Entre a independência e a manipulação política
De acordo com as leis internacionais, a ação humanitária deveria ser realizada de maneira neutra, independente, imparcial e humana. Porém, desde os anos 1990, seu papel vem sendo revisto. Como conseqüência, o exercício do direito de ingerência tem trazido consigo soldados e políticos
Há dez anos, Tony Blair e outros chefes de Estado qualificaram a guerra no Kosovo como intervenção humanitária. O então primeiro-ministro inglês foi além e rotulou também as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque da mesma forma.
Não existem guerras humanitárias. Da perspectiva dos trabalhadores humanitários que atuam em campo, tais declarações foram um abuso de retórica. Trata-se de manipulações políticas que minam o próprio fundamento da lei humanitária internacional e dificultam a tarefa de conseguir acesso às vítimas de um conflito. De acordo com as leis humanitárias internacionais, a ação humanitária deve ser realizada de maneira neutra, independente, imparcial e humana.
Ironicamente, o denominado droit d’ingerence (direito de ingerência) foi avidamente defendido por um dos fundadores de Médicos Sem Fronteiras (MSF), Bernard Kouchner, hoje ministro de Relações Exteriores no governo de Nicolas Sarkozy. Essa visão provavelmente contribuiu para a sua saída do movimento MSF, em 1979. Na raiz desse confronto ideológico havia uma escolha política a fazer: priorizar a ação médica ou um posicionamento público para apoiar uma causa.
Essa diferença de visão divide a comunidade humanitária até hoje. Nos anos 1990, vários acadêmicos discutiram a pertinência de mudar o papel dos atores humanitários, perguntando-se se eles deveriam ou não se engajar formalmente em uma agenda mais ambiciosa, como a do desenvolvimento e da construção da paz. Os trabalhadores focados em situações de emergência teriam a responsabilidade de olhar adiante, assumindo a sustentabilidade de suas ações a longo prazo? Depois de anos de trabalho no terreno, está claro para a maioria dos trabalhadores humanitários que as respostas não são uniformes nem únicas. Experiências na Bósnia ou em Moçambique, assim como a luta contra a Aids, provaram que o continuum entre o momento do caos e da reconstrução era possível, enquanto na República Democrática do Congo ou na Somália mostraram evidências do contrário. Respostas humanitárias devem se adaptar a cada contexto, uma vez que não existem duas situações idênticas.
Nas últimas décadas, o número de atores humanitários aumentou tanto que a coordenação das intervenções humanitárias tornou-se quase impossível. Essa expansão no volume e na diversidade não implica necessariamente um aumento na qualidade e no impacto das atividades humanitárias realizadas no terreno. Os recursos financeiros são escassos. Há um esforço formidável para aumentar a arrecadação de verbas e uma grande competição para receber a ajuda prometida por doadores institucionais. Dinheiro é fundamental para manter a máquina funcionando. Afinal, as organizações humanitárias são importantes empregadores.
A independência das agências não-governamentais está hoje em risco, se não perdida. A maioria das organizações presentes no terreno integra a seu trabalho emergencial a busca de soluções políticas a longo prazo. Mudam com facilidade de uma resposta emergencial para projetos de desenvolvimento, assim que os doadores institucionais alteram seus eixos de prioridades.
Pouquíssimas agências estão efetivamente presentes no terreno, agindo e reagindo às necessidades das populações em perigo. A região sul do Sudão é um exemplo recente, onde grandes necessidades continuam negligenciadas. A maioria dos atores humanitários ocupa-se com questões de proteção aos direitos humanos, rascunhando legislações e fazendo lobby com instituições políticas, em vez de cavar latrinas e usar o estetoscópio em um paciente. A consolidação da independência dessas agências e o reforço de sua legitimidade aos olhos dos beneficiários serão fundamentais para poder superar essas confusões. Isso será essencial para preservar a relevância e cumprir de maneira efetiva e eficaz o trabalho no terreno.
