Etnia Xukuru-Kariri e as práticas populares no enfrentamento à Covid-19
A luta dos povos indígenas contra a covid-19 não é somente um confronto travado contra o vírus, mas é a luta contra um projeto global organizado pelas lógicas de mercado e de Estado, as quais marginalizam seus modos de vida e negam sistematicamente seus direitos
A Covid-19 fez emergir uma crise instalada há muito tempo no sistema capitalista moderno e colonial. Essa crise aponta para a insustentabilidade desse modelo extrativista de sociedade, que busca mediar as relações do viver, por meio da mercadoria, buscando transformar todas as formas de vida e a natureza em recursos a serem extraídos para o funcionamento da ordem de exploração, dominação e espólio do capital.
Para os povos indígenas, essa crise, agora vivida por todos, nos termos da pandemia, não se define como um estado de exceção, mas uma regra que se impõe historicamente no cotidiano de seus modos de vida e de seus projetos de futuro. As formas de organização social, as relações estabelecidas com a terra e a natureza, as maneiras de aprender e ensinar os conhecimentos entre diversas gerações, as relações comunitárias e a partilha coletiva da vida são empecilhos ao avanço do projeto moderno/colonial, que necessita dos recursos da natureza para seu sustento, da mão de obra explorada de trabalhadoras e trabalhadores, da vida instrumentalizada como mercadoria e da produção de indivíduos consumidores, para fazer girar seus ideais de progresso e desenvolvimento (ACOSTA, 2016).
Nas cosmovisões indígenas não é o humano que se encontra no centro e não é nele que se apresenta a capacidade de organizar a vida ao seu dispor e às suas necessidades. Aqui, o humano expressa-se como natureza e se produz como mais um dos elementos que compõem as formas de vida localizadas e territorializadas em um determinado espaço do mundo. O local, como parte integrante da vida dos povos indígenas, ganha outros contornos nesse horizonte, não como lugar esquecido, distante e oposto da ordem global, porém, como territórios disparadores de contradições a esse modelo homogeneizante, como lugar capaz de produzir narrativas grávidas de sentido, a fim de falar do viver com a natureza, dos conhecimentos coletivos, das histórias dos ancestrais e das vidas compartilhadas, que se trançam nesses territórios e buscam articular táticas de enfrentamento e resistência, para neles permanecer (SANTOS, 2008).
Assim, as narrativas indígenas auxiliam, neste momento, a desmascarar as suposições hegemônicas que buscam invisibilizar a crise estrutural que a covid-19 apenas escancarou, diante do projeto global falido de sociedade e humanidade. Em face do colapso, algumas saídas oferecidas pelo sistema moderno/colonial são apresentadas: 1- a promessa de que, no futuro breve, a vida retornará à normalidade. Trata-se de uma compreensão de normalidade insustentável, como afirma Krenak (2020), tendo em vista uma sociedade que constrói suas pequenas ilhas de civilidade sobre a morte e a injustiça de milhares de povos; 2- intensificação de alternativas individualistas e virtuais imediatas, por meio do consumo de bens e da comunicação como solução para proteção de si e dos seus entes mais próximos. Todavia, esquece que o vírus age por circulação e contágio e, se não cuidarmos de todos, não cuidamos de ninguém; 3- a saída para o colapso, a qual o vírus impôs às economias do mundo, é que a vida não pode parar, subordinando a saúde da população à lógica econômica que deve perdurar sobre a vida de milhares de pessoas; 4- a proliferação do medo e do pânico, como afetos que nos paralisam diante da crise e produzem um terreno fértil à proliferação de discursos e lógicas fascistas, as quais justificam o controle, a vigilância, a militarização, alicerçando suas práticas em respostas imediatistas baseadas no racismo, sexismo, patriarcalismo (HACKEO CULTURAL, 2020).
Frustração e esvaziamento de sentidos
O sistema capitalista funciona por meio da construção incessante da frustração e do esvaziamento de sentidos como matéria-prima à produção de uma subjetividade consumidora. Ele é expert em produzir pessoas frustradas e isoladas: quanto menos satisfeitas com o que elas possuem, mais solitárias e desenraizadas, maior sua capacidade de produzir ilusões à satisfação da vida pelo mercado.
Já nos territórios indígenas é ensinado entre as gerações o prazer de estar entre os parentes, o orgulho e a vontade de viver no lugar de nascimento, onde a aldeia está: é ali que a vida pode ser boa, que os contos e causos sobre o mundo são compartilhados. Os modos de vida indígenas confrontam pontos centrais que questionam a estrutura e o tipo de funcionamento do sistema capitalista. Apresentam-se, ao mesmo tempo, seja como um risco, quando contestam suas racionalidades e propõem outros formas de existência, seja como um empecilho, já que são nesses territórios que estão presentes os ditos recursos naturais, a matéria-prima para o avanço do projeto de progresso do capital.
