Everest, um negócio lucrativo
No início da década de 1990, a frequência de turistas escalando as encostas do Himalia aumentou radicalmente. A grande maioria dos candidados à subida, em geral alpinistas inexperientes e até mesmo novatos, almeja o topo do mundo por motivações puramente individuais e paga caro para realizar seu desejo
Montanha mais alta do mundo, o Everest se ergue a 8.848 metros de altura, na fronteira entre o Nepal e a China, na cadeia do Himalaia. Em 2007, o guia Ludovic Challeat o escalou pela vertente tibetana. “O Everest não é mais considerado como uma espécie de conquista, consequência de uma longa experiência em grande altura, mas sim como um produto que é consumido. Centenas de sherpas1 continuamente atravessam a montanha, carregando barracas, garrafas de oxigênio, fogareiros, gás, alimentos, edredons…”, afirma. Durante a primavera de 2007, 630 pessoas atingiram seu cume. O número é igual a todas as escaladas realizadas entre 1953 – quando a primeira expedição chegou ao topo – e 1993.
Do Paquistão à Índia, passando pelo Tibete chinês e, é claro, o Nepal, as montanhas do Himalaia nunca atraíram tantas pessoas. Mas, até o final dos anos 1960, os 14 picos com mais de 8 mil metros excitavam apenas a cobiça de uma elite de alpinistas.
Depois do início da década de 1990, a frequência de viagens ao topo da Terra explodiu. As motivações são obviamente individuais para a grande maioria dos candidatos à subida, que parecem ser cada vez menos experientes, quando não novatos. Os problemas geopolíticos do “arco de crise do Himalaia” – guerra civil no Nepal, rebelião tibetana, conflito entre Índia e Paquistão etc. – não afetam a tendência: os himalaistas sempre souberam contornar as zonas instáveis ou proibidas.
De meados do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, “influenciados por uma filosofia de exploração e conquista, num período expansionista e colonialista2”, um punhado de alpinistas, principalmente britânicos, como Albert Mummery, mas também italianos, como o duque dos Abruzos, percorreram, na companhia de cientistas, esses territórios pouco conhecidos. Os grandes picos foram então batizados ou renomeados com nomes ingleses. Aos fins desportivos (tentativas de escalar o Everest, o K2 ou o Nanga Parbat) e científicos se juntaram interesses estratégicos e comerciais, principalmente do Império Britânico.
Em seguida veio “a grande epopeia” do período entre guerras, em que picos de 7 mil metros foram conquistados. O assalto aos 8 mil metros foi levado adiante arduamente, ao preço, às vezes, de tragédias. Os britânicos concentraram seus esforços no Everest, organizando expedições lideradas por militares em 1921, 1922, 1924 e, depois, em 1933, 1935, 1936 e 1938. O império tentava, nesse cume simbólico, reafirmar a sua supremacia militar e econômica, prejudicada pelo conflito anterior.
De fato, naquele período, austríacos, alemães e italianos rivalizavam pela conquista dos Alpes, terreno por excelência dos ingleses, no século XIX. Eles inventaram novas técnicas num ambiente cada vez mais nacionalista, amplificado com o advento dos regimes nazista e fascista. “O Duce e o Führer distribuíram medalhas e prêmios para os alpinistas, descritos como representantes das qualidades da nação e do seu povo”, recorda o sociólogo Michel Raspaud. Assim, a competição patriótica se deslocou para os 8 mil metros. Os alemães tentaram o Kangchenjunga, em 1929 e 1931, antes de se voltarem para o Nanga Parbat, no Paquistão, em 1932 e, novamente, em 1934 e 1937, com apoio total do Reich. Os britânicos se inquietavam: “A escalada do Everest interessa à nação e ao império. A situação atual é clara: estamos começando a cair no ridículo. Os alemães e americanos já têm atacado o Everest”, afirmou o Morning Post de 17 de outubro de 1936, dois meses depois dos Jogos Olímpicos de Berlim.
