Estética e Política no Coletivo Estopô Balaio
Os espaços culturais periféricos frequentemente transcendem suas funções artísticas para se tornarem pontos de convivência e sociabilidade, suprindo a ausência de equipamentos públicos como praças e centros comunitários
(…) as artes são uma esperança de humanidade e são nestes momentos mais difíceis, quando é maior a desilusão e a impotência, que as artes são as únicas capazes de celebrar a humanidade. (Exército Zapatista de Libertação Nacional)
Os bairros Jardim Lapena, Jardim Romano, Jardim Pantanal e Jardim Fiorelo – situados nas margens do Rio Tietê, entre a estação São Miguel Paulista e o início de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo – podem ser vistos como espaços de uma experiência que mostra um complexo entrelaçamento de natureza, política, teatro e memória social.
Nessas localidades, os alagamentos e enchentes que se repetem anualmente não podem ser entendidos apenas como fenômenos naturais, mas como manifestações de uma vulnerabilidade histórica e estrutural que se estende por mais de 30 anos, produto de fortes chuvas combinadas à negligência dos poderes públicos municipal e estadual. Frente a essa realidade material emergem práticas coletivas de resistência e ressignificação, onde os rios e as águas simbolizam tanto a adversidade quanto a possibilidade de transformação. Como diria Mário Quintana (1986), “eles passarão, nós passarinho”, expressão que ecoa a resistência dos moradores frente às intempéries.
No território do Jardim Romano, a sede do Coletivo Estopô Balaio desponta como espaço comunitário de resistência, cuja trajetória ilustra como as práticas artísticas podem funcionar como rituais contemporâneos de afirmação de identidade e mobilização político-cultural.

Crédito: @cassandra_mello/@coletivoestopobalaio
Conheci esse grupo por meio da experiência proporcionada pela peça Cidade dos Rios Invisíveis, que se vale das narrativas orais dos moradores para tecer uma memória coletiva das enchentes e alagamentos – eventos que configuram verdadeiros desastres socióclimáticos, afetando sobretudo populações subalternizadas. O espetáculo, que se desenrola em um percurso itinerante que vai da estação da linha 12-Safira da CPTM, pelas ruas do Jardim Romano, até o córrego Três Pontes, abrangendo quase 40 quilômetros do centro ao extremo leste de São Paulo, evidencia a cidade não como mero cenário, mas como um ator performático que se constrói e se revela a partir de práticas corporais e discursivas coletivas, dando o tom do teatro em comunidade feito pelo núcleo artístico. Nessa encenação, os moradores deixam de ser espectadores passivos para se tornarem protagonistas, articulando papéis que transcendem a dicotomia entre atores e não-atores.
Essa obra me impactou profundamente, despertando meu interesse enquanto pesquisador em Antropologia Social. Ao ingressar no doutorado, optei por investigar o grupo Estopô Balaio a partir das inquietações que surgem na intersecção entre teatro, políticas culturais e o neoliberalismo. Essa abordagem permite compreender como práticas artísticas podem funcionar como microcosmos contra hegemônicos, ensaiando a possibilidade de um outro mundo – uma perspectiva que se desdobra em discussões sobre estética, política, gestão coletiva e relação com território/público, temas que serão abordados de forma breve ao longo deste artigo.
Para o teatro de grupo, os modos de criação, produção, organização e estruturação dos grupos de teatro se configuram como práticas culturais imersas em contextos sociais e territoriais específicos. Esses processos estão intrinsecamente ligados às relações de trabalho, ao processo criativo, ao vínculo com o público e à inserção no território. No teatro de grupo – categoria à qual o Coletivo Estopô Balaio se identifica – esses elementos dialogam com desejos estéticos, éticos e políticos, afetando diretamente tanto a linguagem quanto a obra produzida. Assim, o trabalho de gestão, produção e os processos de criação não se apresentam como esferas dissociadas, mas como dimensões interligadas, funcionando como um verdadeiro laboratório de experimentação de um outro mundo possível, conforme articulado pelos zapatistas.
Jacques Rancière (2020) aponta que a estética desempenha uma função política ao definir os limites do que pode ser feito, visto, dito e pensado socialmente. Essa visão entende a política como um campo de dissenso, onde a ordem estabelecida é desafiada e tensionada pela ruptura promovida por uma estética dissidente da norma. Ao aplicar essa perspectiva ao teatro de grupo, podemos compreender que a forma como o Estopô Balaio se organiza – sua gestão – opera como uma dimensão que contesta a lógica gerencialista do modelo empresa (DARDOT; LAVAL, 2016), isto é, não se pauta em princípios de concorrência, eficácia, eficiência e produtividade disseminadas pela economia política e racionalidade neoliberal.
