“Estamos mais que preparadas para enfrentar a bancada ruralista”
Primeira deputada federal indígena eleita em Minas Gerais, Célia Xakriabá (Psol) enxerga no primado da terra e da ancestralidade originária o caminho para suplantar as ideologias e projetos de morte do bolsonarismo
Contrariando os prognósticos e desejos golpistas, Lula subiu a rampa do Planalto em 1º de janeiro e tomou posse pela terceira vez como presidente do Brasil. E não só ele: entre os representantes do povo que subiram a rampa e fizeram a entrega da faixa presidencial, estava o cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, atacado por Jair Bolsonaro algumas vezes em seus discursos de ódio, inclusive na ONU. A presença do líder indígena na cerimônia estabeleceu, naquele momento, ainda que simbolicamente, uma diferença fundamental entre os dois mandatos.
Em um de seus primeiros atos de governo, já em primeiro de janeiro de 2019, Bolsonaro assinou uma medida provisória transferindo da Fundação Nacional do Índio (Funai) ao Ministério da Agricultura, então sob comando da ruralista Tereza Cristina (DEM/MS), a atribuição de demarcar novas terras indígenas. A MP pavimentou o caminho para os sucessivos ataques aos povos originários, seus direitos e territórios ao longo dos quatro anos de governo, concretizando a promessa de campanha de 2018 do então candidato Bolsonaro de não demarcar nenhuma terra indígena.
Lado a lado com Raoni e Francisco Carlos do Nascimento e Silva, atleta negro de 10 anos, Lula subiu a rampa de braços dados com as forças fundantes do país. A mensagem daquele ato começou a pavimentar o caminho para restabelecer direitos violados e reconstruir políticas públicas voltadas a povos originários e tradicionais. Antes mesmo da posse, Lula já havia criado o Ministério dos Povos Originários e nomeado como sua ministra a liderança indígena Sônia Guajajara, eleita deputada federal pelo Psol de São Paulo. Também antes de subir a rampa do Planalto, o presidente convidou outra liderança indígena, a ex-deputada federal Joenia Wapichana (Rede/RR), para presidir a Funai.
Por esse caminho de reconstrução e representatividade originária trilhará Célia Xakriabá, 33 anos, liderança indígena do povo Xakriabá, eleita deputada federal pelo Psol de Minas Gerais com mais de 100 mil votos. Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Célia, nascida e criada na Terra Indígena Xakriabá em São João das Missões, norte de Minas Gerais, é a primeira mulher indígena escolhida para o cargo por aquele estado. Também foi a primeira indígena na Secretaria de Educação de Minas Gerais, onde trabalhou entre 2015 e 2017 e colaborou com a abertura de escolas indígenas e quilombolas e a reabertura de escolas do campo em todo o estado. Atuou ao lado da ex-deputada federal Áurea Carolina (Psol/MG) como assessora parlamentar na Câmara dos Deputados entre 2019 e 2022.
Em sua nova função pública, Célia Xakriabá fala e atua a partir da terra, dos saberes ancestrais e do Cerrado. “Nós temos falado na agenda territorial nacional e internacional que a Amazônia, por si só, não vai salvar a humanidade, e é urgente reconhecer a potência do Cerrado, da Mata Atlântica, da Caatinga, do Pantanal e dos Pampas”, disse a deputada em entrevista exclusiva ao Le Monde Diplomatique Brasil em outubro de 2022, pouco antes do segundo turno das eleições presidenciais.
Quando Célia Xakriabá concedeu esta entrevista, ainda não havia escalado a sanha bolsonarista antidemocrática, que recrudesceu após a vitória de Lula. Sanha que redundou em ameaça de atentado a bomba em Brasília e em invasão terrorista dos edifícios do Congresso Nacional, do Planalto e do Supremo Tribunal Federal no dia 8 de janeiro, um domingo, por criminosos apoiadores de Bolsonaro.
Mesmo assim, ela já vislumbrava, em outubro de 2022, que seria necessário deslocar e desnaturalizar narrativas colonialistas para combater as mentiras e o ódio plantados pelo bolsonarismo. “As fake news não começam nas eleições de 2018. A primeira fake news continua sendo reproduzir a história de que quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral. Não se trata de partido, se trata de um projeto de vida e de um projeto de morte. As pessoas falavam assim [antes das eleições]: ‘mas nós não temos dois votos’. E eu falava: ‘a gente também não tem dois planetas!’ A nossa candidatura não foi movida por promessas, mas por um compromisso planetário. Não vai existir Planalto se não existir planeta. A democracia é palavra feminina, a terra é palavra feminina, a política é palavra feminina. E nós, mulheres indígenas, iremos entrar no Congresso Nacional sem o paletó, sem a gravata. Nós iremos entrar com a força da mulher mais antiga da governança da humanidade, que é a força da terra, que é a força do jenipapo e do urucum, porque as pessoas não estavam escutando a terra.”
