Espaço e tempo entre cem capas
Este relato serve para fechar o traçado de um círculo iniciado na edição número 1 do Le Monde Diplomatique Brasil, aquela cuja capa trazia uma bandeira americana aprisionando uma multidão em protesto. Hoje, como na capa da edição 100, queremos lembrar que o Brasil também vive dias bastante nebulososRenato Alarcão
Pensando a capa
A capa da edição número 1 trazia uma ilustração de uma bandeira norte-americana como uma estrutura cenográfica cujo interior abrigava uma multidão em protesto. Homens, mulheres e crianças, cidadãos em preto e branco brandiam seus slogans e cartazes multicoloridos contra mais uma guerra sem sentido.
Na matéria principal, outro desenho daquela mesma multidão ocupava todo o topo da página dupla e mostrava o segundo momento, com o povo a arrebentar o cercado de faixas vermelhas da bandeira e irromper em sua marcha.
“Um novo olhar”, dizia o título do editorial, como que buscando abarcar todos os objetivos, projetos e expectativas do veículo que ora nascia. Logo nas primeiras linhas o texto alertava sobre o tempo de perplexidades em que vivíamos – e desfilava as assimetrias nas relações entre países e classes sociais – enquanto exaltava as possibilidades de progresso humano por meio de ferramentas como a internet.
Em cem edições, a proposta de um “novo olhar” revelou-se também no generoso espaço que esta publicação concedeu aos seus artistas para que contribuíssem com sua visão crítica e verve criativa sobre fatos, opiniões e notícias aqui publicadas.
O convite para desenhar para o Diplô veio pelo Daniel Kondo, até hoje o designer responsável pelo visual do jornal. Logo na primeira conversa que tivemos, este projeto editorial foi apresentado como uma iniciativa que visava trazer ao público brasileiro não somente o melhor do jornalismo “na linha do Le Monde Diplomatique”, mas também fazer desta uma respeitada janela para as artes gráficas, com espaço para ilustrações, cartuns, charges, caricatura e até quadrinhos. Essa tradição do jornalismo ilustrado, como sabemos bem, é uma coisa bem francesa…
Nascido em 1954, o Le Monde Diplomatique só chegou em versão impressa aos leitores brasileiros 53 anos depois. Enfim, era a hora de criar sua primeira capa – e enquanto aguardávamos a chegada da tradução do artigo principal, uma entrevista de Noam Chomsky ao Diplô francês, éramos balizados pelas questões mais prementes levantadas pela editoria: “estaria a opinião pública norte-americana dando uma leve guinada para a esquerda? Seria essa uma reação ao governo republicano de Bush, que ignorava o interesse dos seus cidadãos e agia pautado pela agenda das grandes corporações?”.
Lápis e papel na mão, coloquei-me a rabiscar e logo chegamos a quatro esboços, dos quais a bandeira com a multidão em protesto foi prontamente escolhida para ser capa.
O país de Chomsky
Vivi quatro anos no país do eminente professor Chomsky e pude constatar pela experiência pessoal um pouco daquilo que ele descrevia em sua entrevista. Meu sonho americano começou em 1999, quando me mudei para Nova York para estudar ilustração. Foi um tempo de aprendizados e vivências extraordinárias. Havia bibliotecas públicas generosas, aulas de desenho ao ar livre, acesso gratuito ao MoMA, os 25 centavos que eu pagava para entrar no museu Metropolitan (dica de uma amiga libanesa que me disse “se é doação sugerida, dê-lhes apenas uma moeda. Eles já são ricos!”), e também as galerias de arte, Museu PS1 no verão, neve no inverno, excelentes professores, música de qualidade, os sabores exóticos e tudo o mais que se pode esperar de uma cidade onde são faladas mais de setenta línguas.
Estudar uma arte semimorta
Há vinte anos, a imprensa norte-americana já falava na morte da ilustração. Havia ainda uns poucos bastiões como a página OpEd do New York Times, a New Yorker e o NYT Book Review. Mas, naquele tempo, o conteúdo da maior parte dos projetos editoriais – tanto o design gráfico quanto as artes da Comunicação – apoiava-se no uso maciço de fotografia.
