Um esforço de contenção de outra tragédia anunciada
Qualificar nosso olhar e compreender a lógica da polarização político-ideológica como um instrumento deliberado de manipulação social é urgente, se não quisermos repetir a melodia trágica de 2018. Esta análise tem a finalidade de apresentar a estrutura da polarização sociopolítica e mostrar formas de combatê-la
Ainda caminhamos para a conclusão da primeira metade de 2021, mas os ares do segundo semestre de 2022 já parecem pairar sobre as relações políticas do Estado brasileiro e sobre os sentimentos dos eleitores. A elegibilidade de Lula à Presidência da República, os resultados das pesquisas de intenção de voto à presidente do Brasil e os abalos que a CPI da Covid tem suscitado no governo federal trouxeram à força a corrida eleitoral para este ano. O que temos de mais concreto até o momento é que Lula desponta com 41% das intenções de voto, enquanto o atual presidente, segundo colocado, tem 23%[i]. Ao que parece, a disputa eleitoral de 2022 poderá ser travada nos mesmos termos ideológicos de 2018.
Se assim o for, é necessário ter pela frente uma conversa cívica de primeira importância, feita, principalmente, pela oposição e por aqueles que veem na democracia um bem a ser constantemente nutrido. Esse debate deve encarar de forma honesta o desastre da polarização político-partidária, o traço mais marcante das eleições de 2018. Sem dúvidas, a polarização é o fenômeno que promete maior escalada em um futuro próximo no Brasil e isso é o pior que pode nos acontecer.
Atualmente, tem se produzido um volume inédito de conhecimento a respeito da dinâmica da polarização e como ela afeta o raciocínio do eleitor, o resultado eleitoral e a própria saúde da democracia. Este conteúdo pode ajudar a impedir que “autoritários furtivos” – citando Adam Przeworski – se conservem no poder. Dada a necessidade que esse conteúdo seja popularizado e difundido, este ensaio tem o objetivo de apresentar uma dose do estado da arte do conhecimento a respeito da polarização. Quem sabe assim possamos entender que a polarização é a inimiga primeira dos democratas e o grande desafio a ser combatido até as eleições.
Antes de tudo, há que se compreender a democracia como um regime que nunca é naturalmente dado, tampouco automaticamente garantido. A democracia é uma estrutura dependente e que tem sustentação na sociedade democrática. Apesar de parecer tautológico, não o é: a sociedade democrática é condição necessária à existência da democracia. Isso significa que a democracia depende de uma sustentação interna, que é o valor atribuído por seus cidadãos às instituições representativas, participativas e de controles. Portanto, a sua legitimidade depende de que seus cidadãos tenham, isoladamente, no topo da agenda política, a crença compartilhada de que “este é o único jogo possível e estas regras são as únicas possíveis”.
A grande questão é que a democracia não é one-way-hand, mas um continuum de avanços e retrocessos. Neste ponto, uma questão nos preocupa: apesar de a democracia depender da crença moral em seu valor inerente, é inocência acreditar que os cidadãos apoiam a democracia somente pelos seus princípios liberais e igualitários. No raciocínio de Mounk, as pessoas apoiam também um sistema de governo pelo que ele pode fornecer em termos de paz, estabilidade e prosperidade econômica. Quando a democracia não consegue entregar, para além dos bens coletivos, a possibilidade do desenvolvimento individual e de ascensão social, os indivíduos podem racionalizar um “melhor caminho” e aumentam a chance de não cooperarem com o esforço democrático. A partir daí, a democracia transforma-se em “um manancial de crises de performance”.
Para contornar esse dilema, o ambiente nacional deve estar embebido em um contexto de crescimento e desenvolvimento econômico e de justiça econômica e social. E isso é tudo que os brasileiros não gozam neste momento. Esse manancial de crises, com acessos diferenciados e assimétricos ao Estado, com centralização e desigualdade e onde impera o sentimento de impotência e injustiça, é um gatilho perfeito para que forças populistas e anti-sistêmicas lancem mão das estratégias de descrédito às instituições.
