Entre vírus, parasitas e fascistas: o que pode o cinema?
As artes também já expressavam essa crise. O cinema expressa por imagem, movimento e sensações tanto novas possibilidades, nunca antes pensadas em nossa sociedade, como também o esgotamento de certos modos de vida
Com a pandemia de Covid-19 e o Poder Executivo chefiado por Bolsonaro, estamos com o pior cenário vivido por essa geração e o pior governo possível para enfrentá-lo. Mas será que voltar àquela situação anterior ao coronavírus é suficiente? Assim como a política, a arte já nos mostrava o esgotamento dos modos de vida que prevalecem numa sociedade neoliberal. Diante de um país paralisado pelo vírus e governado por fascistas da política para parasitas do mercado, teria a arte força para criar novas possibilidades?
No meio da pior crise de nossa geração, o que faz Bolsonaro? Demitiu dois ministros da saúde, demitiu e entrou em conflito com um ministro da justiça oportunista que abriu caminho para o presidente e para si; faz diversos atos golpistas, inflamando seus camisas negras (ou melhor, verde e amarelas) contra a imprensa, o STF e até mesmo profissionais de enfermagem. Esses patriotas se tornam vetores de doença e querem um novo AI-5. Incapaz de um simples gesto afirmativo, Bolsonaro e seus ministros são arquitetos da destruição, ao pior estilo nazi-fascista.
Mas será que voltar àquela situação anterior ao coronavírus é suficiente? No Brasil já tínhamos as tendências fascistas e a incompetência de Bolsonaro, assim como a ganância de Guedes em servir banquetes para os melhores andares enquanto nada restava para os de baixo. Esquerdas que se mobilizavam através da sociedade civil já estavam criminalizadas desde 2013, enquanto esquerdas que funcionam apenas no interior do Estado já priorizavam o calendário eleitoral. Sim, estávamos como naquele filme, O poço. Antes da Covid-19 varrer continentes, nada estava bem.
Artes
As artes também já expressavam essa crise. O cinema expressa por imagem, movimento e sensações tanto novas possibilidades, nunca antes pensadas em nossa sociedade, como também o esgotamento de certos modos de vida; é o que vemos em Parasita, filme sul-coreano do diretor Bong Joong-Ho, vencedor do Oscar em 2020.
Quebrando com o clichê dos antagonismos, o filme traz uma reviravolta: os pobres, capturados por uma psicopolítica neoliberal, não constituem uma luta de classes, parasitando a família burguesa. Uma das grandes surpresas de Parasita é que em vez de mostrar um conflito de classes explícito, o filme mostra pobres e ricos como parasitas. Ou seja: numa sociedade neoliberal, todos aqueles que aceitam o indivíduo como única forma de subjetividade se comportam de forma parasitária, sugando o sangue alheio.
É o que vemos na família rica dos Park; observamos um empresário que nunca tem tempo livre para os filhos, que sempre sente um cheiro desagradável quando está na presença de seu motorista mas não sabe o que é – o cheiro de um sabonete de marca barata, usado por pessoas humildes. Um empresário que contribui duplamente para a reprodução da exploração entre indivíduos; servindo de hospedeiro para trabalhadores pobres, que sonham com uma visão neoliberal de liberdade e parasitam a família rica com uma trapaça. E, por outro lado, ele mesmo e sua esposa parasitando essas pessoas.
Um traço da família do motorista Kim, que trapaceia para trabalhar para os Park, é a necessidade desesperada em ter um sinal de wi-fi. São corpos sem vitalidade que desejam apenas estar numa casa rica e bem projetada quando os patrões estão fora… e usar seus celulares como uma extensão do corpo. O que se oferece majoritariamente na tela de computadores e de celulares é um tipo de informação visto pelo francês filósofo Paul Virilio como apatheia; quanto mais informado por futilidades é o homem, mais se estende ao seu redor o deserto do mundo e mais a repetição de informações já sabidas desregulam os estímulos de observação, captando-os de forma automática e sumamente veloz não só na memória mas, antes de tudo, no olhar dessas pessoas.