Perante o risco, a ordem hegemônica e os empecilhos da permanência em seus territórios, recaem sobre os povos indígenas práticas necropolíticas (MBEMBE, 2018) – ou modos de governar a vida de determinadas populações, a partir das lógicas da morte e de tentativas de extermínio. As necropolíticas atuam como formas sofisticadas, aperfeiçoadas e justificadas do Estado, com respeito ao ato de matar determinadas populações e grupos sociais racialmente marcados. Essa lógica se enraizou nas colônias, por meio da justificativa da busca pela dita civilidade moderna/colonial defendida por meio da violência e da morte de negros e indígenas.
No enfrentamento à covid-19 não é diferente, uma vez que as necropolíticas se expressam pela ausência do Estado em propor ações que minimizem os impactos do coronavírus nos territórios indígenas. O que se tem é o distanciamento das instituições estatais, em um vazio que lança os povos indígenas a uma nova atualização do projeto genocida moderno/colonial. Esse modo intencional e organizado de produzir a morte vulnerabiliza as realidades indígenas para lidar com o novo vírus. É uma vulnerabilidade, como afirmam Coimbra Júnior e Santos (2000), vivida pelas aldeias por conta da negligência sistemática do acesso aos direitos básicos e de políticas de infraestrutura que não garantem bens fundamentais à vida e ao acesso à saúde.
Rituais, construção de caminhos e redes de cuidados
Apesar do projeto genocida e das vulnerabilidades produzidas pela negligência de direitos, os povos indígenas constroem seus caminhos de enfrentamento à covid-19, na proposta do isolamento das aldeias no contato com não indígenas e na busca pelo fortalecimento das redes de cuidado já presentes em seus territórios. Tais redes de cuidado são partilhadas coletivamente e não defendem a busca da saúde apenas por vias do organismo, mas de pessoas que se relacionam de forma coletiva e que têm, na terra, na natureza e no território a experiência de produção de sua saúde. As práticas de cuidado propostas pelos povos indígenas produzem um modo integralizado do cuidado à vida que não segmenta o cuidar do corpo, o cuidar da natureza, o cuidar do outro, o cuidar de si, o cuidar do espírito e da saúde mental.
Com base nessa compreensão integralizada de saúde preconizadas nos territórios indígenas é que podemos narrar algumas experiências de cuidado da etnia Xukuru-Kariri, em Alagoas, no enfrentamento ao coronavírus e os efeitos dessas práticas para a saúde mental. Quando tivemos a notícia de que o vírus estava chegando no Brasil e no Nordeste, houve um sinal de apreensão, muitas incertezas se apresentaram e o medo de o vírus atingir as aldeias estava no pensamento de muitos indígenas. O medo que pairava era o da morte, mas não da morte individual, tão presente nos discursos dos brancos: era da morte coletiva, do extermínio enquanto povo, já que o medo da morte, enquanto fato cotidiano, é enfrentado diariamente pelos indígenas, que têm suas vidas, famílias, direitos e territórios ameaçados a todo momento pelas forças do Estado, por jagunços e pistoleiros, e pela negligência e negação estrutural de seus direitos básicos.
O medo do extermínio não é uma aflição imaginária, mas uma experiência concreta para os povos indígenas, nestes 520 anos de exploração e violência. Não é a primeira vez que os povos indígenas enfrentam uma pandemia, pois ela se encontra registrada em suas memórias coletivas, desde os primeiros contatos com os brancos, os quais trouxeram a gripe, o sarampo, a varíola (KOPENAWA; ALBERT, 2015).
É na prática do ritual, no encontro com a mata, com os encantados e com as forças ancestrais vivas no território, que a etnia Xukuru-Kariri de Alagoas encontra alternativa para lidar com o medo coletivo, a fim de que o mesmo não se torne pânico e paralisia, no dia a dia das aldeias. Como prática de cura, o ritual traz coragem, esperança, permite o fortalecimento da coletividade e auxilia os moradores a terem calma e cautela, na promoção de formas compartilhadas de cuidado em face da contaminação do vírus. O ritual produz uma fé viva, tornada prática nas relações entre os parentes, no contato diário com a mata, na atenção ao corpo e ao espírito.
A pandemia da covd-19 provocou uma necessidade de ativação nos usos de chás, de banhos com ervas e plantas locais. Essa prática é sempre presente na aldeia, entretanto, com chegada do coronavírus à região, ela foi intensificada. Banhos com ervas são feitos todos os dias para fortalecimento, tanto em crianças como em adultos. Os chás estão sempre na mesa, principalmente os que ajudam a combater dor de garganta e problemas respiratórios. Assim, os conhecimentos das plantas estão muito mais presentes no cotidiano, bem como seu aprendizado entre jovens e crianças.
