Esse ano não tem bandeirinha
Com a anuência de consultorias de hospitais brasileiros de grande reputação, capazes de proporcionar atendimentos médicos de excelência em suas unidades, as gestões de muitas escolas decidiram jogar os professores na linha de frente
É irresistível o apelo da minha memória como aluno em minha prática docente. Às vezes ela me surpreende, em outras ocasiões serve de guia, ou ao menos de reserva irônica, nas situações insólitas pelas quais passo como professor. Contudo, como não estudei em 1918, minhas ferramentas mais íntimas falham diante desse longo mês de março de 2020, que está prestes a completar uma volta em torno do sol. De minha parte, experimentei como aluno apenas surtos ocasionais de tosse comprida e caxumba, além das regulamentares infestações de piolho – hoje nobilitadas com a sonora alcunha “pediculose”. Nada parecido com o que vivemos.
A intensidade de meu trabalho cotidiano contrasta com a avareza com que partilho essa experiência. Afinal, enquanto muitos especialistas – engenheiros, psicólogos, economistas, advogados etc. – se esfalfam para tagarelar em meu nome, não me sinto à vontade para contar o que faço sem usar um pseudônimo. Sinal do novo tempo do mundo. Ainda assim, talvez por indignação momentânea da qual espero não me arrepender, me sinto impelido a dividir um pouco dessa estranha forma de vida que escolhi para mim num momento em que me vejo à beira do abismo. Pois as crianças voltaram à escola, mas as coisas não precisavam acontecer desse jeito.
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A legalidade é o parâmetro. Posso afirmar que quase tudo o que vem de cima, preparado a seis mãos por gestores, advogados e consultorias de conhecidos hospitais, está sendo feito no espírito do maior respeito às normas vigentes no nosso país, no nosso estado e no nosso município. E nem por isso a barbárie foi afastada, ela apenas foi substituída pela falsa ideia de que tudo que é legal é ético. “Barbárie com aparato de barbárie oficial”, parodiando um músico a se evitar nas provas escolares.
Me refiro, por exemplo, ao tão esperado retorno ao ensino presencial com 35% dos alunos. Quando aparece na boca de jornalistas ou gestores, o número tem o condão de nos atingir a todos – a mim inclusive – no coração. É promessa de normalização e de retorno a algo que, retrospectivamente, ganhou um gosto particular: nossa vida em sociedade. Impossível para mim saber como essa informação ecoou num dos pilares da educação privada contemporânea, os grupos de WhatsApp de pais. Mas gostaria que esta mensagem na garrafa chegasse até vocês, do zap. Pois 35% poderia ser o emblema de dias felizes, mas não é bem assim que as coisas efetivamente se passam.
Afinal, a legislação é ambígua e está sujeita à interpretação “ansiosa” da parte de alguns empresários da educação. Notem que não se trata da mesma ansiedade (esta, legítima e por isso sem aspas) de famílias, professores e estudantes que querem voltar à vida normal. Aquela ânsia – para ser mais preciso – não corresponde a esse desejo legítimo, a essa saudade que humaniza. Pois não exagero em dizer que foi com ânsia que decisões foram, desculpem a imagem forte, vomitadas sobre todos nós. Não houve a devida consulta às famílias (a quem, no máximo, foram ofertadas modalidades de educação) ou aos professores (a quem não foi ofertado nada, salvo a “escolha difícil” entre o desemprego e o trabalho em condições sanitárias duvidosas).
No fio da navalha entre legal e ilegal, reproduzindo o velho realejo que em nossa intimidade atende pelo nome de picaretagem, algumas escolas elaboraram uma contabilidade capciosa. Pois 35% (de acordo com a fase, coloque aqui o número correspondente) é calculado a partir do quê? Dos alunos que a escola efetivamente atende? Dos alunos que ela poderia atender em caso de utilização máxima das salas de aula? 35% de todos os alunos do prédio? Da escola? Ou de cada sala? Felizmente para os gestores e empresários, o poder público polvilhou um punhado generoso de ambiguidade de modo a permitir uma resposta positiva a todas essas alternativas.
