Estamos mal em leitura, mas há esperança
Henrique Rodrigues, escritor e diretor do Instituto Caminhos da Palavra, apresenta panorama da área do livro no país
Em fins do ano passado, profissionais ligados à educação ficaram alarmados com os resultados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, um dos estudos mais respeitados de mensuração da área. Especificamente, nós que trabalhamos em diversos setores do livro e de serviços ligados à promoção da leitura não nos surpreendemos com os resultados tão negativos.
Pela primeira vez desde 2007, quando a pesquisa começou a ser feita com a atual metodologia, o número de não-leitores passou a ser maior que o de leitores: 53 contra 47%, respectivamente. A Retratos, como é chamada na área, considera leitor “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro de qualquer gênero, impresso ou digital, nos últimos 3 meses”. Ou seja, mais da metade alega que, basicamente, não teve sequer um contato com uma obra impressa e encadernada. Se pensarmos na leitura literária e espontânea, aquela que nos interessa aqui, a coisa ainda fica mais feia: entre todos os entrevistados que se dizem leitores, dos 4,22 livros lidos por ano, apenas 2,35 são de literatura.
A pesquisa não entra nesse aspecto, mas trago outro dado para aumentar o sofrimento. No Brasil, a literatura estrangeira ocupa muito mais as estantes das nossas poucas livrarias do que a produzida nacionalmente. Não raro, o setor de obras literárias brasileiras fica escondido no fundo da loja. Similar ao que ocorre no cinema, nossa síndrome de colonizados faz com que a produção local pareça sempre menos apetitosa do que aquela importada. Claro que há exceções: temos alguns best-sellers, e uma ou outra rede de livrarias destaca autorias brasileiras nas prateleiras da frente sem que as editoras precisem comprar o espaço, algo comum nas lojas. Mas a regra, infelizmente, nos é desfavorável.

Tropeços das políticas públicas
Esses números da pesquisa são resultado de vários fatores, sendo o principal a falta de investimentos públicos nos governos anteriores. Como disse José Castilho Marques Neto, um dos maiores especialistas na área, “à desidratação do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) no governo Temer somou-se à sua destruição no governo Bolsonaro e, com isso, mais uma vez, toda a responsabilidade de formar leitores/as no Brasil ficou nas mãos da sociedade civil”. Na ausência de políticas públicas para a área, não esperemos que a situação se resolva na iniciativa privada. As editoras, em geral, não têm estrutura para fazer trabalho formativo que faça surgirem novos consumidores de livros, pois estão preocupadas com as contas do mês seguinte. Muitas mal conseguem se manter de pé, e várias se tornaram dependentes dos editais de compras de governos federal e municipal, sobretudo pela falta de um sistema comercial saudável no país. O fato de, vergonhosamente, termos menos de 3 mil livrarias no país inteiro não é causa do problema, mas consequência. Ninguém vai abrir um comércio cujos consumidores são quase inexistentes. Em vez de livros, é mais rentável vender remédio, cerveja ou celulares, produtos para os quais não faltam clientes.
Ainda sobre os investimentos, muitas Ongs e instituições maiores da área dependem financeiramente de patrocínio por leis de incentivos fiscais, mas esbarramos nos problemas do marketing cultural, termo que é, como afirmou o saudoso diretor do Sesc São Paulo Danilo Miranda, uma contradição em termos. Quando a liberação de verba se baseia na perspectiva publicitária, as concessões de apoio financeiro seguem mais para eventos ligados a figuras conhecidas e com apelo midiático do que para algo formativo e de pouco apelo. O Brasil prefere festas a aulas: uma peneirada na Lei Rouanet mostra que temos muitas feiras literárias e poucos projetos de ações regulares e sistemáticas. Na área do livro e da leitura, é como se o grande investimento estivesse na construção de um parque de diversões, não no saneamento básico. O ideal seria que ambos coexistissem.
Tudo começa e volta para a escola
Diante desse quadro, prefiro me voltar para a base num outro resultado da pesquisa: a queda acentuada de leitura nas escolas é muito preocupante. Sou oriundo de família pobre do subúrbio carioca. No meio dos diversos problemas sociais e econômicos da minha família, livro era um objeto estranho, como ainda é em tantos lares. Tive o primeiro grande acesso à leitura na biblioteca escolar, aqueles octógonos mágicos dos Cieps criados pelo saudoso Darcy Ribeiro. Além de um acervo incrível, havia algo que fazia toda a diferença e que, hoje, é algo raro: uma bibliotecária, formada na área e dedicada àquele espaço. Em 2009, quando fui superintendente pedagógico da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, fiquei assustado ao descobrir que a última contratação de bibliotecários para a rede havia sido aquela, dos anos 1980, para os Cieps.
O Censo Escolar de 2023 revelou que apenas 52,5% das escolas brasileiras têm biblioteca ou sala de leitura. A lei de universalização desses espaços nas redes escolares, de 2018, tornando obrigatória a existência desses espaços, está parada desde 2023, parecendo não ser uma pauta urgente.