Confira a seguir a entrevista exclusiva de Célia Xakriabá.
Le Monde Diplomatique Brasil – O que representa sua eleição e a de outras candidatas e candidatos indígenas para as políticas de proteção dos povos e do meio ambiente?
Célia Xakriabá – A nossa eleição é um processo de apontamento e sinalização, é importante nessa transição política saber se as pessoas estão realmente preocupadas com a economia. O crime de ecocídio orquestrado pelo governo Bolsonaro vai custar muito mais caro pra humanidade. Em 2019, fiz parte da jornada “Sangue indígena não aguenta mais”. Percorremos 12 países e 20 cidades em 35 dias, junto com a companheira Sônia Guajajara [atual ministra dos Povos Originários] e outras lideranças de várias regiões do Brasil compostas pela Apib [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil], entregamos e protocolamos no Tribunal de Haia um documento denunciando o governo Bolsonaro pelo crime contra o ecocídio da humanidade. Em quatro anos de governo anti-ambiental, anti-humanitário, quem foram os principais ministros do meio ambiente fomos nós, embora nós nunca tenhamos ocupado o lugar de ministro. Quando as leis no Congresso Nacional calavam, o ecocídio e genocídio nos territórios falavam. E hoje não dá para não reconhecer a potência das lutas sociais, indígenas e de povos e comunidades tradicionais porque nós já somos reconhecidos pela ONU como a solução número um para barrar a crise climática. Então, se nós somos a solução número um para barrar a crise climática, nós somos a solução número um e estamos mais que preparadas para combater e enfrentar a bancada ruralista.
Na sua opinião, quais são as principais pautas e demandas do movimento indígena que você precisará levar para o Congresso Nacional?
O nosso eixo número um são as questões da regularização fundiária, das demarcações dos territórios indígenas, titulação de comunidades quilombolas e reforma agrária e urbana. Há também o compromisso com as questões ambientais. O eixo ambiental foi discutido com povos e comunidades tradicionais, porque é urgente pensar as tecnologias sociais e ancestrais do nosso modo de vida. Outro eixo é a educação, mas uma educação territorializada que dialoga com a agricultura familiar, que dialoga com a soberania e a saborania alimentar, que dialoga com o nosso modo de vida e que as pessoas se sintam no retrato dos livros didáticos. Quando eu pegava os livros didáticos para ver o que mais falava sobre a história do Brasil, tinha hora que dava vontade de rasgar a página no meio. As pessoas falam muito de fake news, mas as fake news não começam nas eleições de 2018. A primeira fake news continua sendo reproduzir a história de que quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral. A fake news é continuar falando que no dia 22 de abril houve o descobrimento do Brasil. Então é urgente pensar em uma educação que dialogue com o nosso modo de vida. Uma educação do jeito que a gente quer, sem matar o que a gente é. E tem os eixo de juventude e tecnologia e o eixo de gênero e diversidade. Mas queremos fazer isso de maneira dialogada. A nossa candidatura não foi movida por promessas, mas por um compromisso planetário. Não vai existir Planalto se não existir planeta.
De que modo a pedagogia dos povos originários pode apontar novos caminhos para a educação e a cultura, que foram tão sucateados e agredidos na gestão anterior?
Em nosso modo de ensinar, a escola está em todos os lugares, a escola está na terra, ela é a terra porque a terra é a professora mais velha. A escola é o Cerrado. O Cerrado é uma escola gigantesca. Para mim, os maiores doutores são os doutores do Cerrado, porque eles conhecem a raiz de uma planta, sabem qual é a planta boa [para a cura]. Queremos retomar não somente o Ministério da Cultura, mas o mistério da cultura. O mistério da cultura que mantém o reencantamento pela vida. Se a nossa voz no Congresso Nacional não for suficiente, nós vamos convocar o movimento indígena do lado de fora. Nós faremos frente, sim!
Em julho do ano passado o governo brasileiro, estados estrangeiros e empresas foram condenadas pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP) pelos crimes de Ecocídio do Cerrado e Genocídio de seus Povos. Enquanto liderança Xakriabá, do Cerrado mineiro, como você avalia essa condenação? De que maneira o Congresso Nacional pode atuar para frear esse processo de mortes e destruição provocados, principalmente, pelo agronegócio e pela mineração?