Diante da possibilidade de adoecimento dos mais velhos, como grupo de risco, a passagem dos conhecimentos tradicionais às crianças e aos mais jovens foi adotada como estratégia coletiva para garantir a permanência dos modos de vida da aldeia. Essa estratégia fortalece as relações geracionais, valorizando não somente os anciãos, mas também as crianças, como protagonistas dos saberes ancestrais.
Tempo
Outro fato de fortalecimento das relações na aldeia foi o maior emprego do tempo, no trabalho na roça. Com a impossibilidade de deslocamento para os centros urbanos, na realização de outras formas de trabalho na cidade ou comércios nas feiras locais, devido ao plano de isolamento social das aldeias, as roças aumentaram. Nesta época do início das chuvas, é comum encontrar as roças, no território indígena, mas este ano, com a permanência de todos na aldeia, as roças se ampliaram entre as casas, quintais e espaços de terra possíveis ao plantio. Essa aproximação com a terra possibilita a afirmação do território como provedor da vida para os indígenas, de sua autonomia e de sua soberania alimentar contra o agronegócio, como proposta do sistema global.
Uma experiência importante para refletir as mudanças geopolíticas em tempos de pandemia foi o deslocamento das pessoas dos grandes centros urbanos para o interior do país, como lugares de maior segurança e possibilidade de produção coletiva. Esse movimento aconteceu entre indígenas Kariri-Xocó de Alagoas. Alguns parentes que viviam em São Paulo retornaram às aldeias, o que foi motivo de muita alegria e festa para o povo. O retorno foi feito com muita cautela, na necessidade dos que regressaram ficarem na mata em quarentena, por duas semanas. A quarentena não foi vivida apenas como precaução ao contágio com o vírus, contudo, foi guiada pelo Pajé, com práticas rituais como forma de entrar em contato com a mata, com os ancestrais, e se purificar da cidade dos brancos.
Mesmo perante o projeto genocida moderno/colonial atualizado pela covid-19 e a negligência sistemática do Estado brasileiro, no direito ao acesso à saúde, os povos indígenas buscam dar respostas de luta e produzem experiências próprias de resistência e enfrentamento a essas situações. É por meio de seus conhecimentos ancestrais, do fortalecimento da vida coletiva e do retorno ao território, como espaços de soberania alimentar e lugar sagrado, que se proveem o alimento, a vida e a espiritualidade, que as aldeias se organizam no combate ao vírus e seus impactos sociopolíticos.
A luta dos povos indígenas contra a covid-19 não é somente um confronto travado contra o vírus, mas é a luta contra um projeto global organizado pelas lógicas de mercado e de Estado, as quais marginalizam seus modos de vida e negam sistematicamente seus direitos.
A experiência da etnia Xukuru-Kariri de Alagoas nos mostra que a promoção da saúde mental, nas aldeias, é uma prática produzida na coletividade junto aos parentes, com suas diversas gerações, com a natureza, no trabalho com a terra e nos rituais junto aos encantados. Quando se pensa em lidar com o medo, o pânico e as ansiedades trazidas pelo vírus, intensificados pela ausência ordenada do Estado brasileiro, de sorte a negar assistência aos povos indígenas, a resposta que é produzida nas aldeias no cuidado à saúde mental não está sobre o indivíduo e sua psique, no entanto, figura nas relações trançadas no dia a dia da vida compartilhada e no fortalecimento das ramas enraizadas no território. Aqui, temos um grande aprendizado: a saúde mental é uma prática de cuidado coletiva.
Referências
ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Elefante, 2016.
COIMBRA JÚNIOR, C. E . A.; SANTOS, R. V. Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Ciências e Saúde Coletiva, v. 5, n. 1, p. 125-132, 2000.
HACKEO CULTURAL. Hackear la pandemia: estrategias narrativas en tiempos de COVID-19. 09 abr. 2020. Disponível em: https://hackeocultural.org/hackearlapandemia/114/ . Acesso em: 05 maio 2020.
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018.
SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: EDUSP, 2008.
Tanawy de Souza Tenório é liderança Xukuru-Kariri. Coordenador da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – região Alagoas-Sergipe [email protected]. Saulo Luders Fernandes é professor de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Unidade Educacional Palmeira dos Índios. Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL [email protected]
Artigo enviado para publicação no ebook “Covid 19 – Centro de Ciências da Saúde a convite do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise, Identidade, Negritude e Sociedade – NEPPINS”, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia