“Ex-presidiário” como ofensa e o uso da religião na política
Numa democracia, opositores políticos devem ser vistos apenas como adversários, detentores de cidadania. Por isso, a instigação popularesca que apela emocionalmente para nomeação de um inimigo público é preocupante
Pode-se dizer que a condenação mais famosa da história foi a pena de morte por crucificação imposta a Jesus Cristo. Essa perene figura bíblica é influência determinante em nossa sociedade, como notório. No entanto, emprestando as palavras do poeta Guerra Junqueiro, há muitos “funâmbulos da Cruz”, que andam por aí “explorando o corpo de Jesus”. Na política brasileira, essa exploração vê-se na quantidade acentuada de congressistas que utilizam o púlpito e o sacerdócio para fins eleitoreiros.
Apesar da relevância do cristianismo, constata-se uma interpretação manipulada de seu livro sagrado, evidenciada no uso da retórica religiosa por candidatos à eleição. Atribuem-se a meros adversários políticos a condição de inimigos públicos, seja associando-os a religiões diversas, sobretudo de matrizes africanas e indígenas, seja demonizando-os em ataques pessoais. Isso se observa, por exemplo, na estigmatização do vocábulo “ex-presidiário”, reiterada pelo atual presidente, ora candidato, nos debates eleitorais.
O renomado jurista argentino Raúl Zaffaroni estudou a concepção do inimigo no direito penal. Para ele, inimigo é o indivíduo punido em razão de uma presumida periculosidade. A essência do tratamento penal diferenciado ao inimigo é a negação de sua condição de pessoa. Confunde-se o momento da guerra com o da política e nega-se a esses indivíduos direitos e garantias fundamentais, como afirma o autor.
O poder público, na fabricação de um inimigo, utiliza-se daquilo que os alemães chamaram de völkisch; propaganda que alimenta e reforça preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo da vez. É através do medo que se propaga o fenômeno do inimigo público dentro da sociedade.
Portanto, a adesão popular ao ódio contra um inimigo advém da eficácia da propaganda política do medo. O medo, a propósito, é instrumento secular de controle do fundamentalismo religioso. Por isso, mostra-se conveniente o uso da religião como método para disseminar a ideia do inimigo, com base no maniqueísmo bíblico do bem e mal, céu e inferno, Deus e Diabo, amigo e inimigo.
Durante toda a história, o poder punitivo discriminou seres humanos, tratando como não-pessoas aqueles considerados perigosos, conforme difundido pela propaganda política. Na Europa do século passado, a ideologia da periculosidade tinha caráter biologista. Era, na verdade, puro racismo. Para os nazistas, os inimigos eram os não-arianos, considerados subumanos.
Nas ditaduras militares da América Latina, por intervenção estadunidense, o inimigo era a oposição social e progressista, sob pretexto da Guerra Fria, que abastecia o medo do comunismo.
Na América Latina da atualidade, conforme argumenta Zaffaroni, todos os prisioneiros e suspeitos de crimes são tratados como inimigos e o confinamento cautelar é a medida de contenção. Esses indivíduos, também chamados “indesejáveis”, são membros de classes subalternas (pobres, negros e conhecidas minorias), excluídos socialmente, que continuam sendo eliminados por meio de medidas administrativas, execuções policiais, penas altas, prisões insalubres e desumanas, com alta taxa de mortalidade. Mais da metade dos encarcerados no continente são presos preventivos, que não foram condenados formalmente. Esse sistema penal cautelar abarca imensa maioria da criminalização por infrações de média e pequena gravidade. Verifica-se uma inversão do sistema penal, no qual há a presunção de periculosidade, negando vigência à garantia da presunção de inocência. Vê-se espaço aberto à punição injusta de muitos anônimos, tantos Zé-Ninguéns, abandonados à própria sorte e sem direito à reparação. E, mesmo em caso de culpa, a punição extrapola o limite da pena imposta, pois acompanha toda a vida do indivíduo que respondeu criminalmente, quando sua ressocialização é impossibilitada pelo estigma social e pela negação de emprego.