Na nossa melhor tradição jurídica, as bancas de advogados envolvidas transformaram a legalidade e até mesmo a ética numa mera questão sintático-gramatical. Nem há muita sutileza na malandragem. Em muitas escolas, o cálculo dos 35% é feito com base no potencial de alunos das salas de aula. A astúcia etimológica é tamanha que a própria noção de “sala de aula” foi alargada: ateliês, laboratórios, bibliotecas, espaços que não são usados regularmente pelos alunos, entram na contabilidade. 35%, portanto, mas o que se “ganha” com essa mágica é o direito de se pôr em risco a saúde de alunos, professores e todos os demais trabalhadores da escola.
Em algumas escolas optou-se pelo revezamento: duas séries (digamos, 6º e 8º ano) frequentam aulas presenciais por uma semana, enquanto as demais permanecem no modelo virtual. Mas há aí outro truque, afinal, embora seja um número reduzido de alunos na escola, eles podem ser agrupados em níveis pré-pandemia nas salas. Basta fazer uma adequação: 35% de alunos em 35% das salas. E para tornar ainda mais grave a situação, há casos em que a oferta de modalidades alternativas às famílias (virtual e presencial-híbrida) levou à reunião de turmas diferentes nos momentos de ensino presencial, sempre respeitando os 35%. Tudo é legal, inclusive o que representa um acinte à finalidade da lei. Isso para não falar nos critérios de distanciamento entre as carteiras.
Qual é o sentido de reunir o número normal de alunos na sala de aula, sob a alegação de que, no seu conjunto, o prédio está adequado à lei? Em nome da lei é ético fazer algo que é oposto ao objetivo da lei? Em suma, famílias, peço que perguntem às escolas em que termos o número 35% foi contabilizado. Peço ainda que reflitam se essa é a situação adequada ou se não haveria alternativas. Em suma: o retorno ao ensino presencial pede responsabilidade ética de todos nós ou prestidigitação jurídica?
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Poucas famílias parecem dispostas, até onde sei, a manter seus filhos no modelo virtual. O que é compreensível. Por esse motivo, os professores trabalham em regime híbrido. Como organizar uma jornada de trabalho nessas condições? Nos casos em que houve o revezamento de turmas, acima mencionado, os professores ficaram encarregados de uma carga suplementar, distribuída de maneira intermitente, com o objetivo de acompanhar os alunos que optaram por ficar em casa. Isso significa assumir uma escala de trabalho variável ao longo das semanas, sem que isso garanta uma remuneração suplementar. E nas semanas em que não há carga adicional, o horário de muitos professores se tornou um verdadeiro queijo suíço (é de praxe em muitas escolas não pagar por essas “janelas”, mesmo havendo obrigatoriedade legal). Os professores bem sabem que há alternativas: mais professores.
E aqueles docentes que fazem parte do grupo de risco? A solução mais simples é simplesmente ignorar o fato e mantê-los num regime de trabalho presencial. Em outros casos, em escolas mais conscientes de sua responsabilidade, esses professores estão sendo substituídos nos momentos de contato direto com os estudantes. Mas é o caso de perguntar: os profissionais que os substituem estão sendo remunerados com a hora-aula regular ou pertencem à classe cada vez mais numerosa e precarizada dos monitores, estagiários e auxiliares?
Por fim, é importante lembrar de um dos momentos mais relevantes do nosso cotidiano, o recreio. Nesse momento são outros trabalhadores que acompanham os alunos, os quais dispõem de um amparo legal ainda mais frouxo. Mas, além disso, é realmente possível manter os procedimentos de distanciamento social num momento em que se trata, justamente, de socializar? Alguém realmente acredita que toda a preocupação com o distanciamento é respeitada? Será que as “bolhas” ou “clusters” tão na moda em comunicados de escolas funcionam quando os alunos estão na rua ou no recreio, na fila da cantina ou no shopping?