Após a Segunda Guerra Mundial, começou “a idade de ouro”, em que os 14 picos com mais de 8 mil metros finalmente foram conquistados, entre 1950 e 1964. Todas as expedições tinham caráter fortemente patriótico, mas poucas com organização e disciplina militares. Em busca de glória, os franceses deram o primeiro passo em 1950, no Annapurna, seguidos, em 1953, pelos britânicos e alemães, aliados aos austríacos, cada um atrás de sua respectiva obsessão – o Everest e o Nanga Parbat. Cada sucesso provocava lampejos de orgulho nacional, como na Grã-Bretanha, em 1953, e na Itália, em 1954, após a “vitória” sobre o K2.
Os custos para tanto sucesso eram altos: além das equipes de escaladores, havia os tanques de oxigênio, quilômetros de cordas fixas, uma pletora de carregadores de altura, sem esquecer o recurso de anfetaminas. Cada país queria “seu” primeiro “8 mil”. Quase todos eram bem-sucedidos, numa região cuja geopolítica estava profundamente alterada desde 1949: a Índia e o Paquistão foram criados, o Nepal se abriu a estrangeiros, enquanto o Tibete foi invadido pela China, que fechou suas fronteiras.
Índia, Japão e China entraram, por sua vez, na corrida para os “8 mil”. Os japoneses se encarregaram do Manaslu. Os chineses, que haviam proibido qualquer acesso à vertente norte do Everest, lugar das tentativas britânicas no período entre guerras, anunciaram a primeira subida em 1960, graças a uma expedição com centenas de alpinistas.
Acesso negado
Outras experiências semelhantes foram organizadas, principalmente pelos indianos e americanos, cada uma com mais de 70 alpinistas. Esse período terminou com a primeira expedição ao Shisha Pangma, pelos chineses, em 1964. Até o final da década, com o aumento das tensões entre China, Nepal, Paquistão e Índia, o acesso de estrangeiros aos picos foi negado.
Entre 1970 e 1980 teve início um novo período, descrito como “transitório” pela jornalista americana Elizabeth Hawley.3 A partir de então, cerca de 300 a 600 himalaistas começaram a se dirigir para a região todos os anos, especialmente graças ao italiano Reinhold Messner. Em 1975, ele abriu, com o austríaco Peter Habeler, uma nova rota para o Gasherbrum I, numa tentativa de quatro dias, sem oxigênio engarrafado, nem cordas fixas, sem sherpas e com uma só barraca. O estilo conhecido como “alpino” se tornava o novo padrão de desempenho no Himalaia: uma montanha e uma corda autônoma, leve e rápida, como nos Alpes.
Em 1978, Messner abriu, em estilo alpino e numa escalada solo, uma nova subida para o Nanga Parbat (8.125 metros), logo depois de realizar, com Peter Habeler, a tonitruante primeira subida do Everest sem garrafa de oxigênio. Entre 1970 e 1986, Messner tornou-se o primeiro a escalar os “8 mil” nessas mesmas condições.
Esse novo tipo de himalaismo explodiu a partir de 1990, com a criação de várias agências com guias, principalmente anglo-saxônicos, especializados na subida do Everest e do Cho Oyu, mas também da bela cimeira nepalesa de Ama Dablam (6.856 metros). A cada ano, a área recebe entre mil e 3 mil himalaistas. Além do efeito midiático do cinquentenário das primeiras ascensões a esses picos, vemos também as consequências da concorrência turística a que se entregam autoridades chinesas, nepalesas e paquistanesas, com a redução do custo das licenças para a subida e desenvolvimento de infraestruturas poderosas – hoje chegamos por estrada ao acampamento de base chinês do monte Everest, e seu equivalente nepalês é servido por helicóptero.