Uma dessas estratégias, que foi usada em 2018 e promete ser repetida fortemente a partir de agora, é a da polarização. Neste artigo, entendemos polarização como uma situação social, mas sobretudo como uma estratégia política intencional de grupos e candidatos, por vezes, autoritários que utilizam deste mecanismo para manusear mentes e corações e alcançar ou manter-se no controle do poder político. Neste sentido, estar preparado para 2022 é conhecer profundamente a lógica da polarização como fenômeno e como tática.
Polarização é o estado em que diferenças políticas atingem um grau elevado de discórdia e desconfiança, de modo que os campos políticos se transformam em inimigos e as disputas políticas adquirem o formato de nós versus eles. Neste ambiente, as diferenças políticas se transformam em diferenças sociais e se dá o fenômeno da simplificação da política: todos os múltiplos elementos que compõem o fenômeno do fazer política passam a se resumir em um único ponto míope, que é a diferença que separa os grupos. O “outro” transforma-se em uma ameaça ao “meu grupo” e à nação, e que deve ser eliminado – ameaças como “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre” se situam nesse contexto.
Nesse ponto reside o maior perigo que a polarização coloca ao regime democrático. Dada a situação de profundas clivagens sociais, a polarização provocada faz com que os cidadãos elevem suas diferenças ao topo de suas agendas políticas e passem a se comportar eleitoralmente de acordo com seus sentimentos de inimizade, relegando a segundo plano suas crenças e valores democráticos. Neste momento, o comportamento egoísta e individualista sabota a filosofia moral que embasa esforços coletivos típicos da democracia. Cidadãos transformam-se em anti-petistas ou anti-bolsonaristas antes de serem democratas. Os eleitores tornam-se, portanto, suscetíveis a aceitar mandantes autoritários, porque eles canalizam a força política potencial manifesta na defesa de um ponto divisionista.
O argumento Milan Svolik cobre esse raciocínio. No contexto de fragilização das oportunidades individuais e dificuldade estrutural da ação coletiva, empreendedores políticos aproveitam-se do frágil trade off entre democracia (ação coletiva) e individualismo para lançar mão de um conjunto de técnicas que dividem o eleitorado, e exercer o poder. Paranoias discursivas, ofensas públicas, desestabilização institucional, desonestidades retóricas, teorias conspiratórias e malabarismos administrativos (que, por vezes, são crimes contra a administração pública) tornam-se instrumentos de campanha que objetivam vulnerabilizar o eleitorado e os grupos de opinião. Este “fogo de supressão” objetiva criar uma realidade paralela de uma sociedade profundamente dividida e erodir a capacidade de resistência ao autoritarismo a partir do voto. A preferência a um candidato antidemocrático, mas que “defenda minhas pautas particulares e imediatas” passa a fazer muito mais sentido do que o apoio a um candidato que advoga por longínquos argumentos democratizantes.
O objeto da polarização pode ser múltiplo: afetivo, ideológico, estratégico, histórico, geográfico, dentre outros, mas sempre na lógica de dois blocos imóveis. Os blocos, dadas as suas naturezas, entram em um ciclo de “trancamento político” (um equilíbrio perverso), em que os cidadãos retroalimentam suas posições e têm poucos incentivos para mudarem suas estratégias de coordenação, o que pode resultar em uma escalada da violência. Isso se dá justamente porque os cidadãos se tornam mais receptivos a discursos e a políticas públicas que atentem contra princípios constitucionais.
O estudo de Somer, McCoy e Luke (2021) compõe o que as pesquisas sobre polarizações têm de mais recente. Os autores mostram que o pior cenário de polarização é aquele que se sustenta por um longo período de tempo. Uma polarização estabilizada (como é o caso brasileiro) é ainda mais tóxica às instituições democráticas do que polarizações de escalada rápida. Uma das hipóteses que levantamos é que a oposição acostuma-se com o modus operandi da polarização e, por vezes, reforça o discurso divisionista com mais polarização, o que pode ser favorável ao incumbente (cabe aqui a pergunta: qual foi o impacto da facada para a mobilização eleitoral ao redor de Bolsonaro?).