Vale dizer que esse imenso problema, restrito ao ambiente fechado de uma escola e do qual sequer os pais tomam conhecimento, não é pauta política nem jornalística. A mídia da área, em crise e busca de espaço e relevância perdidas na era digital, parece preferir se voltar em peso para traições conjugais e futricas das elites literárias, pauta que ferve sob a lógica de fofoca, cancelamento e autoafirmação que rege o ambiente de redes sociais.
Fato invisível ao entorno, uma escola capenga na área do livro e leitura tende a gerar um prejuízo social e econômico inestimável, visto que gera, a cada ano, lacunas na formação básica de centenas de indivíduos, que tenderão a aumentar o grosso caldo de pessoas com os diferentes níveis de analfabetismo funcional, outro problema que assola a nossa população e está diretamente ligado ao baixo volume de leitura. Uma visita ao site do INAF pode explicar o tamanho da encrenca.
Como escritor oriundo da pobreza, criei um especial compromisso em contribuir no que posso para valorizar escolas públicas. Nas constantes visitas, tenho visto que muitos espaços de leitura, quando existem, estão fechados. Na educação e na vida, os problemas nunca vêm sozinhos: há uma evasão grande de professores, que se soma ao fato de vários ainda estarem passando por problemas decorrentes da pandemia. Nesse cenário, as salas de leitura ficam fechadas, um convite para se tornarem depósitos de materiais diversos.
Pode parecer apocalíptico, mas como a coisa anda é capaz de, em não muitos anos, espaços de leitura desaparecerem, ou se tornarem raridade nas escolas. Para as pessoas mais pobres e que não têm acesso a bens culturais em casa, a escola é o único lugar onde, diariamente, seria possível conhecer o poder da leitura. Mas se até esses espaços desaparecerem, como a coisa fica?
Novos caminhos
Por coincidência, enquanto escrevo este artigo sou consultado via WhatsApp por uma diretora de escola pública aqui do bairro, em Jacarepaguá/Rio de Janeiro, local que hoje só aparece nas notícias por conta da violência urbana. A educadora pede ajuda para promover a leitura na sua unidade, e recebeu o meu contato por conta do trabalho que faço há anos na escola próxima, onde estudei, e de cuja sala de leitura hoje sou patrono. No caso dela, a sala de leitura existe, mas não tem mais professor. Para piorar, a escola não vai receber nenhum apoio para atividades relacionadas às celebrações do título “Rio Capital Mundial do Livro”, concedido pela Unesco, que irá vigorar entre abril deste ano até o próximo. Aliás, esse título me cheira mais a marketing do que qualquer coisa, pois quem vive na cidade percebe o quanto faltam equipamentos e investimentos de peso na área. Espero estar errado, mas não seria surpresa se, depois desse ano, tivermos mais um “legado olímpico”, que prometeu mais do que cumpriu.
Com tantos desafios, precisamos manter a esperança. Tenho acompanhado os esforços do governo, que está preparando o Plano Nacional de Livro e Leitura, um conjunto de estratégias a ações consistentes para os próximos 10 anos. Fico na torcida para que, assim como o querido Ciep, o projeto não sofra com a nossa habitual descontinuidade por eventual mudança de governo. Em educação e cultura, para melhorar números como os da pesquisa sobre práticas leitoras são necessários muitos anos de investimentos.
De todo modo, não basta cruzar os braços e esperar só o poder público. Depois de mais de duas décadas trabalhando com projetos literários e saído da iniciativa privada, criei ano passado o Prêmio Caminhos de Literatura, voltado para revelar novos autores e apoiá-los nesse difícil ambiente literário brasileiro. Mesmo sem nenhum apoio financeiro, deu certo e vamos para a segunda edição. A partir dele, lançamos o Instituto Caminhos da Palavra, voltado para promover nossas formas de ler e escrever. Lançamos oficinas de criação literária com alguns dos maiores escritores brasileiros, oferecendo bolsas de estudo integrais para quem não pode pagar. E em março de 2025 vamos começar uma ação regular na qual vamos visitar escolas públicas com um representante de uma grande editora, que vai doar exemplares para alunos, professores e funcionários, além de explicar para a galera como os livros são criados. Vamos fazer sarau, batalha de rimas e, no fim, todos levarão os exemplares para casa, inclusive as merendeiras e o pessoal da limpeza. Acredito que essa educação editorial pode gerar bons resultados: livro na mão de pobre é revolução.
Em tempo: a diretora que me abordou há pouco ficou bem feliz quando eu me comprometi a ajudá-la com o que puder. Vamos lá oferecer à escola um barulho que não seja de tiros. E tentar, como disse o Fernando Sabino, “fazer da interdição um caminho novo”.
Henrique Rodrigues é escritor e diretor do Instituto Caminhos da Palavra.