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Com a anuência de consultorias de hospitais brasileiros de grande reputação, capazes de proporcionar atendimentos médicos de excelência em suas unidades, as gestões de muitas escolas decidiram jogar os professores na linha de frente. Não serão os gestores, os decision makers, mas os professores, que serão atirados num universo inseguro e precário para nossas vidas e para nossa saúde. É claro que a volta foi selada por um conjunto de medidas destinadas a dar uma sensação de higiene a todos. Conforto pífio diante dos reais problemas de ventilação das salas de aulas concretas (não das salas potenciais), das reais condições de higienização dos espaços ou mesmo da omissão gritante de muitas escolas em relação ao uso de máscaras adequadas ao ambiente fechado em que trabalhamos.
Mas e se adoecermos? Isso já aconteceu – é óbvio – em escolas que não respeitaram sequer o bom senso de manter as reuniões pedagógicas em plataforma virtuais. Isso já aconteceu – é óbvio – em salas de aula com condições melhores que as descritas acima. Mas também a esse respeito as gestões de algumas escolas não deixaram de se posicionar. Doença do trabalho? Difícil comprovar que a contaminação ocorreu na escola ou no caminho até ela. Houve até mesmo uma ocasião em que a orientação dada ao profissional infectado foi que ele calasse sobre sua situação para não gerar “alarmismo”. Como se vê, podemos ser afetados pela perda de voz – simbólica ou física – na atual situação.
Ao final da pandemia a humanidade viverá os efeitos positivos dos incríveis avanços científicos realizados no campo da medicina. E na educação? Diante disso tudo, não acho difícil imaginar uma onda de aposentadorias entre os colegas mais velhos, muitos dos quais têm uma relação com as tecnologias de ensino à distância muito diferente da esperada pelos gestores. Quando me tornei docente, uma das sensações mais felizes era a de ter me tornado colega de meus próprios professores e de continuar aprendendo com sua experiência. Nesse sentido, a educação ficará mais pobre no futuro.
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Não há alternativas? Teremos que esperar a pandemia chegar em nossas salas de aula para fazer alguma coisa? Como pensar além do que está dado diante de um discurso público, alimentado por gestores, especialistas, jornalistas e pelo poder público, que teima em enfatizar o “privilégio” das escolas permanecerem resguardadas num momento de afrouxamento geral da mobilização no combate a essa pandemia nefasta. Apesar de nosso desânimo, é importante que se diga: jamais nascerá um planejamento responsável e consistente de retorno ao ensino presencial com o uso de artifícios legais e sem o debate amplo sobre os critérios sanitários e pedagógicos. Não haverá retorno adequado enquanto a mera legalidade parasitar o debate.
O longo mês de março de 2020, que segue vigente, foi um ano de perdas. Perdemos nossas relações com os alunos. Nosso vínculo – simbolizado na construção coletiva de uma festa junina, por exemplo – foi substituído por raras aparições em vídeos, por vozes mais ou menos desanimadas em microfones e por um recuo dilacerador das relações sociais num dos seus momentos mais fundamentais, a infância e a adolescência. 2020 foi um ano sem festa junina e, sejamos sinceros, 2021 também será. Como aluno e como professor, sempre gostei dessa rara união entre toda a comunidade escolar. Com todos os problemas, todas as diferenças, ano a ano construíamos algo em comum. Aliás, talvez seja possível olhar para o ano de 2020 como uma quadrilha interminável, uma caminhada cheia de imprevistos que não se sabe bem quando vai acabar. Mas a quadrilha que dançamos desde o ano passado periga perder um de seus elementos mais importantes: a voz que nos conta que a cobra era de mentira, que a ponte foi consertada e, principalmente, que a chuva já passou.