Neoliberalismo
No neoliberalismo, a tecnologia é veloz ao ponto de anular tempo-espaço, permeando a porosidade dos corpos com relações de poder. O computador é o novo carro com vidro escuro, só que mais veloz. Quem está atrás da tela, não vê o impacto de suas ações diante de quem está do outro lado. Essa é uma das grandes tragédias de uma sociedade neoliberal. Como não querer viver uma vida entulhada de recursos materiais quando os corpos são objeto de poder através da apatia gerada por um uso anti-ético da tecnologia?
Talvez a grande diferença desse tipo de sociedade neoliberal – onde os corpos estão esgotados, parasitários da vida que sobrevivem de forma baixa – para a sociedade brasileira seja o fato de que aqui as elites combinam o neoliberalismo com um fascismo muito explícito. É fato que esse fenômeno é global mas no Brasil se torna explícito em um nível pornográfico.
Observemos bolsonaristas raíz que têm conforto material. Mesmo com todo acesso a informações checadas, noções básicas de arte, ciências e direito, buscam informações rasas, difamação e conspirações. Observá-los não consiste em sofrer de curiosidade mórbida. É o olhar do técnico que combate pragas e observa um inseto se esbaldando para em seguida denunciar onde está instalado seu ninho. E o ninho dessa gente está nas entranhas de suas almas. Lá onde poderiam sentir coragem para acolher quem vive diferente e no entanto rogam só para si um respeito bastante oportunista pelas diferenças, injustas, que querem conservar. São individualistas.
Individualismo
Mas esse ninho cheio de organismos imundos que se proliferam é feito de várias tocas. Uma delas leva do individualismo ao ressentimento. Sentir sempre de novo toda a baixeza dos homens. Dessa toca para outra: individualistas ressentidos são um banquete putrefato preparado para uma besta que habita essas profundezas. A besta do fascismo. Wilheim Reich pesquisou muitos personagens autoritários como a figura do Zé Ninguém, que se sente vitoriosa quando os cavaleiros do apocalipse e da barbárie destroem o espelho civilizatório onde antes o Zé Ninguém via uma imagem cruel; o reflexo de sua mediocridade.
Esses seres perderam o verniz social, já não usam mais a falsa educação de antes. O ódio, o ressentimento e a impotência estão em primeiro plano – combinados com o individualismo neoliberal. Falta vitalidade aos corpos, comandados pelos impulsos mais primários. Quando isso se alastra socialmente estamos diante de uma peste. Para Reich, o fascismo é uma peste.
O antídoto para essa peste não é veneno, pois isso a fortalece. Se escutarmos um pensador como Spinoza, que foi alvo de pestilentos no século XVII e sabia como os corpos podem criar bons e maus encontros, o remédio seria algo que essas criaturas não suportam e tem dose tripla: denunciar opiniões ignorantes, produzir conhecimentos e criar, inventar tudo de mais forte, solidário e bonito que ainda não existe, aumentando a potência da vida. Ou será que seria preferível voltarmos para aquela normalidade parasitária com que o capitalismo esgota nossos corpos e captura até mesmo nosso desejo?
Distopia
Vivemos uma forte regressão, agravada de forma dramática com a pandemia. Séculos de revoltas, de criação de movimentos e de aprovação de leis com viés iluminista estão definhando. Com uma crise política e econômica, o medo e o ódio devoram almas. Medo da fome, do desemprego, da violência, de não ostentar tanto quanto o amigo no Instagram. Medo do outro ser beneficiado por políticas públicas, te deixar excluído e lançado na miséria.
Nessa distopia, informar já é insuficiente, pois os corpos estão consumidos pela peste fascista, combinada com o individualismo consumista próprio do neoliberalismo. Claro que é importante informar, sim, para conscientizar aqueles cuja consciência ainda consegue reter fatos. Mas também precisamos criar urgentemente novas formas de pensar e sentir. Fazer os afetos alegres desfazerem esse delírio coletivo. Há diversos exemplos históricos de povos envenenados que enlouqueceram: religiosos medievais com medo da peste, matando Joana D’Arc para se purificar diante de Deus, vendo o diabo em quem era diferente na Inquisição; nazistas e fascistas trucidando judeus e comunistas, expressões de uma imaginária degeneração moral. Brasileiros queimando pertences de venezuelanos na fronteira, enquanto cantam o hino nacional e os chutam de volta; atacando enfermeiros durante uma pandemia, buzinando em portas de hospitais, atrapalhando ambulâncias.