Por isso, o papel da oposição para a desescalada da polarização deve interessar especialmente a todos os brasileiros que estão preocupados com este impasse e se perguntam: o que podemos e devemos fazer? Quais são as estratégias que devemos executar para abaixar a pressão que, como vimos, só favorece ao incumbente autoritário? Algumas linhas de ação propostas por Somer, McCoy e Luke podem elucidar o que temos feito de errado e como corrigir nossa rota.
A resposta mais natural – e também a pior – é buscar restaurar o status quo ante, ou seja, a conjunção de elementos e fatores que existiam antes do começo da polarização e reestabelecer no poder o grupo que foi “excluído” pelo impasse, respondendo à polarização nos mesmos termos do incumbente. De todos os grupos que compõem a oposição, este é certamente o que mais mal faz à democracia brasileira.
Esta parcela da oposição tem adotado uma estratégia reativa preferencial: a polarização recíproca. Nesta atuação (que, ao que nos parece, é a estratégia preferida em alguns grupos dentro das oposições – de direita e de esquerda – desde 2014), a oposição responde aos incentivos de polarização proporcionalmente, reforçando o ambiente em uma lógica de ação e reação que tende a tornar as relações políticas perniciosas. Em estágios iniciais da polarização, os mecanismos constitucionais tendem a responder eficazmente às escaladas de tensão de forma a conter os ânimos políticos.
Deve-se acreditar, entretanto, que os níveis de polarização no Brasil já ultrapassaram perigosamente esse limiar. Em graus severos, dois mecanismos que assustadoramente podem ser identificados ao Brasil são passíveis de acontecer. O primeiro é que os níveis de desconfiança nas instituições de controle caem vertiginosamente. Apoiadores do poder executivo tendem a, perigosamente, desacreditar instituições como as cortes superiores ou as eleições. Esse diagnóstico cai como uma luva ao caso brasileiro. Recorrentes ataques ao STF por Jair Bolsonaro e membros do Governo Federal e falsa sinalização de fraudes eleitorais (desde 2014, com Aécio Neves) são sintomas de que a polarização no Brasil já está em níveis profundos.
O segundo conjunto de mecanismos é o recorrente uso de meios extra constitucionais como meios para a condução da política. Impeachments ilegítimos, protestos violentos e apelos a intervenções externas são utilizados em arenas altamente politizadas. Este também é o caso do Brasil. Aqui destacam-se principalmente os meios de ação da oposição a Dilma Rousseff – a despeito de não termos razões para ver o governo Dilma como um governo ativamente polarizante. Logicamente, a estratégia da polarização recíproca não funciona e nem funcionará como saída válida a nenhum sistema político. Ela tem como resultados esperados somente a disfunção governamental (como paralisia completa na administração da pandemia de Covid-19), a fragilização da democracia, o retorno de velhas elites e a escalada do autoritarismo pelo chefe do executivo.
A reação automática às estratégias da polarização do atual governo só nos levará a uma janela de oportunidade para que o incumbente autoritário chegue fortalecido às eleições. Se assim o for, será uma derrota dupla: o mandante poderá chegar argumentativamente fortalecido, enquanto a polarização inibirá que a oposição atraia potenciais aliados, indivíduos moderados e descrentes com o atual presidente. Este é o problema de uma oposição democrática, mas polarizada: ela dá força aos autocratas e contribui indiretamente para o fechamento do regime político. Por essa razão, estratégias reativas devem ser evitadas a todo custo.
Felizmente, nem tudo está perdido. Em contraste as estratégias reativas, as estratégias proativas são instrumentos de alívio da tensão e de reformulação do pacto civil entre as elites políticas e entre as elites e o eleitorado. Felizmente, também, quase todas as coalizões oposicionistas brasileiras têm algum atributo em que se pode encontrar estratégias proativas. O mais fundamental é transformar essas estratégias na marca central das candidaturas de oposição para 2022.