Quando ia às livrarias para pesquisar quem ainda publicava desenhos, sentia-me como se procurasse beija-flores numa mina de carvão. Na época, me pareceu que a única ilha onde ainda brotavam as flores raras das ilustrações eram os livros infantis.
O fenômeno seguia se alastrando até que, finalmente, renomadas revistas de design publicaram artigos contundentes de designers como Milton Glaser e de educadores como Steve Heller que alertaram para os riscos de “atrofiamento de um importante aspecto da cultura visual de nossa sociedade”.
Em um esforço para salvar a arte da ilustração criou-se a ICON-Illustration Conference, um evento para debater nosso futuro como “provedores de conteúdo” e para buscar alternativas que afastassem o espectro da marginalização cultural.
Ilustrador procura trabalho
Vivendo como estudante estrangeiro nos Estados Unidos, e sem campo para colocar meu traço em ação, encontrei a oportunidade de trabalhar para uma ONG sediada em uma das cidades mais pobres dos Estados Unidos, Paterson. Localizada no estado de Nova Jersey, aquela cidade que outrora havia sido uma potência industrial com suas fábricas de locomotivas e armas (a Colt, dos revólveres de John Wayne, nasceu lá em 1836) agora era um lugar com indústrias literalmente em escombros e que detinha os piores índices sociais do país: taxas altíssimas de desemprego, evasão escolar, muitos jovens encarcerados ou envolvidos com gangues, muitas meninas enfrentando gravidez na adolescência, muita gente vivendo de seguro-desemprego, drogas em cada esquina, enfim, “you name it”.
Lá eu dava aulas de arte para adolescentes infratores, em sua grande maioria de origem latina, pobres ou vindos da comunidade afroamericana. Para evitar pegar tempo de cadeia, muitos deles eram integrados a algum trabalho comunitário, no caso a oficinas de arte que eu promovia numa ONG afiliada ao programa governamental AmeriCorps.
Nossas aulas abordavam desenho, narrativas por imagens; eu projetava slides sobre muralismo e graffitti urbano e dei a cada um deles um caderno para registrar as ideias e pensamentos, frases e desenhos.
Juventude transviada
Eu mantinha meus ouvidos sempre atentos às histórias daqueles jovens.
Como aquela que me contou o Raul, um dominicano de 17 anos, sobre a medicação que eles eram obrigados a tomar durante o período de “probation” (a liberdade condicional). Ele me pareceu o sujeito mais tranquilo que já encontrei. “Veja a minha mão como treme, Mr. Renato. É o remédio”, justificou-se.
“Toda semana eu tenho que fazer xixi num copinho para que o laboratório do governo analise minha urina e confira se estou tomando a droga que eles me obrigam a tomar e também para investigar se eu estou usando as drogas que eles não querem que eu tome.”
“E você veio parar neste programa de artes por causa de problemas com drogas?”, perguntei-lhe.
“Não, estou aqui porque minha irmã resolveu arrumar meu quarto e encontrou sob a cama minha coleção de armas. Apavorou-se e ligou para o 911”.
Ousei perguntar o porquê de guardar armas em casa, e se, por acaso, planejava usá-las para algo estúpido como matar pessoas. Ele riu e disse que as tinha porque gostava de praticar musculação e depois do exercício entretia-se diante do espelho com sua imagem de musculatura bombada e segurando as armas, “como aqueles heróis de filmes de ação, Rambo style”.
Diversificando as atividades
O sucesso da oficina de arte com os adolescentes trouxe a reboque uma parceria com o YMCA da cidade de Paterson, e assim montamos uma oficina para fabricação e reciclagem de papel, onde passamos também a encadernar livros à mão. O público variava desde crianças de 6 anos de idade até adolescentes de 17.
Eu havia feito aulas de papel reciclado na School of Visual Arts (SVA) e depois fui monitor numa escola chamada The Center for Book Arts, onde trocava minhas horas de trabalho por créditos para cursar oficinas gratuitamente. O que aprendia nessas escolas eu logo incorporava no programa das minhas oficinas com as crianças.
Em Paterson e Passaic, subúrbios meio dilapidados de Novo Jersey, pintamos um total de treze murais em espaços públicos, estações de bombeiros e escolas. Nesses projetos, os participantes puderam explorar tópicos adjacentes ao tema das pinturas, como história, ambientalismo, sociologia, política e direitos humanos, entre outros.