Mas, como inventar novas formas de criar e de sentir? Como tecer novas sensibilidades de maneira ética?
Enquanto um povo não consegue criar saídas para uma crise que é sanitária, política, econômica, ética e civilizatória, talvez, pelo caminho inverso, a arte possa criar um povo. Um povo através do qual a potência da arte para tecer novas relações se constitua como uma espécie de canto das sereias ao avesso. Não mais o canto dos mitos e heróis patriotas mas um canto carregado de alegria, de sensibilidade e de uma beleza que nos faz desejar viver em vez de apenas sobreviver e dominar algo ou alguém. Uma beleza que nos distancie no tempo e no espaço da forma de vida de nossas elites, que carregam na alma o pendor do senhor de engenho e se aproveitam de conjunturas favoráveis para reproduzir as bases de uma sociedade escravocrata. Uma beleza que nos faz sentir a vida pulsando mesmo diante de eventos trágicos e apesar deles.
Se a Covid-19 e esse governo genocida criaram um presente distópico que nos empurra para o passado, será que a arte pode criar um futuro inimaginável, capaz de vitalizar corpos e almas que desejam viver numa sociedade onde a vida vale mais do que o lucro? Será que o cinema como uma expressão artística pode ir além de nos fazer sentir um esgotamento de certos modos de vida? Será que pode afirmar outros modos de vida?
Homens embrutecidos
Pensemos, por exemplo, em alguns filmes do Mágico de Rimini, Federico Fellini. Giulietta Masina é uma das grandes atrizes do cinema. Como a Gelsomina de La Strada, Julieta dos espíritos, Ginger, parceira de Fred. Cabíria, em Noites de Cabíria.
Suas personagens são mulheres que ainda conseguem se encantar com uma canção em meio a homens embrutecidos. Mulheres que em meio à futilidade de grã-finos escutam outras vozes. São mulheres com corpos ritmados diante de pessoas sem ritmo, ruidosas e consumistas; mulheres que têm a força e a inocência necessárias para escutar os chamados feitos pela vida. Mesmo em condições hostis. Cabíria, em suas noites, é uma delas.
O filme mostra uma prostituta que sonha com o amor mas sofre constantes desilusões. Depois de finalmente conhecer alguém que a ama e valoriza, percebe que é um golpista que quer matá-la e roubar seu dinheiro. Quando não há nada mais a perder, quando resta apenas o abismo ou a humilhação, a jovem, mesmo dilacerada, ainda é capaz de escutar os chamados da vida. Ainda pode sorrir e se alegrar, sem ressentimento.
Já Cidadão Klein, filme de Joseph Losey, mostra como o ressentimento pode nos levar a um caminho trágico. Robert Klein (Alain Delon), francês de origem alsaciana, vê na ocupação alemã uma boa oportunidade para enriquecer comprando barato obras de arte de judeus perseguidos. Porém, quando um outro Robert Klein começa a cometer atos ameaçadores na cidade, Robert encontra um jornal com o seu próprio nome e seu endereço estampados e passa a ser investigado pela polícia. Klein também tenta investigar seu homônimo e o porquê do homem misterioso tentar se confundir com ele. O Klein falso era judeu e Robert acaba preso em seu lugar.
É colocado em um ônibus lotado de judeus, rumo a uma estação de trem, também lotada de judeus. Na estação, famílias são separadas violentamente. Em um alto falante, solados fazem uma chamada para embarcar pessoas em um trem. Ao ouvir seu nome, Robert Klein vê outro homem respondendo em seu lugar. Ao correr para persegui-lo, Klein passa por seu advogado, que diz ter as certidões que comprovam que Klein não é judeu. Robert responde que voltará. O advogado fica incrédulo. Klein segue até a plataforma empurrando pessoas para chegar até o falsário. Acaba entrando no trem, que é fechado pelos oficiais nazistas. É tarde demais, essa vontade de vingança diante de uma injustiça impediu que Klein se salvasse. Sabemos para onde foi aquele trem.
