossas vozes. Se um punhado de burgueses “progressistas” chegasse ao poder e fizesse um segundo referendo, então perderíamos tudo. […]
Estamos cansados de ouvir que devemos ser tolerantes em questões de sexualidade, gênero, raça e religião. Mas, quando se trata da classe trabalhadora – branca, negra, muçulmana, cristã –, então todas as discriminações são possíveis. Todas as instituições são dominadas pela classe média progressista, que continua nos insultando e escrevendo blogs intermináveis que reprovam nosso desencanto em relação a um Partido Trabalhista que não nos representa mais. […] Quanto mais meu partido me insulta, mais sinto que fiz a escolha certa ao votar nos conservadores.