Pertinho da paz
Lembro que um dos murais que fizemos trazia retratos de diversos heróis escolhidos pelos jovens, entre eles o brasileiro Chico Mendes, chamado de “guardian of the rain forest” pela turma. Outro nome notável na lista de homenageados foi Rigoberta Menchu, indígena guatemalteca e ganhadora do Nobel da Paz de 1992, e que, num certo dia, aproveitando a ocasião de sua visita à ONU, arranjou um espaço na agenda para vir conhecer o mural que meus alunos fizeram em reverência à sua trajetória. Aquele foi um aperto de mão para se colocar no currículo.
O atentado ao WTC
No mesmo ano em que terminei meu mestrado em ilustração as torres do World Trade Center foram derrubadas. Lembro que pensei no quanto aquilo era digno de figurar nos livros de história da mesma forma que a Queda da Bastilha marcou o fim da Idade Moderna.
Todo mundo se lembra onde estava ou o que fazia naquele dia. Eu havia dormido tarde na noite anterior e fui acordado por um telefonema que me dizia esbaforidamente: “ligue a TV agora, um avião acertou uma das torres gêmeas!”.
Ainda tive tempo de assistir ao vivo a segunda colisão, e foi fácil concluir que aquele não havia sido um mero acidente. Uma hora depois a tela ficou coberta de chuviscos (a torre 2 havia caído e era justamente em seu terraço que estavam instaladas as antenas das emissoras de TV aberta).
Liguei para um vizinho que morava no 15º andar e ele confirmou a queda da torre 2. “I got cable” foi sua dica, para que eu me sentisse convidado a ir assistir em sua casa o espetáculo completo com o auxílio luxuoso de uma imensa tela plana que projetava as tomadas aéreas dos helicópteros.
Eu acompanhava os fatos na televisão para crer e entender o que via pela janela, sentia-me em estado de suspensão, boquiaberto como num choque pós-midiático!
Clima estranho no ar
Os meses e anos seguintes puderam testemunhar uma estranha mudança trazida pelos atentados de 11 de Setembro. Vi muitas passeatas contra a invasão do Iraque, acompanhei pela TV pública o Congresso votar às pressas – e sem ler – o “Patriot Act” que deu plenos poderes ao governo Bush para, entre outras coisas, espionar seus cidadãos. Depois ouvi discursos de senadores bradando o destino manifesto da América, e o desfilar na mídia de um festival de teses, teorias, conspirações e plenas mentiras.
Muitas emoções
No dia a dia, vivenciei novas experiências, como estar no trem interestadual estacionado dentro do túnel e abaixo das águas do Hudson, e ver seus cabineiros a caminhar um tanto apressadamente pelos estreitos corredores enquanto o áudio anunciava que deveríamos todos desligar nossos aparelhos eletrônicos, porque a equipe do trem gostaria de detectar a origem de um “estranho sinal eletrônico a bordo”. Ou certo dia quando a estação de trem do meu bairro foi interditada para que homens com roupas de plástico amarelas, feito astronautas, operassem seus instrumentos de farejar antraz, explosivos, “weapons of mass destruction”, bioterrorismo e o que mais a criatividade do inimigo pudesse engendrar. Tempos difíceis, aqueles.
Asa quebrada
Naqueles dias, semanas e meses após os atentados ao WTC, havia um ar meio elétrico, um medo em suspenso, um nervosismo cujas brasas a mídia se incumbia diariamente de assoprar. Depois, pude perceber nos meus passeios pelo subúrbio que as pessoas não tinham mais aquele orgulho de antes em ostentar suas bandeiras dependuradas na fachada de suas casas. Era como se o símbolo houvesse sido usurpado por alguém que não mais os representava. “A águia americana estava ferida”, pensei.
De volta ao lar
Em 2003 eu estava de volta ao Brasil e era hora de retomar minha carreira profissional como ilustrador. Trazia frescos na memória alguns bons conselhos que recebi de um dos mestres com quem estudei. Marshall Arisman, fundador e diretor do mestrado “Ilustração como ensaio visual”, havia me recebido em seu ateliê quando então pudemos conversar bastante sobre os horizontes da profissão. “Esta é uma carreira incrível para quem ama de verdade o ofício de contar histórias através de imagens…”, disse-me.