O trabalho de gestão não se restringe aos aspectos materiais necessários à criação e sobrevivência do núcleo artístico, mas também manifesta um tensionamento das relações de trabalho capitalistas e das formas organizacionais vigentes.
Portanto, ao analisar as obras e a produção artística desse coletivo é fundamental considerar como as relações de trabalho, a organização interna e a gestão do grupo se articulam para constituir a estética e a prática teatral. Parafraseando Silvia Rivera Cusicanqui (2021), não se trata de uma estética que apenas represente novas formas de organizar o mundo do trabalho e a vida social, mas de uma estética que as antecipe e prefigure por meio de práticas concretas e coletivas.
Um exemplo emblemático desse tensionamento do sensível, que une estética e política, é ilustrado por Dunstin Farias, ator e rapper do Coletivo:
“Mano, o teatro em comunidade, que a gente fala e que é o que eu entendi dentro do Estopô, é o que eu conheci de fato na prática e que a gente enxerga hoje como é inevitável existir Estopô sem teatro em comunidade, porque a essência do Estopô é essa […] É um teatro que não isenta a comunidade da sua participação, seja a comunidade formada ou não formada, seja atriz ou não atriz, ator ou não ator. Isso não isenta da participação efetiva dentro de um espetáculo, seja na função de produção ou na função de cena mesmo, de espetáculo, de músico. Ou seja, como próprio… Eu não vou dizer cenário, porque não é um cenário. É um cenário vivo. É participação viva, desde as cidades invisíveis a outros espetáculos, é trazer a comunidade para próximo desse diálogo da peça. Então, seja através das memórias desses moradores que vão ser trazidas no espetáculo, com muita licença e muita responsabilidade […] Eu acho que, sinceramente, é o que falta mais nos grupos de teatro. Para mim, ainda falta mais isso. E quem fomenta financeiramente para manter o teatro, seja a secretaria ou seja outros meios. Porque isso se resulta muito na política, na minha visão. Na política em vida, mesmo em prática. Colocado em prática, não só no quesito de eleição… Porque, por exemplo, recentemente, na última eleição, o Estopô, por conta própria, a gente foi até a estação do Romano, montou uma mesa, montou um café, e a gente falou, vamos trocar ideia sobre política. Vamos trocar ideia, vamos conversar, vamos entender ali e tal, chamar as pessoas. E aí a gente, por exemplo, já rolou situações de trabalhar com pessoas que é do bairro, que não tem nada a ver com teatro, que não entende a dinâmica de teatro, de fazer espetáculo, mas que passou a participar na produção. E aí, em determinadas situações, incomodar pessoas que já estão na área e falar assim, ‘pô, mano, não dá para trabalhar com tal pessoa. Não dá mais, não dá mais, mano. Tem que sair fora, não sei o que e tal’. Se não tiver um cuidado e uma atenção, a gente segue todo o caminho que todo mundo faz ‘Vamos mandar embora, vamos mandar embora’, mas não é mandar embora. ‘Peraí, quem é essa pessoa? O que está acontecendo?’ Essa pessoa vai olhar para a gente e vai falar assim ‘Ué, pra mim não tem diferença nenhuma do outro meio aqui”. Será que a gente tá lutando contra o funcionamento? Então a gente se deparou e falou, não, mano, não é mandar ir embora’. […]E aí, quando você trabalha em teatro de comunidade, você não pode agir assim, na quebrada com as pessoas. Por mais que sejam difíceis de trabalhar, porque é difícil, mas não dá pra você descartar. Porque não é sobre descartar. Você não foi suficiente, vai embora. Não, mas é de fato o trabalho mais difícil de se fazer, que é um trabalho que antecede toda a execução, a beleza do espetáculo, que antecede tudo isso. (Entrevista cedida ao pesquisador, 03 de fevereiro de 2025)”
O integrante do grupo ressalta, com essa fala, que a noção de teatro em comunidade é a âncora do coletivo, explicitando que a relação com o território não se resume a representação. Em outras palavras, não se trata de representar o território, seus moradores e as idiossincrasias da vida na periferia. A comunidade, o Jardim Romano e adjacências, e seus moradores são protagonistas no processo criativo, na estética, na linguagem, na pesquisa que privilegia a oralidade e a memória para discutir identidade e lutas indígenas e migrantes.
