Entre o Estado e a sociedade.
Se associar a uma mutual é um ato de militância. Reunir pessoas que têm diferentes horizontes, mas nem por isso deixam de compartilhar o desejo de viver em conjunto, é um ato de emancipação. Uma mutual, por sua natureza de organismo intermediário, que faz a ligação entre Estado e os cidadãos, contribui p/ a democracia.Jacques Chemarin
A proteção social é uma conquista das lutas operárias do século XIX. As companhias de auxílio mútuo, a versão primeira das mutuais1, permitiria que essa emancipação original evoluísse em um quadro economicamente digno e acessível a um maior número de pessoas.
Em 15 de março de 1944, o Conselho Nacional da Resistência (CNR) adotou um programa baseado em um conjunto de valores e princípios, com a ambição de instaurar “uma ordem social mais justa” naquele pós-guerra. Dentre todas as reformas, a proteção social se impôs como uma ferramenta de reconciliação nacional, uma conquista que beneficiava todos os cidadãos e um progresso social sem precedentes. Esse sistema baseava-se, então, no movimento sindical e erigia-se como uma proteção contra o poder do capital.
A própria proteção social, enquanto mecanismo de solidariedade nacional oriunda do CNR, é hoje posta em causa. O movimento mutualista se afastou de sua ancoragem social, distendeu as ligações com as categorias profissionais preferindo, como apoio, uma base de voluntariado. Desde 1967, com o desmantelamento progressivo do sistema de seguridade social e a crescente transformação da saúde em mercadoria, o mutualismo e a solidariedade voluntária coletivamente assumida recuperam todo o seu sentido.
René Teulade, que foi ministro dos Assuntos Sociais do governo de Pierre Bérégovoy (1992-1993) e presidente da Mutualité française [mutual francesa] (1979-1992), lamentou a falta de abertura para o mundo do trabalho naquele período de transição que foi o pós-guerra. Segundo ele, o levar em consideração da dimensão econômica e uma percepção mais justa dos elementos políticos da sociedade francesa em plena mutação teriam reforçado o peso do modelo mutualista. Essa convicção ainda se impõe ao conjunto do movimento mutualista.
Em contrapartida, pouco tempo após a criação da mutual francesa, os fundadores do Grupo Macif2 reforçaram e perenizaram sua ancoragem social: eles ampliaram sua “governança”, fazendo que ela ultrapassasse o círculo dos empreendedores independentes, eles se basearam no modelo sindical e no da economia social. No campo dos seguros pessoais, a Macif também optou pela solidariedade voluntária e pela democracia, fazendo nascer uma mutual regida pelo código da Mutualidade: Macif-Mutualité.
Em um período marcado pela retomada das ligações históricas entre a mutualidade e o movimento social e, ao mesmo tempo, pelo desvio que tende a banalizar e a “transformar em mercadoria” o que é da alçada da proteção social, a mutual francesa é um participante engajado. Solidariedade, responsabilidade e democracia são palavras-chave para seus membros.
Alguns consideram que o seguro é solidário por natureza, já que se trata de pôr em comum os riscos. Mas, enfim, o que importa é seu objetivo, que pode ser unicamente financeiro. A mutualidade organiza sua especificidade fazendo que a solidariedade atue diretamente, em especial entre as gerações, e marcando sua diferença como protagonista do setor de saúde. Trata-se de uma escolha política, de beneficiar os que têm menos recursos. A solidariedade também é a soma das ações promovidas pela mutual no acompanhamento dos associados. Com essa finalidade é que foram criados dispositivos que permitem que os associados enfrentem tão bem os incidentes da vida doméstica quanto as rupturas da vida profissional, social e familiar.