Primeiramente, trata-se de redirecionar o eixo da polarização do “nós versus eles”, baseado na identidade; para o “nós versus eles”, baseado em democratas versus autoritários. Uma “repolarização transformativa” baseia-se na recusa em responder aos incentivos de polarização nos mesmos termos, mas redefinir os argumentos da polarização. Deve-se nesta estratégia, encontrar novos eixos de polarização que sejam construtivos à democracia e agregadores ao debate político, ao mesmo tempo em que o período de campanha se transforme em uma grande “escola de formação política democrática”. Esta estratégia já fomenta um aprendizado importante e que deve ser interiorizado o mais rápido possível: não se deve jamais, sob argumento ético ou de estratégia política, vilipendiar os apoiadores do candidato autoritário. Aqui o mantra não é o combate e submissão, mas a persuasão e incorporação.
Um passo além é aplicarmos a “despolarização ativa”. O objetivo aqui não é somente reduzir a polarização, mas eliminá-la mediante um novo esforço de desvitalizar as diferenças políticas fundamentais através da pluralização do debate ao entorno de clivagens múltiplas (em um ponto que a polarização não seja perniciosa). Deve-se redefinir o debate político ao redor de diferenças temáticas (e com menos força segregacionista potencial), no estilo “neoliberal versus neodesenvolvimentistas”, “economia de mercado versus justiça social”, “política externa pragmática versus alinhamento automático”. Esse novo modus operandi tem o objetivo de tornar difusas as divisões primárias e maniqueístas, alterando o sistema de raciocínio e de associação dos indivíduos ao entorno de novas lógicas e modelos políticos. A resultante trará novas formas de organização coletiva, de discussão política e de paradigmas de campanha e de voto. Regredir ao estágio das coxinhas e mortadelas e manter esse nível até 2022 só ajudará o incumbente.
A execução dessa estratégia requer uma dose considerável de inovação discursiva, estratégias de campanha, métodos de recrutamento e usos de símbolos e narrativas, mas sobretudo de conhecimento sobre a política e sobre a realidade do Brasil. Não se espera que a massa da militância responda desta forma, mas é urgente que as elites políticas oposicionistas adotem cada vez mais este tom e fujam das provocações rasteiras e paranoicas do presidente.
Ao finalizar este breve texto, espera-se ter suscitado no leitor a capacidade de entender a democracia brasileira como um sistema não garantido, mas que depende fundamentalmente das crenças e ações coletivas depositadas nela. Também, que a polarização – ao lado do autoritarismo latente de Jair Bolsonaro – é o maior desafio que enfrentaremos no próximo ano e meio. A visão aqui apresentada sobre a polarização tem uma vantagem fundamental sobre as versões “populares”: ela é instrumental e tem agência. Os principais responsáveis pela nossa situação não são a estrutura ou a cultura brasileira, mas atores políticos e que agem deliberadamente e usam a polarização como argumento retórico de campanha. A vantagem, agora, é que temos identificados as pessoas que serão responsáveis pela nossa recuperação: eu e você. Apresentamos aqui instrumentos reais e factíveis de ação política para colocarmos em prática modelos de despolarização. E devemos fazê-lo, enquanto ainda há tempo.
Pedro Aluízio Resende Leão é bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas e mestrando em Ciência Política na USP
Referências
MOUNK, Yascha. The People vs. Democracy: Why Our Freedom Is in Danger and How to
Save It. Harvard University Press, 2018.
OLSON, Mancur. A lógica da ação coletiva. São Paulo: EDUSP, 1999.
PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
SOMER, M.; MCCOY, J. L.; LUKE, R. E. Pernicious polarization, autocratization and opposition strategies. Democratization, p. 1-20, Janeiro 2021.
SVOLIK, Milan. W. Polarization versus Democracy. Journal of Democracy, v. 30, nº 3, p. 20–32, 2019.
[i] Pesquisa Datafolha publicada em 12/05/2021