Intervencionismo estatal
A opinião pública, ultrajada pelos genocídios em Ruanda e nos Bálcãs, desafiou os grandes doadores governamentais a agir com maior compromisso político. Estes, por sua vez, tentam melhorar tanto a coordenação como sua capacidade de resposta em contextos que contam com a atenção da mídia. Essa situação confusa é um cenário perfeito para o intervencionismo estatal e evoluiu também para uma reforma mais profunda da máquina das Nações Unidas e de seus mecanismos. A inspiração que sustenta essas reformas se funda numa nova doutrina. A gestão e a resolução de crises pela comunidade internacional devem trazer a paz, construir a democracia e, mais recentemente, lutar contra o terrorismo internacional, agregando elementos políticos e militares às atividades humanitárias.
Coordenadas por atores multilaterais de natureza política, as organizações humanitárias não-governamentais foram relegadas a um papel subsidiário. O comentário feito pelo então secretário de Estado americano, Colin Powell, em outubro de 2001, resume essa visão: na intervenção dos Estados Unidos no Afeganistão, as organizações não-governamentais seriam forças multiplicadoras das intervenções políticas e militares. Em contextos mais recentes, como em partes do Iraque e da Somália, militares e companhias privadas de segurança substituíram os trabalhadores humanitários. Quando se chega a esse ponto, é justo questionar se os ideais que sustentam as ações humanitárias não foram perdidos e se a lei humanitária internacional não se tornou uma referência meramente decorativa, vazia de conteúdo.
Não vamos entrar na polêmica sobre a estatística de seqüestros e mortes entre os trabalhadores humanitários como conseqüência dessa amalgamação. Atuar em um contexto de desastre natural ou em um conflito armado sempre envolveu riscos e a carta de MSF reflete esse espírito quando seus voluntários aceitam suas missões. Porém, é evidente, em números brutos, que a insegurança para os humanitários está aumentando…
Outra conseqüência dessa preocupante assistência politicamente engajada é a deterioração da percepção que as populações assistidas têm das ONGs. Freqüentemente rotuladas como neocolonialistas, arrogantes e integrantes de uma “agenda ocidental”, em alguns contextos elas perderam a imagem de que exercem um papel neutro e honrado. A logomarca médica que antes nos protegia freqüentemente se torna um alvo.
As negociações para ter acesso a áreas com necessidades críticas exigem não apenas a conciliação com os partidos em conflito, mas também com as comunidades que supostamente temos de apoiar. Lutamos para demonstrar nossa neutralidade e independência em locais onde táticas militares de converter hearts and minds (corações e mentes) distorceram a relação neutra e universal sobre a qual nossa legitimidade havia sido construída. Indubitavelmente, existe a necessidade de reinventar e redefinir os limites da comunidade humanitária e do seu mandato autoproclamado. Essa não é uma tarefa fácil; hoje está mais perto da utopia do que de um plano de ação estratégico.
Enquanto a independência institucional e o respeito à neutralidade são freqüentemente alardeados como os principais fundamentos para um novo humanitarismo, não temos refletido o suficiente sobre a importância que profissionais localmente recrutados podem ter na construção de uma resposta humanitária mais forte e mais legítima. Excelentes embaixadores em suas próprias comunidades, eles podem ajudar a criar verdadeiras parcerias com redes locais.
Construir esses laços pode abrir portas para abordagens técnicas inovadoras bem enraizadas. Também a transparência e autenticidade podem ser aperfeiçoadas com a criação de entidades humanitárias no hemisfério sul, acabando com a predominância de organizações provenientes do “Primeiro Mundo”.
O atual lançamento de associações de MSF no Brasil e na África do Sul faz parte dessa tendência. Verdadeiras fontes de legitimidade renovada e de diversidade, os profissionais recrutados em São Paulo, Johanesburgo ou Nova Déli estão crescendo em número e desafiando visões clássicas da ação humanitária. Essas novas entidades do sul do planeta recebem apoio de movimentos sociais e de instituições científicas, além de generosas doações de organismos privados. Os humanitários precisam fazer mais e melhor para defender um espaço de trabalho independente e de qualidade. E esses exemplos inspiradores são apenas esboços de solução!
*Eric Stobbaerts é diretor-executivo de Médicos Sem Fronteiras no Brasil.