Diante desse contexto – e de outras considerações as quais não se reporta agora – a alcunha de “ex-presidiário” tem uma grande capacidade de desmoralização, principalmente quando empregada contra quem está posto mais à esquerda no espectro político, em razão da profunda desigualdade social que nos divide, somada à sobrevivência acrítica da retórica militarista que permeou o golpe de 1964 no Brasil. Ou seja, o estereótipo da esquerda, alçada à condição de inimigo principalmente durante a ditadura militar, também coincide com a do subversivo e a do criminoso.
O inimigo de esquerda ainda permeia o senso comum no Brasil e é alvo recorrente em palanques, a reviver o medo da velha – e alucinada – ameaça comunista. Hoje, essa fobia pode ser potencializada pelas mídias sociais e pela fácil propagação de fake news. Isso pode reverberar em violência nas ruas. Não se pode olvidar que há, também, uma nova onda mundial de conservadorismo e ascensão da extrema-direita internacional.
Além disso, a associação da figura do ex-presidiário ou do criminoso com a do pecador e a de Satã é facilmente possibilitada pelo discurso religioso. Por muito tempo, a legitimidade do Estado se concebia pela aceitação do Rei como representante direto de Deus, de modo que a desobediência ao monarca não era só entendida como ilícita, mas também como sacrilégio. Crime e pecado eram a mesma coisa na Idade Média. Essas circunstâncias não se desprenderam completamente do inconsciente coletivo.
Quando se recorda a história de vida atribuída a Jesus Cristo, percebe-se a hipocrisia de políticos cristãos que adotaram o bordão “ex-presidiário” como ofensa.
Nem é preciso ressaltar o papel do direito penal de afastar do convívio social indivíduos que tenham efetivamente cometido crimes, expondo à risco a sociedade. Por outro lado, é importante ter-se consciência da possibilidade de instrumentalização do poder punitivo para perseguição de pessoas nomeadas como inimigos, como ocorreu em diversos momentos da história, inclusive recente, e da decorrente probabilidade de perseguição de inocentes.
Com isso, entende-se que a ideologia do inimigo é própria do autoritarismo.
A repetição da alcunha de ex-presidiário, somada à categorização do opositor como um não-cristão e como uma ameaça comunista, demonstra a tentativa de criação de um inimigo público.
É próprio de potenciais autocratas tentarem criar certa caricatura de seus rivais, atribuindo-lhes periculosidade abstrata, com base em preconceitos. Por isso, é de se esperar que um candidato entusiasta dos tempos sombrios do seu país tente se utilizar da religião para demonizar a oposição.
Não é à toa que o slogan “Deus, Pátria, Família” foi criado pelo fascismo na década de 1930. E que no Brasil, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, consistente em manifestações públicas ocorridas entre março e junho de 1964, impulsionou o golpe militar, em resposta à suposta ameaça comunista representada pelo então presidente João Goulart.
Numa democracia, opositores políticos devem ser vistos apenas como adversários, detentores de cidadania. Por isso, a instigação popularesca que apela emocionalmente para nomeação de um inimigo público é preocupante. Deve ser compreendida como alerta para identificação de discurso autoritário, que reivindica, na verdade, a eliminação ou neutralização social de antagonismos.
O assunto seria prolongado demasiadamente se se trouxesse à baila os atuais ataques ao Poder Judiciário, ao Supremo Tribunal Federal, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao sistema eleitoral, à urna eletrônica, às pesquisas, ao jornalismo, à cultura, à ciência, às máscaras, à vacina, ao SUS, às universidades, aos índios, ao meio ambiente, e a tantos inimigos de ocasião, na constante retórica conspiratória que busca fragilizar as instituições democráticas e descredibilizar o raciocínio crítico e intelectual.
Enfim, que se coloquem os pingos nos is: o choro é livre, o Estado é laico, a democracia prevalece. Na linha do paradoxo da intolerância de Karl Popper, não devemos tolerar os intolerantes. O único legítimo inimigo público, o verdadeiro traidor da pátria, só pode ser o traidor da Constituição Federal, aquele que exalta o caminho maldito da ditadura militar, como prenunciou Ulysses Guimarães na constituinte de 1988.
Lilian Assumpção Santos é mestranda em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora no grupo de pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e graduada em Direito pela mesma instituição.