Ettore Scola
Outro grande filme é Um dia muito especial, de Ettore Scola. Ele gira em torno de dois personagens que se encontram em 6 de maio de 1938, dia da visita de Hitler à Itália fascista de Mussolini. Antonieta (Sophia Loren) e Gabrielle (Marcello Mastroianni) são vizinhos de prédio. Ela é dona de casa, mãe e casada com um homem fascista e machista. Ele é um radialista homossexual e recém demitido que pensa em suicídio. Os dois se descobrem em uma relação intensa enquanto todos em volta comemoram o evento fascista nas ruas.
Quando Gabrielle vai até o apartamento de Antonieta devolver seu pássaro que fugiu pela janela, ela mostra um álbum com fotografias de Mussolini. Uma das fotos contém os seguintes dizeres: um homem é pai, marido e soldado. E o personagem do Mastroianni, que tem um corpo que se constitui na delicadeza, não é nada disso. Seu espírito escapa dessas formas dominantes, está aberto a outras sensibilidades, é minoritário. Não se define em uma forma fixa, verdadeira, como exigem os fascistas. Isso não quer dizer que Gabrielle não se identifica com nada, ele habita uma zona de vizinhança. Quando Antonieta, por intercessão de Gabrielle, sente o horror do fascismo e consequentemente da vida ao qual ela se submete, os dois entram nessa zona de vizinhança onde não são o que se espera socialmente de um homem e de uma mulher. Ali uma paixão se torna possível.
Também podemos falar de Cléo de 5 às 7. Um filme bonito de morrer de Agnés Varda.
Cléo é uma cantora à espera de um resultado médico – uma biópsia – que dirá se ela tem câncer ou não. O resultado sai em duas horas. O filme se passa durante esta espera, mostrando as agonias, as superstições e os pensamentos de Cléo enquanto ela caminha pela cidade, reencontra com uma amiga e conhece um simpático soldado.
Numa das cenas mais bonitas do cinema, Cléo ensaia novas músicas para seu disco, enquanto espera o resultado do exame. Ao cantar uma das músicas, “sem você”, ela não suporta. Diz que aquilo é grande demais para ela.
Essa Cléo que espera de 5 às 7 pela certeza da doença e da morte, esse indivíduo que vê tudo em primeira pessoa e que tem o senso de conservação como sua parte mais forte, vê suas certezas rachadas a partir daquela música cantada; sai de casa enfurecida deixando para trás não só os músicos e sua assistente, mas também vai rachando com suas superstições e medos. Sem você, como sugere a música, mas também sem ela mesma, não mais ensimesmada, resta a vida! A música é uma intercessora que convida Cléo a estar à altura da vida… enquanto a morte não chega. “Não sinto mais medo”, diz a cantora ao receber o resultado do exame. Essa é a potência da arte. Ampliar a vida em nossos corpos. Afastar o medo da morte.
De alguma maneira que ainda não está clara escaparemos do governo Bolsonaro. É possível que isso não ocorra sem o custo de um genocídio de proporções mais catastróficas. Aqueles que ainda estiverem por aqui verão a ciência prevalecendo. Mas, e depois?
E quando o vírus já não ameaçar tanto? Viveremos realmente em um mundo diferente? Aqueles que aqui estiverem reagirão ao fascismo bolsonarista, maior que Bolsonaro, ressentidos como Klein diante dos nazistas? Individualistas como os Kim?
Os filmes comentados expressam como, diante de um esgotamento, podemos: nos vitalizar no encontro com a inocência; questionar o ressentimento; desfazer um padrão fixo de sujeito; rachar individualismos, superstições e medos. Toda essa intensidade expressa pela arte cria novas maneiras de pensar e de viver. O escritor Mia Couto diz que o espaço da poesia está nos interstícios, nas fendas do muro. Afirma que ela pode constituir uma visão alternativa de mundo, tendo força para enfrentar o mundo atual. Às vezes resta apenas uma palavra. Melhor: restam também imagens e música. Assim o cinema é potente para inventar novos circuitos, novas sensações, corpos com outros ritmos que quebram individualismos e relações perversas entre tecnologia e poder tão caras ao neoliberalismo e, no limite, ao fascismo. A arte em geral e o cinema em específico unem o pensamento com a vida.
Leonardo Lusitano leciona história na rede pública de Itaboraí, é mestre em Poética pela UFRJ e doutorando em filosofia na Uerj.