Os novos himalaistas são divididos em dois grupos: clientes das expedições comerciais, acompanhados por guias e suas equipes de sherpas, cada um pagando entre 30 mil e 40 mil euros pelo Everest, e a categoria dos “sem guias”, aficionados mais ou menos esclarecidos. Estes últimos se organizam entre eles para compartilhar o custo das licenças e a logística do acampamento base, subcontratando agências locais e, às vezes, empregando alguns carregadores. No Everest, por exemplo, entre 2000 e 2006, dois himalaistas em cada três pertenciam a esta categoria: um total de 1.800 alpinistas veio por meio de expedições “privadas”, empregando 1.160 sherpas, contra 938 clientes das expedições comerciais, acompanhados por seus 996 sherpas e guias.4
Em 2008, 170 himalaistas desafiaram o Gasherbrum II (G2), divididos em 17 expedições comerciais e privadas. Entre eles, Paulo Roxo e Daniela Teixeira, alpinistas portugueses com pouca experiência no Himalaia. Voltaram muito amargurados do seu sonho de atingir os 8 mil metros: “As cordas fixas são supostamente para garantir a segurança nas seções mais verticais, mas muitas vezes elas asseguram que pessoas sem capacidade técnica cheguem ao cume”. Os portugueses alfinetam esses himalaistas pouco qualificados: “Constatamos erros graves e estratégias que poderiam muito facilmente ter conduzido a acidentes fatais.
Tudo isso é fruto da inexperiência. Algumas pessoas escalam apenas para confortar seus egos, em busca de glória, e não pelo verdadeiro espírito do montanhismo”.
Vindo aos milhares do mundo inteiro, principalmente dos países desenvolvidos, esses homens e mulheres enfrentam a grande altitude, com um custo alto, tanto financeiro como físico, num punhado de picos – sempre os mesmos – a começar com o Everest. A expedição ao Himalaia oferece a possibilidade de entrar num espaço mítico, aquele das histórias dos pioneiros e dos heróis: “O aumento acelerado, desde a década de 1980, do culto do desempenho e de um individualismo exacerbado nos submete a um tipo de imposição social, uma pressão à autorrealização. As pessoas buscam se tornar heróis ordinários nas expedições. O himalaismo oferece os meios para superar seus limites e responder ao espírito de aventura”, analisa Eric Boutroy, autor de uma tese de antropologia sobre o himalaismo.5 Após seu retorno do Himalaia, o “eleito” tem grandes chances de capitalizar sua epopeia, seja simbolicamente ou financeiramente com conferências, livros, entrevistas etc.
Os franceses Christian Trommsdorff, Yannick Graziani e Patrick Wagnon são guias e formam uma equipe de ponta do himalaismo, conhecida como “Cordame TGW”. Tendo conseguido vários “7 mil metros”, no mais puro estilo alpino, eles são exemplo do afluxo da elite sobre as rotas normais dos “8 mil”: agora, é nos cumes técnicos de 6 mil a 7 mil metros de altura, com a indiferença da mídia, que se pratica a escalada no mais alto nível. Os “8 mil” já não são cortejados pelos grandes alpinistas, a não ser na abertura de novas rotas ou no inverno, como foi o caso do francês Jean-Christophe Lafaille, que perdeu a vida no outono de 2005.
Com o mesmo espírito, a “TGW” queria, durante o verão de 2008, encontrar outro caminho para o K2. Demoraram certo tempo para se aclimatar a partir do acampamento base e, nesse período, observaram na montanha cerca de 60 candidatos à escalada, utilizando o método normal. Nenhuma era expedição comercial liderada por guias, mas havia muitos aventureiros profissionais, com patrocínios e divulgação nos meios de comunicação, vindos da Holanda, Estados Unidos, Coreia do Sul e Sérvia. Aqui, como em todo o sopé dos “8 mil”, as pessoas são apresentadas e definidas exclusivamente pelo número de montanhas desse tipo que tentaram escalar ou conquistaram. O Graal ainda é a escalada dos catorze “8 mil”, um objetivo já alcançado por 16 homens, dos quais 8 sem oxigênio, mas que continua distante para a maioria. Existem 70 pessoas que possuem de 7 a 13 “8 mil” e cada nova subida de alguns deles desperta nos demais o espírito competitivo. As mulheres também despertam interesse e são monitoradas de perto: até hoje, cinco delas conseguiram conquistar entre 9 e 12 dos “8 mil”.