É muito importante fazer essa discussão. Por exemplo, as pessoas pensam que essa expansão agrícola começou agora, mas na verdade desde a década de 1950, com a marcha para oeste na época de Getúlio Vargas, já tinha uma grande pressão pela expansão agrícola no Brasil, e o Cerrado era o foco da vez. Quando a gente hoje fala de commodities, sobretudo quando se exporta esses produtos para fora do Brasil, importa também a nossa vida. As pessoas não sabem que grande parte desses produtos de commodities sai das áreas de territórios indígenas, de povos e comunidades tradicionais, e que acaba fomentando os conflitos territoriais. Então, não dá para fazer uma coisa dizendo que tem selo verde, porque esse selo tem é muito mais vermelho. As mesmas mãos que desmatam e provocam incêndios criminosos no Cerrado, e que cometem crimes ambientais, são as que ajudam a legalizar, no Congresso Nacional, o desmatamento. As pessoas perguntam “por que os povos indígenas são tão contra o capitalismo?” Eu digo que a pergunta é o contrário: “por que o capitalismo é tão contra os povos indígenas?” Nós, povos indígenas, temos um plano de vida e temos condição de pensar esse plano de vida como um projeto de bem-viver do país, porque não somos nós que temos a mão suja de lama e de sangue da mineração, por exemplo.
De que maneira os parlamentares do campo progressista do Congresso Nacional podem atuar para incidir no processo de julgamento do Marco Temporal, retirado da pauta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho do ano passado?
Quando a gente pensa em um marco temporal, nós queremos também dialogar com o STF. Em 2021 nós fizemos nossas grandes mobilizações, que foram cruciais para demonstrar que fomos o único povo que se levantou [e foi às ruas] mesmo com a [pandemia de] Covid-19. A marcha das mulheres indígenas aconteceu em um momento de extremo ataque, de extrema violência, quando Bolsonaro estava querendo invadir o STF e nós estávamos ali, acompanhando o julgamento do marco temporal. As pessoas falam do marco temporal e nós temos dito que nosso marco não é temporal, o nosso marco é ancestral. Que tal se a gente começasse a falar também do marco temporal a partir de 1500? Nós queremos retomar esse diálogo, sabemos que é muito importante entender o Congresso Nacional como esse braço de legislar mais uma vez. Tendo autonomia no projeto democrático, nós teremos condições também de pautar no Executivo.
Quais caminhos e estratégias acredita serem assertivos para derrotar o legado bolsonarista de práticas e ideologia, tão destrutivas para os povos indígenas e comunidades tradicionais do Brasil?
Eu acredito muito no diálogo. A nossa candidatura tinha um encantamento, um ressentimentar das pessoas que era diferente de tudo. Em Minas Gerais há 853 municípios, fui votada em 804 municípios, a única mulher indígena do Cerrado eleita no Brasil. Então nós temos uma voz diferenciada e uma das parcelas das pessoas que votavam na nossa candidatura, votava na Simone Tebet. Uma das pessoas que votava pela emergência climática votava em nós, mas votava no Ciro Gomes. E uma parcela que falava assim “ah, eu voto no Bolsonaro, mas eu vou votar em vocês pela emergência climática porque a gente entende essa ausência”. Eu perguntava: “dá para fazer as duas coisas?” Isso pra dizer que tinha um recorte grande de pessoas que estavam anunciando desta forma [o apoio a Bolsonaro] e nós tentávamos dialogar. Sabe quando conseguimos conquistar e também e mudar a decisão das pessoas para votarem no Bolsonaro, sobretudo no público jovem? Lá em Uberlândia (MG), quando eu fui andar de bicicleta com eles, quando eu fui jogar bola com eles. Isso me fez pensar no deslocamento. Sem deslocamento não tem viagem. Não se trata de quem tem mais razão, se sou eu ou o nosso projeto. Se trata de deslocamento e de se mexer com o sentimento das pessoas. Então, para pensar em derrubar o bolsonarismo, tem que se pensar em uma política de afeto e acolhimento. Nesse momento, não existe outra alternativa: [é preciso] dialogar e se deslocar também para o mundo daquelas pessoas. Sobretudo nós, indígenas, temos feito um debate que o saldo das nossas eleições, muito mais do que eleitoral, foi um saldo político, um saldo histórico, porque nós perguntamos para essas pessoas: “vocês querem votar pelo futuro? Não existe votar pelo futuro se vocês apoiarem um governo ecocida. Porque é um governo que compromete o direito das crianças, da juventude e da futura geração, da futura humanidade”. A eleição no Brasil é internacional, ela projeta para o mundo, porque o que está se decidindo aqui vai pesar a mão para a humanidade. Não se trata de partido, se trata de um projeto de vida e de um projeto de morte. As pessoas falavam assim: “mas nós não temos dois votos”. E eu falava: “a gente também não tem dois planetas!” Eu recebi a mensagem de uma mãe falando assim: “Eu nem ia votar, decidi porque meu filho, minha filha de 8 anos e 10 anos, pediu para que eu votasse em você, porque você defende a natureza”. E nós queremos discutir com essas pessoas que têm um ponto de dissenso, que às vezes é difícil de dialogar, mas queremos e estamos dialogando com essas pessoas. Eu também quero falar para essas pessoas no Congresso Nacional, porque elas dizem que defendem o meio ambiente, mas não tem como defender o meio ambiente sustentando uma mão no selo verde e a outra na motosserra. Não dá pra defender o meio ambiente e ser responsável, também, pelo grande índice de desmatamento. Não dá para defender o meio ambiente e não ter compromisso com esse projeto. Ou as pessoas retomam que é urgente pensar uma transição econômica, uma transição humanitária ou, se acabar para nós, acaba para todo mundo. Eu falo que faltam cinco minutos, não exatamente para o fim do mundo: faltam cinco minutos para o fim das pessoas.
