Escalada entre Irã e Arábia Saudita atordoa Washington
Após um mês de bombardeios, a coalizão liderada pela Arábia Saudita declarou preferir uma saída política para a crise no Iêmen. Entretanto, em queda de braço com o Irã, o reino wahabita não descarta uma ofensiva terrestre contra a rebelião xiita houthi. Essa possibilidade inquieta o governo ObamaAkram Belkaïd
Protesto no Iemen
Uma primavera tardia começou em Washington no fim de abril. Mas nem a floração das cerejeiras nem a elevação das temperaturas são capazes de atenuar a atmosfera de perplexidade e preocupação latente que paira sobre a capital federal. Dos corredores do Congresso às salas de reunião dos principais centros de pesquisa da Massachusetts Avenue ou da Connecticut Avenue, as mesmas perguntas são lançadas: o que está acontecendo no Oriente Médio e o que os Estados Unidos devem fazer para não atolar ali de novo?
A guerra civil na Síria, as ações assassinas do Estado Islâmico, os bombardeios do Iêmen por uma coalizão de nove países árabes, sem esquecer a violência sectária entre sunitas e xiitas, tudo está cotidianamente na primeira página. Mas a estratégia norte-americana para enfrentar esses desafios não parece clara. Com o Maxerreque – a porção oriental do mundo árabe – pegando fogo, os Estados Unidos também sofrem para tranquilizar seus aliados, sejam eles a Arábia Saudita e demais monarquias do petróleo, o Egito ou o Iraque.
A visita oficial do primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, a primeira do gênero, colocou em evidência sua distância permanente em relação a seus parceiros, à qual parece devotar-se a administração do presidente Barack Obama. Os Estados Unidos prometeram ao Iraque US$ 200 milhões para ajudar as populações deslocadas em razão do combate ao Estado Islâmico, além de apoio para a concessão de um empréstimo do FMI de US$ 700 milhões. O dinheiro visa compensar o aumento do déficit orçamentário iraquiano, que em 2015 deve atingir US$ 25 bilhões, o equivalente a um terço das receitas do petróleo previstas para o ano.
As autoridades norte-americanas não cansam de exortar seu interlocutor a manter distância dos dirigentes iranianos. “O Irã deve respeitar a soberania do Iraque e parar de intervir unilateralmente em solo iraquiano”, insistiu Obama, acusando o Irã de apoiar militarmente as milícias xiitas que lutam contra o Estado Islâmico sem consultar o governo do Iraque. Essas milícias são frequentemente acusadas de saques e violência contra a população civil, como durante a retomada da cidade de Tikrit, no final de março.
Primeiro, Al-Abadi minimizou o papel do Irã em seu país, dizendo que apenas uma centena de conselheiros militares estava presente. Depois, ele e seus companheiros não perderam a oportunidade de reconhecer tanto o “progresso diplomático relativo à questão nuclear iraniana” quanto o “compromisso” dos Estados Unidos de encontrar um acordo definitivo sobre essa questão até o final de junho. “A mensagem de Al-Abadi foi clara. Ele disse aos Estados Unidos que eles não podem, ao mesmo tempo, aproximar-se do Irã, ainda que timidamente, e acusar o Iraque de ser seu aliado”, comenta um diplomata norte-americano que prefere o anonimato.
Para esse profundo conhecedor do mundo árabe, os Estados Unidos realmente não sabem mais que ritmo dançar no Oriente Médio: “Há poucos anos, nossos aliados não questionavam nossa coerência dessa maneira. Eles se conformavam a nossas grandes linhas de ação, e nós os deixávamos suficientemente à vontade para não forçá-los a uma docilidade total. Hoje, somos permanentemente obrigados a conciliar posições contraditórias”. A opinião é partilhada por Ahmed Ali, cientista político da Empowering Youth for Peace in Iraq – um think tank com sede em Washington –, ele próprio de origem iraquiana: “A administração Obama sabe muito bem que o regime iraquiano continuará buscando um equilíbrio entre os Estados Unidos e o Irã, pois precisa desses dois jogadores de peso para derrotar o Estado Islâmico”. Outros especialistas, como Richard Nephew, da Brookings Institution – think tank próximo do Partido Democrata –, questionam o aparente paradoxo que leva o presidente norte-americano a frear qualquer tentativa do Congresso de endurecer as sanções contra o Irã, enquanto adota um tom marcial em relação a esse país, mesmo quando se trata de discutir a situação no Iraque ou no Iêmen.
