Estado e nação: um estranho caso
Desde o início do século XX, pelo menos, sempre que há alguma grave ameaça à ordem econômica e política, sempre que o mundo aparenta desestabilizar-se para os “indivíduos comuns”, o nacionalismo, organizado geralmente sob a forma de partidos, aparece como uma solução que estivesse em estado de repouso, de modo que, de dentro do Estado, a nação passa a atacá-lo.
Um dos efeitos mais curiosos da literatura é que, quanto mais parece afastar-se das situações humanas concretas, mais pode referir-se a elas de um ponto de vista original. E uma das características que distinguem os grandes escritores é o conhecimento de como manipular essa medida inexata entre o real e o remoto.
Robert Louis Stevenson (1850-94) foi seguramente um desses grandes escritores. Entre outras coisas, porque soube antever e dar expressão a questões vitais que ainda pairam sobre nosso horizonte. Descendente de uma família de construtores de faróis, Stevenson projetou à sua frente como que a claridade de um facho feito de palavras, cujo sentido pode até causar alguma confusão àqueles que as seguirem atentamente, mas nunca indiferença.
Uma de suas obras mais conhecidas, O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (traduzida por vezes com o título O médico e o monstro), foi publicada em 1888, e é ainda uma das mais intrigantes representações de nossa natural complexidade psicológica, pois no centro dessa obra parece vibrar uma intuição inquietante: a possibilidade de que haja uma dualidade essencial naquilo que, problematicamente, poderíamos chamar de natureza humana.
Na narrativa de Stevenson, essa percepção se traduz na tentativa do Dr. Jekyll, um médico adepto de uma vertente transcendental da medicina, de separar-se em duas identidades que pudessem viver de forma independente tanto o bem quanto o mal. À monotonia da limitada e cerimoniosa vida intelectual da sociedade britânica novecentista, Dr. Jekyll quis acrescentar a possibilidade de viver a liberdade transgressora de “uma desconhecida mas não inocente liberdade da alma”, que conseguiu afinal materializar em seu monstruoso duplo, Mr. Hyde.
Embora a princípio pareça ter sido originada de uma inquietação de ordem individual, pensada para representar o desejo de escape de uma sufocante sociedade ultracodificada, a observação de Stevenson consegue alcançar ainda outras latitudes possíveis sobre o entendimento da experiência da vida − como da possibilidade de que sejamos naturalmente cindidos por diversas facetas conflitantes (o que talvez fosse à sua época uma ideia excêntrica, mas que hoje a Psicologia tende a confirmar), algo que o próprio Jekyll especula em seu diário: “Arrisco a supor que, afinal, o homem será considerado apenas uma sociedade onde convivem indivíduos múltiplos, contraditórios e independentes”.
Seguindo, então, a trilha lógica das configurações humanas, tal intuição pode de modo sutil ser alongada para lançar luz sobre outros problemas, pois também há uma mesma forma de ambiguidade na relação entre os arranjos de identidade sociais espontâneos e suas formalizações históricas, como na tensão sempre existente entre Estado e nação. Nesta relação pode igualmente haver um conflito causado pela dualidade natural de um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde, com os quais convivemos em todas as esferas.
Tomemos, a princípio, o Estado (reduzido aqui a partir de uma generalizadora visão moderna) como a realização institucional despersonalizada de uma vontade geral (volonté générale, na clássica acepção de Rousseau), instituída sob consensual base jurídica (desvinculando-nos, por ora, da crítica marxista sobre os objetivos deste consenso, e de quem seriam os beneficiários desta forma) e circunscrita a um território determinado.
Desse modo, o Estado poderia ser visto como o núcleo de transformação de demandas e princípios orgânicos dispersos em uma arquitetura institucional definida por sua utilidade. Como comparação, seria o que, em nível individual, assumimos como persona pública; o limitado comportamento que aceitamos e reproduzimos em nome do que socialmente se convenciona por normal − que era exatamente a “prisão” da qual queria sentir-se livre Dr. Jekyll.
O problema pode estar em que, tanto coletiva quanto individualmente, nos seduz sempre a possibilidade de viver “a imagem de um espírito mais vivaz”, que seria o nosso duplo recalcado: o Mr. Hyde que todos guardamos nos porões de nossa vida psíquica.
Do outro lado estão aqueles mesmos princípios dispersos − com a ferocidade de nossos instintos particularistas −, como o sentido básico de pertencimento a um grupo ou território, que parecem ser os elementos humanos a oferecer substância a essa estrutura impessoal do Estado, e que frequentemente são experimentados como as mais genuínas formas de personalidade coletiva.