Ao friccionar a dimensão do sensível trazendo a comunidade como protagonista da cena, o grupo abre um espaço político que permite pensar e praticar outras formas de organização do trabalho, que rompam com as estruturas hegemônicas de mando e obediência, patrão e empregado. Nesse sentido, estabelece-se uma relação dialética entre a obra, o público e a gestão do grupo e consequentemente entre política e estética. Além disso, o ator ressalta os paradoxos enfrentado pelo grupo ao questionar a lógica gerencial, ao mesmo tempo que habitam as condições concretas e materiais desse mundo baseadas na racionalidade neoliberal. É um conflito de ordem prática: o intento de construir novos horizontes, possibilidades de vida e trabalho, enquanto se vive nas condições materiais e concretas, ainda que à margem, das relações capitalistas de produção.
Da cena à autogestão, da autogestão à cena: como radicalizar a forma.
“A solidariedade entre semelhantes é parte medular do Teatro do Oprimido”,
(Boal, 2013: 15-16).
Chego ao grupo no momento que estão em processo de criação e ensaios para estrear o espetáculo Reset Brasil. Era um momento conturbado, de muito trabalho e expectativas. Percebo, ainda nos primeiros encontros, que o grupo realiza a produção da gestão internamente, de forma coletivizada, conforme me apontaria Ana Carol, diretora do núcleo, posteriormente:
“João, antes a gente contratava pessoas para fazer as tarefas mais administrativas e de produção. Hoje a gente faz tudo dentro do grupo, tem o Wemerson, tem a Lisa. Foi uma sacada que a gente chamou a Lisa para fazer toda a parte de notas e pagamentos que é um trabalhão. Ninguém faz algo sozinho, estamos sempre trocando, todo mundo faz tudo”, (Caderno de Campo, 20 de janeiro de 2025).
A produção da gestão no coletivo emerge como uma prática cultural intrínseca, ou seja, o próprio núcleo artístico a realiza, pois compreende-se que não é algo a ser delegado a agentes externos. Para os integrantes do grupo, fazer a gestão – incluindo os dilemas financeiros e pessoais – é uma necessidade que se fundamenta no conhecimento íntimo dos desafios e problemas vivenciados diariamente, tanto pelo grupo quando pelos sujeitos que o compõe. Embora as decisões sejam amplamente discutidas e, na maioria das vezes, alcancem o consenso, determinados membros – Wemerson Nunes e Lisa Ferreira, com o apoio de Ana Carol – assumem a responsabilidade pela operacionalização das deliberações da gestão e produção. Essa dinâmica revela uma prática de coordenação que se contrapõe à lógica hierárquica tradicional, na qual a autoridade é imposta de cima para baixo. Em vez disso, o poder é distribuído coletivamente, evidenciando uma relação de “mandar obedecendo”, conceito central no movimento zapatista (CCRI – EZLN, 2005). Tal princípio questiona a rígida separação entre governantes e governados, propondo uma nova forma de articular as funções de liderança e submissão, como destacado na Sexta Declaração da Selva Lancadona e aprofundado por Rojas (2019, p.36).
Essa metodologia dialoga também com o princípio da autogestão, dito de outra forma, as decisões são tomadas de forma direta e coletiva, sem necessidade de lideranças centralizadas, com concentração de poder. Essa prática estimula a solidariedade, a cooperação a autonomia do grupo ao organizar e dirigir suas atividades, embora ainda dependa de recursos financeiros como políticas públicas de cultura ou outros financiamentos, como a imensa maioria dos núcleos artísticos do teatro de grupo. Por sua vez, a relação dos grupos com as políticas públicas de cultura, em sua maioria baseadas na forma edital, evidencia a tensão permanente entre a autonomia política, desejos estéticos e a realidade econômica dos núcleos artísticos.
O argumento apresentando por Ana Carol sobre a importância da gestão ser conduzida dentro do próprio grupo se evidenciou durante um encontro em que surgiram pautas que conectavam as condições materiais objetivas, ou seja, os recursos financeiros do grupo, à dimensão estética da obra: caso das redes do espetáculo Reset Brasil. Sobre as redes de descanso. A cena final do espetáculo ocorre na Praça do Forró, em São Miguel Paulista, ao lado da Capela de São Miguel Arcanjo, onde estão enterrados os indígenas que se revoltaram diante da força colonial. A proposta inicial era dispor de várias redes para acomodar todo ou grande parte do público, promovendo um uso compartilhado e coletivo. No entanto, o grupo não possuía recursos financeiros suficientes para adquirir a quantidade necessária. Nesse momento, emergiu um debate entre produção e direção artística. Onde havia uma limitação objetiva de orçamento e um anseio estético para a simbologia da cena que falavam em sonhar um outro Brasil. Após diálogos e mediações, o grupo chegou a um consenso: optou-se por ter um número reduzido de redes, mesmo que isso comprometesse a concepção estética, pois havia outras demandas urgentes. Esse episódio ilustra, de forma vívida, como as dimensões estética e política se entrelaçam – conforme Rancière (2020) – e como as soluções não são impostas verticalmente, mas construídas a partir de paradoxos e negociações internas.