No entanto, a visita oficial de Al-Abadi revelou principalmente outra disputa, muito mais importante, dentro da esfera de influência norte-americana no Oriente Médio. Ao mencionar a intervenção aérea da coalizão liderada pelos sauditas no Iêmen a fim de combater o avanço das milícias houthis, o primeiro-ministro iraquiano questionou a pertinência dessa ação, avaliando que “a solução para os problemas do Iêmen está em primeiro lugar no Iêmen”. Claramente, o Iraque pede um retorno ao diálogo nacional, com a participação dos houthis, que voltaram a pegar em armas para protestar contra um projeto de Estado federal desenhado pelo presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi.1
Mais importante ainda: diante de um pequeno grupo de jornalistas recebidos na Blair House – residência das autoridades estrangeiras convidadas à Casa Branca –, o líder iraquiano afirmou claramente que o governo Obama partilhava de sua opinião. Assim como ele, Washington consideraria que a Arábia Saudita “constitui o principal obstáculo a um cessar-fogo” entre as facções iemenitas. A declaração provocou uma negativa quase imediata de Alistair Baskey, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, bem como uma coletiva de imprensa organizada às pressas pelo embaixador saudita Adel al-Jubeir, que criticou a “falta de lógica” da declaração de Al-Abadi.
Na realidade, porém, as palavras deste último não provocaram nenhuma surpresa ou choque em Washington. Na verdade, há bastante incerteza sobre a capacidade de a Arábia Saudita conduzir uma operação militar a bom termo. Os resultados continuam pífios, com um saldo que se aproxima dos mil mortos – na maioria, civis – desde o início do bombardeio, em 26 de março, e o dia 20 de abril. Para um diplomata árabe lotado na capital norte-americana, “a Arábia Saudita insiste em recolocar no poder o presidente Hadi e derrotar os houthis. É uma maneira de dizer ao Irã que sua influência será sistematicamente combatida na Península Arábica. Mas os Estados Unidos sabem que a solução para a crise iemenita é política e passará sobretudo pela escolha de um novo presidente que os houthis aceitem, mesmo que seja sunita”.
ndo o Pentágono guiava a coalizão
No entanto, os Estados Unidos parecem incapazes de convencer a Arábia Saudita a fazer concessões. Para limitar as baixas civis e as consequências de uma intervenção que poderia engolir toda a região, o Exército norte-americano adota agora um direito de observação dos alvos escolhidos pela coalizão. Oficialmente, a Arábia Saudita e seus parceiros definem os alvos, e o Pentágono fornece informações coletadas por seus drones e processadas simultaneamente em centros operacionais na Arábia Saudita, Catar e Bahrein. Mas, como observa o consultor de defesa Richard Stark, fornecer ou não informação “corresponde, no final, a exercer um direito de vetar alvos a serem bombardeados”.
Essa participação, mesmo indireta, nas operações militares sauditas – somadas a ações no mar para impedir o fornecimento de armas às milícias houthis – revela três objetivos dos Estados Unidos. O primeiro: retardar o máximo possível, e até impedir, uma intervenção por terra dos cerca de 150 mil soldados sauditas concentrados na fronteira com o Iêmen. Não por convicção humanitária e pacifista, mas simplesmente porque os Estados Unidos temem que o Exército saudita fracasse nessa ofensiva. Os dirigentes norte-americanos aprenderam a lição da derrota de novembro de 2009 – quando o Exército saudita sofreu perdas significativas em um ataque contra os rebeldes houthis – e não querem ver esse filme de novo, o que poderia levar suas tropas a intervir em terra, no momento em que se desenha a campanha para as primárias da eleição presidencial de 2016.
