Espera passiva pela eleição de Lula é exercício de muita ingenuidade
A provável eleição de Lula, em 2022, é o fio de esperança que funciona quase como um álibi para a inação. Do inferno bolsonarista passaríamos, de um dia para o outro, ao paraíso lulista
Grandes atos contra o governo Bolsonaro tomaram as ruas nos últimos meses apesar de uma pandemia que segue longe do fim. Fortes críticas a esse mesmo governo preenchem páginas de jornais, perfis de redes sociais e programas de televisão diariamente. Mesmo assim, vivemos uma espécie de imobilismo causado por uma mistura de choque, revolta e desespero diante de um presidente que associa a vacina contra a Covid-19 à Aids.
Depois de uma série de ataques à democracia e em meio a uma crise econômica que se arrasta sem qualquer perspectiva de melhora, acumulamos um cansaço e uma resignação que desaguou na incredulidade paralisante com o inconcebível. É difícil acordar todos os dias e aceitar que Bolsonaro é presidente do Brasil.
Mas esses sentimentos contrastam com a ideia de que as coisas podem melhorar sem que haja necessidade de muito esforço ou mobilização coletiva. A provável eleição de Lula, em 2022, é o fio de esperança que funciona quase como um álibi para a inação. Do inferno bolsonarista passaríamos, de um dia para o outro, ao paraíso lulista, cujas críticas parecem perder sentido no atual contexto.
Diante dos limites da organização de setores populares atomizados por velhas e novas relações de trabalho e dos obstáculos para a construção de uma identidade de classe apoiada num antagonismo cada vez mais abstrato, Lula cumpre o papel de unir e representar o povo pobre. É como se ele fosse aquilo que dá forma a um grupo desprovido de unidade e esperança de tempos melhores. Na ausência de fortes partidos e movimentos populares, ação e sujeito históricos se restringem à imagem de Lula e à possibilidade de elegê-lo presidente no ano que vem.
Essa expectativa e a espera passiva que ela tem significado colocam, porém, dois problemas. Um deles mais estrutural e de longo prazo diz respeito às possibilidades de superação de uma ordem que, a despeito de Bolsonaro, já dava sinais de esgotamento há muito tempo. Outro mais urgente se relaciona à preservação de um sistema democrático que, embora restrito, oferece margens de participação e controle do povo sobre o poder. Vamos por partes.
Em primeiro lugar, cabe questionar o que poderia ser um novo governo Lula. As elites econômicas vêm dando reiterados sinais de que desconfiam, senão do ex-presidente, ao menos do PT e da suposta recuperação de seu ethos democrático-popular na esteira do golpe parlamentar e da propalada vontade de recuperar seus laços com as bases sociais. Depois da normalização do partido promovida pelo lulismo, qualquer declaração de um dirigente que sugira a regulação dos oligopólios da comunicação é tida como prova de radicalismo. Daí o cuidado de quadros como Fernando Haddad em esfriar os ânimos do mercado e afastar o rótulo de “partido de esquerda”.
Acenos como esse, no entanto, não têm bastado. O que fica claro na busca desesperada e fadada ao insucesso por uma terceira via incapaz de projetar qualquer melhora para quem vive fora do mundo de fantasia da Faria Lima.
Mas Lula tem insistido no caminho da conciliação. É à direita, mais uma vez, que caberá deixar claro a sua inviabilidade. Um eventual governo petista tem tudo para ser um retrato fiel de nosso tempo. De um lado, a insistência num modelo de desenvolvimento que não oferece respostas para um quadro de baixo crescimento, altos índices de desemprego, precarização contínua do trabalho e redução das possibilidades de vida. De outro, governos eleitos a partir de demandas redistributivas mas incapazes de implementar um programa político-econômico de fato alternativo.
É claro que um eventual governo Lula será melhor do que qualquer cenário que possamos vislumbrar. Mas até onde ele poderá ir? Hoje, ele parece assemelhar-se ao retorno, depois do interregno caótico do bolsonarismo, de uma democracia de baixa intensidade movida pela conhecida cantilena da falta de alternativa ao neoliberalismo. O que poderia até ser aceitável levando-se em conta o que foi possível fazer dentro dessa jaula de aço no passado. Cumpre conferir, somente, se essa jaula não terá se tornado ainda menor.
O segundo problema do imobilismo é achar que está tudo bem, que podemos esperar tranquilamente até a redenção lulista. Parece que a carta de Temer e a subordinação de Bolsonaro às chantagens do centrão fizeram com que se esquecesse o 7 de Setembro e o espírito golpista de seu governo.
Os desdobramentos da CPI da Covid, as ameaças judiciais que pairam sobre sua família, pesquisas que demonstram sua fragilidade eleitoral e, sobretudo, uma base que vive do engajamento e do conflito são motores do radicalismo de Bolsonaro. Essa foi a estratégia que o levou à presidência, o sustentou até aqui e não há nenhum motivo para acreditar que ele vai abandoná-la.
O processo eleitoral de 2022 é tudo menos previsível. Ainda mais em uma disputa que indica reviver uma polarização capaz de alimentar os ressentimentos de frações da classe média ainda incomodadas com as transformações sociais promovidas pelo lulismo e temerosas com o fantasma da igualdade.
Por fim, não podemos ignorar a vida real. A situação das maiorias é crítica. Inflação galopante, desemprego, diminuição da renda e fome soam mal nas páginas dos jornais. Pior ainda é a realidade que elas descrevem nas periferias das grandes cidades e nos rincões do país. No fim de outubro, enquanto pessoas reviravam caminhões de lixo em busca de comida, um furto de cabos elétricos interrompeu a circulação dos trens do metrô de São Paulo
O cenário de caos que se vive anuncia desdobramentos políticos importantes no curto prazo. Ensaios de revolta já podem ser vistos em manifestações virtuais que começam a ganhar as ruas sem qualquer sentido político e ideológico claro. Mesmo que se atribua de maneira difusa o cenário a Bolsonaro, não há uma ofensiva organizada, com alvo e programa.
Nem poderia ser diferente. Mas quem melhor agiu na história recente para aproveitar o caos foi justamente Bolsonaro. E seu esforço desmedido em furar o teto de gastos e garantir o pagamento dos R$ 400 mensais é a demonstração de que não ignora a temperatura das ruas e os imperativos do povo que hoje se resumem a ter algum dinheiro para gastar.
Nesse cenário, embora se mostre sensível às mazelas dos mais pobres e revoltado com as medidas de Bolsonaro que agravam sua condição, Lula pode muito bem escolher ser, a despeito da desconfiança de seus donos, o candidato da ordem. Para contar com o apoio popular, apostaria com razão nas memórias felizes do que foi seu governo.
Mas mesmo que cheguemos às eleições de 2022, talvez essa opção se mostre insuficiente para a vitória – o que dirá para o governo. Não que pareça haver muitas alternativas possíveis à espera passiva e à conciliação. Dificilmente organizável, a revolta popular com as condições de vida obedece a espasmos pontuais e é movida mais pelo desespero com o presente do que pela esperança de outro futuro. De qualquer forma, o realismo da inação diante dela pode revelar-se o idealismo da vontade de um mundo que nunca chega.