Nesse sentido Oliveira aponta que a lógica das políticas públicas de cultura via edital carrega em si um dilema:
A própria noção de projeto pressupõe, assim, um conjunto de expedientes constrangedores ao fazer cultural: a descrição antecipada dos resultados que as ações visam proporcionar, o que as limita em diversos aspectos; esquematização das condições do ato criativo; antecipação de conceitos, leituras, ante a necessidade de justificar as propostas; adequação das ideias e experiências que são por sua natureza inestimáveis, propositalmente imprecisas, em conformidade com a oferta de recursos e os objetivos do edital; delimitação prévia de lugares, sensações e linguagens que podem ser exploradas etc. É então de se supor que o espírito de contestação que eventualmente esteja contido em uma intenção cultural fique ajustado ao que está dado, a um princípio jurídico-formal que não admite improvisos (2018, p. 134)
Frente a esse impasse, nem só como sujeito determinado pelas condições materiais, nem tão somente como protagonista livre de amarras, o grupo, nessa corda bamba entre determinação e autodeterminação, finca sua relação com o território. A Casa Balaio, por exemplo, não se configura apenas como um espaço cultural, mas como um polo de referência que integra os âmbitos educacional e social no bairro. O local abriga oficinas e formações em diversas linguagens, destinadas a públicos variados – de adultos a crianças –, e mantém parcerias institucionais, como com o Programa de Iniciação Artística (PIA). Além disso, a sede se transforma em um espaço de articulação política e de visibilidade para lutas indígenas e periféricas, sediando eventos como a Semana de Politização Indígena Urbanizada, Quebrada Originária, Jardim Rimano, Cine Varal Romano e o Festival Balaio de Cenas Curtas.
Em uma dessas ocasiões, enquanto o grupo gravava vídeos para divulgar suas atividades, três crianças do bairro adentraram a Casa Balaio com naturalidade, interagindo com o elenco e acompanhando a gravação. Embora tenham optado por não participar da filmagem por timidez, seu interesse em retomar as oficinas de teatro logo após o evento evidenciou o vínculo afetivo e simbólico que desenvolvem com o espaço. Essa interação demonstra como os espaços culturais periféricos frequentemente transcendem suas funções artísticas para se tornarem pontos de convivência e sociabilidade, suprindo a ausência de equipamentos públicos como praças e centros comunitários.
Em síntese, os usos heterodoxos desses espaços e a dissolução das fronteiras entre cultura, assistência, educação e saúde são características marcantes das experiências dos núcleos de teatro de grupo. Na intersecção entre a prática artística e as contingências da vida cotidiana, o Coletivo Estopô Balaio constrói uma atuação de base que cria horizontes e reflete os desafios de um território que ao entrelaçar natureza, política, teatro e memória social encara que por meio de articulações e mobilizações coletivas é possível minimizar a resistir às adversidades. Portanto, “eles passarão”, enquanto o teatro e a comunidade “passarinho” …
Para mais informações do grupo: https://coletivoestopobalaio.com.br/ ; https://www.instagram.com/coletivoestopobalaio/
João Rodrigo V. Martins é doutorando em Antropologia Social pela UFSC, trabalhador da cultura e educador popular.
Referências
BOAL, Augusto (2013). Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Cosac Naify.
CCRI – EZLN. Sexta Declaração da Selva Lancadona, junho de 2005, apud ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. “Mandar obedecendo”: as lições políticas do neozapatismo mexicano. Tradução coletivo Casa de Taipa. Porto Alegre: Deriva, 2012, p. 39.
CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores (A. L. Braga & L. Z. Zalis, Trads.). São Paulo: N-1 Edições, 2021.
DARDOT, P.; LAVAL, C.. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016. 402p.
OLIVEIRA, Taiguara Belo de. O novo engajamento cultural: militância e trabalho com políticas públicas em São Paulo. 2018. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.27.2018.tde-20072018-112445. Acesso em: 2024-12-23.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 21. ed. Rio de Janeiro: Editora 34,2020.71p.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Mandar obedecendo: as lições políticas do neozapatismo mexicano. São Paulo. Editora EntreMares, 2019.
QUINTANA, Mário. Baú de Espantos. Porto Alegre: L&PM, 1986.