Após a experiência no K2, a “TGW” conclui: “Trata-se de um novo esporte: o ‘oitomilismo’”. Trommsdorff resume: “Com uma boa condição física e algumas noções de grampeagem, um pouco de oxigênio e um jumar (autotrava que permite o deslizamento em cordas fixas), praticamente qualquer um pode subir um dos ‘8 mil’! Isso não tem nada a ver com alpinismo: você não escala, mas se puxa pelas cordas.
Não se tem nenhuma autonomia: não se busca o próprio itinerário, não se determina mais o próprio trabalho de progresso. Sem respeito pela montanha, este himalaismo parece um estupro coletivo”.
Já Wagnon observa que “os ‘oitomilistas’ chegam ao pico isoladamente ou em grupos, armados com seu jumar e os mais sofisticados meios de comunicação. O apoio externo que utilizam vai de cordas fixas – colocadas por eles ou por outras expedições pagas para tal ‘serviço’ – a todos os meios de doping, em primeiro lugar com oxigênio”. Para ele, “um produto que permite o progresso a 8 mil metros como se faria a 7 mil ou 6 mil metros é um dopante, o único reconhecido pelos ‘oitomilistas’”. Sabemos também que em algumas barracas as farmácias estão bem abastecidas: corticoides e Diamox, são apenas os mais comuns.
Quando a “Cordame TGW” deixou, no fim de julho do ano passado, o acampamento base, eletrizada pela perspectiva de atingir o pico, Trommsdorff analisa: “O K2 é uma montanha dura, a qual apenas os aficionados totalmente autônomos e experientes deveriam ter como objetivo; 80% dos escaladores que encontramos pelo caminho não têm nada a fazer aqui: sem a logística coletiva, carregadores e cordas fixas, eles mal podem ficar de pé!”.
Não se trata de elitismo: os três franceses se dizem preocupados. O futuro, infelizmente, lhes deu razão. Entre 1º e 2 de agosto, sete dos “oitomilistas” e quatro de seus ajudantes paquistaneses e nepaleses morreram, uns após os outros, perto do cume: quedas, exaustão, colapso de blocos de gelo. O clima estava perfeito, mas eles se movimentaram de forma muito lenta, talvez em consequência de estarem em grupo. Eles não respeitaram o timing, sempre imperativo, e tiveram que descer à noite, com o oxigênio se esgotando e, principalmente, sem cordas fixas, o que os deixou demasiadamente vulneráveis – no final da tarde, uma avalanche de gelo havia carregado parte das cordas que tinham fixado.
Como muitos adeptos ocidentais, paquistaneses ou nepaleses do himalaismo, Patrick Wagnon alerta: “A prática do ‘oitomilismo’ parece ganhar, a cada dia, mais e mais seguidores. As questões econômicas favorecem esse desenvolvimento, a despeito das considerações ambientais e de segurança. Quase todas as expedições nos ‘8 mil’ são, em sua maioria, patrocinadas e acompanhadas pela mídia. Uma boa parte dos ‘oitomilistas’ é formada por profissionais da aventura, alegando valores do montanhismo, em grande parte esquecidos por eles mesmos. É verdade que o cume é sempre a meta, como no montanhismo, mas se perdeu a própria essência dessa atividade: como percorrer o caminho que leva ao cume6”.
Paul Keller, pastor e guia pioneiro do himalaismo de grande altura, recorda: “O alpinista é aquele que pode combinar técnica competente com consciência do risco e amor pela montanha, feito de familiaridade e respeito”. Ele denuncia os himalaistas que fizeram dos cumes “um valor de sua paixão por si mesmos”, esquecendo completamente a natureza7 Nada que traumatize, visivelmente, os atores e promotores do “oitomilismo”. Durante a semana de 18 a 23 de maio de 2009, centenas de pessoas confluíram para o pico do Everest, pelas suas duas vertentes. O site mounteverest.net, agitado centro da blogosfera “oitomilista”, anunciava: “A agitação em torno do Everest parece preocupar apenas aos veteranos do Himalaia e os ambientalistas. Todos os outros querem estar lá. ‘Quando é a próxima escalada ao Everest?’, pedem os leitores por e-mail. ‘Diga-me logo, estou começando a treinar!’ Nós não podemos parar o futuro”.
*François Carrel é jornalista.