Guiado por bons conselhos, por tentativas e erros e também pela intuição, aprendi que nesses tempos líquidos de hoje o artista ou qualquer um que atue em uma profissão alternativa como a nossa precisa desenvolver sua veia empreendedora, encontrar um tripé de apoio, envolver-se em atividades que se complementem e que estabelecem entre si uma saudável polinização de ideias.
Malabarismo
Hoje, além de ilustrador, sou também professor de artes visuais e tenho toda uma pesquisa pessoal dentro do universo dos cadernos de ideias que eu chamo de Diários Gráficos. Atuo nas três posições com igual entusiasmo.
Este ano completo vinte anos como ilustrador profissional, uma trajetória que conto a partir da semana em que apresentei meu projeto de conclusão no curso de Design Gráfico da UFRJ, em 1995.
O título da tese era “Crianças Urbanas” e o trabalho era composto basicamente de ilustrações realistas influenciadas pela linguagem do fotojornalismo, pelas pinturas do ilustrador norte-americano Norman Rockwell, pelo realismo socialista da alemã Käthe Kollwitz… enfim, um mélange dos mais ecléticos.
Terminada a graduação, fui com a cara e a coragem bater na porta da redação do Jornal do Brasil para apresentar aquelas ilustrações sobre a “infância marginal das ruas”. Na mesma semana em que os desenhos chegaram às bancas meu telefone tocou pela primeira vez com uma encomenda séria: ilustrar a capa da biografia do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho da campanha contra a fome. Dei sorte: eles gostaram do meu trabalho e pude até conhecer o homem.
Viajando pelo Brasil
Nos últimos quinze anos tenho viajado de norte a sul do país para promover minhas oficinas de artes visuais. Uma das minhas atividades favoritas trata especificamente do assunto “criatividade”, e todo o seu programa é herança daquela experiência das aulas nos subúrbios de Nova Jersey.
O ofício de educar é uma paixão e uma vocação. Muitas vezes somos o agente criador de oportunidades para que as pessoas descubram mais sobre si próprios, e muitas vivências e histórias interessantes acontecem nessa troca entre professor e aprendiz. Como certa vez, quando uma aluna foi à sua primeira entrevista de emprego levando consigo seu portfolio e o caderno de ideias que havia produzido durante a oficina do Diário Gráfico. O diretor de arte que a entrevistava demonstrou curiosidade em ver o caderno que ela havia trazido, ao que ela relutou a princípio com o argumento “você não prefere ver primeiro o meu portfolio?”
Ele retrucou: “Vamos para o seu sketchbook primeiro, que é onde posso ver como você pensa e cria, para em seguida, no portfolio, entendermos como você conclui”.
Desbloqueio criativo
Minha coleção de Diários Gráficos é o lugar onde guardo as melhores descobertas que fiz até hoje sobre meu próprio trabalho. Por serem espaços onde a única regra é a liberdade absoluta, esses cadernos carregam páginas generosas que se deixam preencher com tudo que dá recheio à vida: das ornamentalidades inúteis e surtos literários de meia-tigela até aqueles insights que podem nos fazer subir um degrau a mais em nossa experiência do mundo.
Acredito que “brincar” nesses cadernos é também um processo meditativo de reeducação do olhar, de organização das ideias. Cada caderno que completo e coloco na estante é um registro importante da minha história pessoal. São eles o meu terceiro pé de apoio: um ponto de sanidade.
E finalmente…
Este relato serviu para fechar o traçado de um círculo iniciado na edição número 1 do Le Monde Diplomatique Brasil, aquela cuja capa trazia uma bandeira americana aprisionando uma multidão em protesto. Muita água correu sob a ponte desde então e o tema que nos chama atenção hoje é o momento delicado que o nosso país enfrenta.
Se antes os Estados Unidos de Chomsky eram retratados como uma nação onde havia um fosso entre opinião pública e o Estado, entre a mídia e a sociedade, hoje, como nesta capa da edição 100, queremos lembrar que o Brasil também vive dias bastante nebulosos.
O comentário visual aqui é para lembrar do distanciamento, do cinismo e da falta de ética de uma classe política em relação aos cidadãos que, em teoria, deveria representar.
Renato Alarcão é ilustrador e autor da capa número 1 e número 100 do Le Monde Diplomatique Brasil.