A responsabilidade é intimamente ligada à solidariedade. Trata-se de oferecer o melhor serviço possível aos associados, redistribuindo uma ampla parte das cotizações sob a forma de prestações. A responsabilidade também é pensar na regulação do sistema de tratamentos. Essa regulação pode assumir vários aspectos; os serviços de tratamento e de acompanhamento mutualista permitem uma forma de emulação e de regulação, tanto pela qualidade dos tratamentos quanto pelas tarifas praticadas; o acordo deve ser uma pista melhor explorada, para melhorar a relação entre o profissional de saúde e a mutual.
A responsabilidade também envolve o associado em sua tomada de consciência do risco que ele faz a coletividade correr. Isso resulta de seu engajamento no interior de organismos coletivos das instituições mutualistas: ele é responsável por uma parte de seu destino e, ao mesmo tempo, coresponsável pela instituição. Dentro dessa acepção, a responsabilidade se confunde com a democracia. Se associar a uma mutual é um ato de militância. Reunir em uma assembleia-geral pessoas que têm diferentes horizontes, mas nem por isso deixam de compartilhar o desejo de viver em conjunto, é um ato de emancipação, de criação de sociedade. Uma mutual, por sua natureza de organismo intermediário, que faz a ligação entre o Estado e os cidadãos, contribui para que a democracia se mantenha sadia e para o desenvolvimento da cidadania.
Solidariedade, responsabilidade, democracia são os pontos de convergência com as forças sindicais. E, apesar de não se dever confundir as duas coisas, a mutualidade e o movimento sindical se cruzam no ponto comum de terem, ambos, o anseio de ser protagonista de sua própria sociedade, de afirmar valores e confrontá-los à realidade da vida. O modo de organização do Grupo Macif, no qual diferentes categorias socioprofissionais representadas nas diferentes instâncias, demonstra aqui toda sua pertinência.
No período em que vivemos, de agentes de mercado, põe-se então a questão do modelo de “governança”. Para se fundirem, as mutuais se distanciam da base social. Os métodos do marketing direto não conseguem substituir a proximidade social: para atenuar o efeito do distanciamento ligado às fusões, parece útil construir mutuais nas quais os corpos sociais estejam representados, a fim de manter uma proximidade e uma ligação com os assalariados e com os beneficiários das prestações. Uma construção feita de comum acordo com o movimento social permite tecer uma ligação sentida no dia a dia pelos associados.
Esse consenso entre as partes, que de início não compartilham todas as mesmas opiniões, não é uma utopia; aliás, esse é o modelo da Macif há várias décadas. O acordo assim feito, entre diversas organizações sindicais, possibilita o funcionamento de inúmeras mutuais. Esse acordo se baseia em uma percepção da solidariedade à qual todos são contribuintes e da qual todos podem ser beneficiários.
Atualmente, a mutualidade só faz sentido na complementaridade entre solidariedade nacional e aquela voluntária. A primeira permite que, apesar das imperfeições, o conjunto da população francesa seja atendido. A segunda, defendida pelas mutuais e pelas instituições de previdência, deve ser o complemento dessa base de sustentação comum de proteção social nacional tão cara aos mutualistas.
É uma sorte poder contar com o crescimento constante e regular como apoio. A questão é determinar a repartição entre a riqueza destinada à proteção social nacional francesa e a destinada à solidariedade voluntária que, de certo modo, aparece hoje como indispensável. A mutualidade deve resistir à tentação de fatiamento da proteção social, que consiste em escolher um risco e decretar que a solidariedade nacional não pode ser financeiramente assumida. Não se trata somente de uma questão econômica, mas também de uma escolha da sociedade: será que nós estamos dispostos a defender o princípio de uma proteção social financiada pela solidariedade nacional? É tendo em mente os fundamentos que prevaleceram, quando da aplicação da proteção social, e adequando esses fundamentos ao perfil da sociedade contemporânea, que a mutualidade poderá dar respostas concretas a serviço dos associados e pela salvaguarda do modelo social francês.
Jacques Chemarin é Presidente da Macif-Mutualité, vice-presidente da Macif.