Os Estados Unidos mostram-se ainda mais circunspectos em relação a uma ofensiva por terra pelo fato de que seus dois possíveis suplentes relutam em participar. Nem o Egito – que participa das operações aéreas – nem o Paquistão – que, para grande desgosto da Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo, decidiu ficar afastado da coalizão – consideram essa possibilidade.2 Acionados pela Arábia Saudita para pressionar sobretudo o Paquistão, os Estados Unidos, até agora, têm se esquivado, para grande alívio do primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif.
Muito criticado por seu aliado saudita e pelos Emirados Árabes Unidos, este último prometeu intervir caso a integridade territorial da Arábia Saudita seja ameaçada. “O Exército paquistanês é um reflexo do próprio país. Ele também comporta xiitas e não vai implodir por causa da luta entre Riad e Teerã”, afirma o cientista político e blogueiro paquistanês Khalid Muhammad, cuja opinião é de que seu país não deve apoiar um “empreendimento expansionista” saudita.
O segundo objetivo perseguido pelos Estados Unidos, ao tentar convencer a Arábia Saudita a não lançar uma operação terrestre, relaciona-se à situação no Iraque. Durante sua visita, Al-Abadi advertiu seus interlocutores norte-americanos contra esse cenário, considerando que desse modo o reino wahabita estaria assumindo, na região, “um papel comparável ao de Saddam Hussein invadindo o Kuwait e ameaçando seus outros vizinhos”. Em 2011, a intervenção saudita no Bahrein para reprimir uma grande revolta popular majoritariamente xiita já havia alarmado as autoridades iraquianas. Ela as convenceu de que seu país, agora controlado por um poder central de obediência xiita, mais cedo ou mais tarde também seria alvo de uma ação militar saudita. “A última coisa que os Estados Unidos querem é agravar a tensão entre sauditas e iraquianos, estes acusando aqueles de financiar secretamente o grupo Estado Islâmico. A crise no Iêmen deixa pensar que a Arábia Saudita decidiu tomar a iniciativa e mostrar a seus rivais que de agora em diante será necessário contar com ela”, esclarece o diplomata árabe em Washington.
Terceiro objetivo perseguido pelos Estados Unidos em sua tentativa de limitar os danos relacionados à intervenção no Iêmen: evitar que a região se torne um campo de batalha por procuração entre uma Arábia Saudita autoproclamada líder do mundo sunita e o Irã xiita. Mais uma vez, o pragmatismo comanda. Já envolvido no Iraque diante das tropas do Estado Islâmico e mantendo a alternativa de uma ação militar na Síria, o governo Obama sabe que a deterioração da situação levaria ao surgimento de novos focos de violência sectária em todo o Oriente Médio, mas também no Golfo, uma região estratégica para o abastecimento mundial de hidrocarbonetos.
Risco de caos do Líbano até a Índia
“Uma ideia recorrente no mundo árabe é que os Estados Unidos tentam provocar confrontos generalizados entre xiitas e sunitas a fim de melhor acomodar seu poder no Golfo e Oriente Médio. Mas nada seria mais aventureiro do que abrir essa caixa de Pandora. Isso poderia criar o caos da costa do Líbano até a Índia”, avalia o cientista político Hasni Abidi, do Centro de Estudos e Pesquisas sobre o Mundo Árabe e o Mediterrâneo, em Genebra. No Líbano, Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, já apelou diversas vezes para que o mundo muçulmano se oponha “às manipulações e conflitos” criados pela Arábia Saudita. Esse apelo ecoa os do presidente iraniano, Hassan Rohani, que durante o desfile anual das Forças Armadas de seu país não hesitou em acusar os sauditas de financiar o terrorismo na Síria, Líbano e Iraque.