Uma dessas principais formas orgânicas é certamente a ideia de nação, e o nacionalismo é, em grande medida, como a sua contraparte latente, sua natural enfermidade. É, como afirmou Tom Nairn, a incurável “patologia da história moderna”, que ele descreve ainda como “o equivalente do infantilismo para as sociedades”, qual Mr. Hyde à espreita de um momento propício para surgir.
Logo, basta que o cenário político se transforme intensa e negativamente para que o lado reprimido de nossa coletiva personalidade política apareça e se apresente como uma opção de regeneração. A nível individual, também o Dr. Jekyll descobriu, sob sua personalidade estável, que “certas substâncias tinham o poder de sacudir e arrancar essa vestimenta carnal, da mesma forma como um vento é capaz de agitar as cortinas de uma tenda”.
Essa substância poderosa na história das Relações Internacionais é o nacionalismo em sua versão reativa.
Mas o grande nó que a ideia de nacionalidade oculta é o fato de que, a despeito de apresentar-se como uma forma imemorial de identidade, a nação, tal como a conhecemos hoje, é uma estrutura até certo ponto recente, porque nascida no período moderno. E, no entanto, sua legitimidade depende necessariamente de ser vista sob essa falsa aparência arcaica.
A verdade é que o modelo de nação no qual vivemos tem raízes históricas razoavelmente superficiais, e a ela não pode ser referida com precisão nenhuma experiência mais antiga. Além disso, não há também uma concepção unitária do que seja uma nação e nem mesmo é possível estabelecer categoricamente, como sugeriu Ernest Gellner, se as nações são ou não a consequência de um nacionalismo preexistente. Tudo isso porque a nação é um formato assimilável aos mais radicais hospedeiros culturais. A nação é, como afirma Benedict Anderson, antes de tudo uma forma de comunidade imaginada.
Desde o início do século XX, pelo menos, sempre que há alguma grave ameaça à ordem econômica e política, sempre que o mundo aparenta desestabilizar-se para os “indivíduos comuns”, o nacionalismo, organizado geralmente sob a forma de partidos, aparece como uma solução que estivesse em estado de repouso, de modo que, de dentro do Estado, a nação passa a atacá-lo.
Não é, portanto, coincidência que todos os movimentos nacionalistas recuem necessariamente a uma forma de tribalismo, que em seu nome sejam invocados os caracteres de um pretenso passado ideal, como se ele fosse o meio de retorno a uma mais legítima esfera primeira, a um seguro grau-zero no qual o grupo pudesse se reoxigenar e voltar a um estado existencial mais autêntico, de retomada da autonomia do poder nacional.
Com efeito, uma das características que dão forma ao sentimento de nacionalidade é a ideia de autonomia. Não por acaso, as nações modernas nasceram como um dos resultados da criação filosófica iluminista, que tinha como uma de suas premissas justamente a aquisição da autonomia moral dos indivíduos. O passo seguinte na história das ideias, aplicado pelos filósofos do Romantismo Alemão, foi estender essa mesma categoria a grupos, o Volksgeist (“espírito do povo”) − este foi, a propósito, o germe do nacionalismo alemão.
De nosso lado, é preciso afinal ter clareza sobre a origem e os objetivos dos discursos nacionalistas, lembrar do perigo que pode significar essa “estonteante inconsequência” que também Jekyll sentia ao assumir a forma de Hyde. Porque o que acompanha o nacionalismo historicamente é a brutal eleição de culpáveis inimigos internos e a subsequente desmobilização do afeto de solidariedade social, que é a base da existência das mais básicas estruturas de seguridade do Estado (já sob grave ameaça no nosso país); é, enfim, o risco de, sem perceber, andar por aí vestido com o próprio avesso.
E ainda, assim como a reflexão de Stevenson exibia, a predominância da maldade humana está na verdade vinculada ao seu exercício, que pode progressivamente tornar-se a regra de convívio; da mesma forma, o nacionalismo pode vir a ser o veículo para a ação dos piores estratos da humanidade – tal como confessou Dr. Jekyll ter Hyde revelado “a marca dos elementos mais baixos da minha alma”. No fim das contas, para Jekyll, a entrega frequente a Hyde lhe fez saber que “Tudo tem seu fim; por maior que seja, a medida máxima sempre é alcançada; e essa breve condescendência à minha maldade acabou destruindo o equilíbrio de minha alma”.
Assim, do “agoniado ventre da consciência” nacional podemos ainda entrever um alerta antigo, vindo de um pequeno farol feito de palavras já um pouco distantes, mas que ensinam não haver virtude em se deixar sucumbir à voz persuasiva do nosso duplo interior, à dualidade fundamental do nacionalismo fácil, por mais liberadora que ela pareça.
Gilberto Clementino Neto, formado em Relações Internacionais, é mestre e doutorando em Teoria da Literatura, pela UFPE.