Com 91 deputadas federais eleitas, as mulheres representam 17,7% das cadeiras da Câmara dos Deputados. Como mulher, deputada federal e indígena Xakriabá, qual a importância da participação e do protagonismo da mulher na política e no Congresso Nacional?
Para mim é muito importante, porque a gente discutia que eram 15% e agora aumenta para 17%. Tenho feito algumas discussões, sobretudo em Minas Gerais, porque 2022 foi um ano em que a gente falou muito da retomada da democracia, só que se a gente olhar para o cenário brasileiro, é um ano que retomou também o patriarcado, com as pessoas falando muito de amor à pátria. Eu digo que não existe amor à pátria sem respeitar as mulheres mátria. O Brasil começa por nós, mulheres indígenas. O século XXI é de muitas outras coisas, mas é também das mulheres indígenas. Nós temos uma sensibilidade gigante para discutir um projeto político, porque a política significa ciência de governar, e nós não acreditamos em uma ciência de governar onde não se escuta as pessoas. O Brasil é um dos líderes no ranking do feminicídio no mundo. Minas Gerais foi o estado que mais matou mulheres [em 2022]. Então, esse momento é importante, sim. Se nós somos as principais vítimas, nós precisamos também ser escutadas como as principais potências para reverter esse cenário. Nós queremos não somente ter uma política na história; queremos e podemos fazer história na política. Por isso eu digo que nós estamos preparadas para mulherizar, para reflorestar e indigenizar essa política. A democracia é palavra feminina, a terra é palavra feminina, a política é palavra feminina. E nós, mulheres indígenas, iremos entrar no Congresso Nacional sem o paletó, sem a gravata. Nós iremos entrar com a força da mulher mais antiga da governança da humanidade, que é a força da terra, que é a força do jenipapo e do urucum, porque as pessoas não estavam escutando a terra. Não estavam escutando as águas, não estavam escutando o chamado das florestas, dos nossos biomas. Nós vamos entrar para ser uma voz atuante e ecoante daquilo que é o princípio da humanidade. A nossa força vai ser pela força do cocar.
De que forma o Cerrado e seus povos podem estar mais presentes na discussão sobre políticas públicas para essa região ecológica nos próximos anos?
Eu acredito que, mesmo com dificuldades, o Cerrado vai estar mais pautado, porque todas as vezes que eu for me apresentar eu irei dizer: “sou a primeira mulher indígena e fui eleita pelo bioma Cerrado, e é por essa força que nós estamos pautando esse lugar”. Sobretudo na agenda internacional nós descolonizamos muito [as discussões], porque até os financiadores, majoritariamente, financiavam projetos na Amazônia. E nós falávamos para que apoiassem o nosso projeto, porque se acham a nossa cultura bonita, a nossa tradição bonita, a nossa resistência bonita, então é urgente apoiar os nossos projetos, porque têm uma responsabilidade em ajudar a cuidar do corpo, da voz e do território de quem canta. O pequi é o nosso ouro, o ouro do Cerrado. Mas aqui a gente não explora esse ouro, não! A gente come, a gente cuida, porque faz parte da nossa saborania alimentar. Tenha certeza de que nós vamos ser um braço importante, uma voz importante. Assim como a Amazônia, o Cerrado é um importante bioma e que tem uma contribuição gigantesca. Se a Amazônia é o pulmão do mundo, o Cerrado é outro, que sustenta a vida. Somos 522 anos de ausência. Nós sabemos o que é fazer resistência e sempre fizemos isso do lado de fora. A diferença, agora, é que vamos estar do lado de dentro e vamos fazer daquele salão verde um reflorestar das ideias de nosso projeto.