A Arábia Saudita sabe muito bem que os Estados Unidos temem acirrar sua queda de braço com o Irã. Enquanto as autoridades sunitas continuam a despejar invectivas nas redes sociais contra os “xiitas heréticos”, o príncipe Saud al-Faisal, ministro das Relações Exteriores, segue repetindo que seu país não está envolvido “em uma guerra de influência ou por procuração contra o Irã”. Mas exortou Teerã a parar de entregar armas aos rebeldes houthis. No contexto regional atual, e dado o nível de desconfiança entre Estados Unidos e Arábia Saudita – a qual não os perdoa pela queda de Hosni Mubarak em fevereiro de 2011, no Egito –, não se deve excluir que Riad vá contra a vontade do protetor norte-americano e intervenha em solo no Iêmen. Incendiada por um virulento discurso nacionalista e religioso, sua opiniãopública espera uma demonstração de força para apagar a memória amarga de 2009, mesmo correndo o risco de ali atolar: “É o que o Irã está esperando para afirmar sua influência na região”, alarma-se um empresário saudita instalado na Virgínia. “Isso vai fortalecer o país, que parece ser o único a ter uma estratégia coerente. Não é por acaso que a administração Obama tenta fechar um acordo com ele a qualquer preço.” (Ler artigo na próxima página.)
De fato, muitos especialistas acreditam que a república islâmica conseguiu um resultado diplomático impecável, pelo menos até o momento. Além de chegar a um acordo provisório sobre a questão nuclear, o Irã convenceu a Turquia e o Paquistão a não participar da coalizão formada pela Arábia Saudita para bombardear o Iêmen. Outra vitória importante: a Rússia decidiu levantar o embargo contra o Irã, que ela própria estabeleceu em 2010, sobre certas armas. A decisão relança a execução de um contrato de US$ 800 milhões concluído em 2007 para o fornecimento de baterias antiaéreas do tipo S-300.
Com uma relação mais ou menos reatada com os Estados Unidos e o Ocidente, dançando sua própria música no Iraque e na Síria e aproveitando divisões fundamentais no campo pró-norte-americano, o Irã aparece, pelo menos a curto prazo, como o vencedor da região. O país não cansa de lembrar, pela voz de Javad Zarif, seu ministro das Relações Exteriores, que “não invadiu nenhum país nos últimos 250 anos”. E seu apelo para a aplicação de um plano de paz permitiu-lhe marcar pontos em um mundo árabe bastante hostil à intervenção da coalizão, inclusive entre alguns dos próprios membros da coalizão.
Num contexto em que a turbulência nascida das revoltas de 2011 continua aumentando,3 o Irã, embora xiita, de repente se tornou referência em um mundo sunita em plena desordem. Resta saber, no entanto, como o país reagiria a uma nova escalada da tensão com seu grande rival saudita.
*Akram Belkaïd é jornalista.
O AUMENTO DAS TENSÕES
11 de fevereiro de 2011. Renúncia do presidente Hosni Mubarak.
Março a maio de 2011. Tumultos e protestos populares na Arábia Saudita, Kuwait e Omã.
14 de março de 2011. Intervenção das Forças Armadas da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos no Bahrein.
Novembro de 2011. A Arábia Saudita e as outras monarquias do Golfo pressionam o presidente iemenita a deixar o poder após protestos populares.
Fevereiro de 2012.Candidato único, Abd Rabbuh Mansur Hadi é eleito presidente da República do Iêmen por dois anos, mandato prorrogado por mais um ano em 2014.
Abril de 2012. A visita do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, à ilha de Abu Musa (anexada pelo Irã e reivindicada pelos Emirados Árabes Unidos) provoca aumento da tensão entre o Irã e as monarquias do Golfo.
30 de junho de 2013. Destituição pelo Exército egípcio do presidente Mohamed Morsi, eleito um ano antes.
24 de novembro de 2013. Acordo preliminar em Genebra sobre o programa nuclear iraniano.
Março de 2014.O apoio do Catar à Irmandade Muçulmana provoca crise no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG).
28 de maio de 2014. O marechal Abdel Fattah al-Sissi é eleito presidente do Egito com 96,91% dos votos.
8 de agosto de 2014.Primeiros bombardeios da coalizão liderada pelos Estados Unidos contra o Estado Islâmico.
Fim de novembro de 2014. Primeiros bombardeios do Irã contra o Estado Islâmico.
26 de março de 2015. A coalizão liderada pela Arábia Saudita inicia ofensiva aérea contra a rebelião houthi para restaurar o presidente Hadi. Protestos do Irã.
2 de abril de 2015. Assinatura em Lausanne de um acordo-quadro sobre a questão nuclear iraniana.
Akram Belkaïd é jornalista.