Excesso de imagens
Erro não é um artista maldito: inúmeras exposições e retrospectivas de sua obra já rodaram o mundo. Contudo, ele ainda é desconhecido para o grande público e poucos notam a amplitude, a diversidade e a profusão desmedidas de sua criação, em que a subversão se dá pela desordem e pela exasperação
Eis uma imagem de Erro: um “interior”, como aparece em centenas de revistas de decoração, representativo do american way of life dos anos 1960. Porém, pela janela, irrompe um grupo de guerrilheiros do Terceiro Mundo, desenhados no estilo de cartazes chineses da época (American interior no1, 1968). Seria um arrombamento – no conforto plácido dessa sociedade de consumo da qual se alimentava, então, a Pop arte – por parte de um “recalcado” político? Tratamento irônico do “espectro” que assombra a boa consciência do imperialismo dominante? Montagem dialética de elementos heterogêneos que remetem a Lautréamont ou às colagens surrealistas (Max Ernst) que suscitam antes um poderoso efeito de incongruência? Ou ainda criação, para além do sentido imediato da imagem, de jogos de conotativos sutis? Tudo isso ao mesmo tempo.
Este quadro é um dos mais conhecidos de Erro. Pouca gente, no entanto, imagina a amplitude da obra à qual está relacionado – sua prodigiosa diversidade, luxúria, abundância e desmedida. Pois Erro é também, sem dúvida, o artista mais prolífico que existiu depois de Picasso…
Erro, evidentemente, é um pseudônimo. Gudmundur Gudmundsson nasceu em 1932, num vilarejo da Islândia. Desenvolveu um gosto precoce pelo desenho e estudou na Academia de Belas Artes de Oslo, antes de transitar pela Espanha. Mas foi em Florença que ele encontrou um “herdeiro dissidente” do surrealismo, o poeta e artista plástico Jean-Jacques Lebel, que se tornaria seu melhor amigo para o resto da vida. Suas primeiras exposições e participações em atividades coletivas (os “antiprocessos”) reuniam jovens que, no contexto das guerras coloniais do início dos anos 1960, desafiavam os poderes estabelecidos, inclusive o cultural, ao reivindicar a insubordinação “absoluta” da arte e demonstrar solidariedade com os movimentos de emancipação que subvertiam a ordem estabelecida.1 Em seguida, Erro se instalou em Paris, onde vive e trabalha desde então, em estadias entrecortadas por viagens por todo mundo, onde busca abundantes referências de imagens. No início, sua pintura condensava influências antigas (Jerônimo Bosch) e modernas (Roberto Matta): afrescos, multidões oníricas ou fantásticas, copulação de formas animais e mecânicas.
Em 1964, uma viagem a Nova York determinou uma virada decisiva em sua carreira: a descoberta de um fluxo de imagens sem precedentes impulsionadas pela cultura de massa – quadrinhos, filmes de animação e publicidade. Elas se tornariam o material quase exclusivo de sua arte. A partir daí, milhares de obras nasceram do confronto e da reunião de imagens de todas as proveniências, numa orgia visual ilimitada: o choque de registros (como a Pop arte americana e os cartazes de propaganda soviética e chinesa, ou a arte dos museus e dos quadrinhos); a invenção de imensos “retratos” em torno de uma figura central (como o poeta Vladimir Maiakovski, os compositores Igor Stravinsky e Arnold Schönberg, os pintores Pablo Picasso e Jackson Pollok); toda uma hibridização de colagens, paródias da iconografia com a qual somos bombardeados. É a contraposição exata da sociedade do espetáculo.
Erro, em suma, destaca o seguinte: vivemos atualmente num mundo saturado de imagens no qual estamos completamente submersos e onde constantemente a “realidade” é suplantada. Não há alternativa, para ele, senão tratar o fenômeno não pela falta, mas pelo excesso: isso significa transbordá-lo, levá-lo ao paradoxismo, introduzir mutações genéticas no programa visual imposto, fazer com que prolifere, delire, desregule.
Um exemplo é a série Chinesa (de 1972 a 1976), na qual as imagens da propaganda comunista (a figura de Mao, por vezes rodeado de representações estereotipadas de trabalhadores, camponeses, pioneiros) são difundidas em decorações urbanas clichês ocidentais, como o Arco do Triunfo de Paris e os arranha-céus de Nova York. É ao mesmo tempo provocação política, ironia de um fantasma reacionário e deslocamento poético, invocando certo “estranhamento inquietante” do universo onírico.
O mesmo ocorreu mais recentemente com as Amazonas ou Femmes fatales, desenvolvidas a partir de 1995. Trata-se de guerreiras de quadrinhos ou de desenhos animados que contrastam com citações de Fernand Léger, confrontando a Pop arte de hoje e o imaginário “popular” dos anos 1930.
Ou ainda cenas obscenas inspiradas na grande arte erótica do Oriente, intrincadas a imagens de guerra: é a aproximação contrastada entre a violência coletiva e aquela íntima ou orgânica.
Em algumas ocasiões, Erro foi enquadrado em grupos ou “escolas” artísticas, mas sempre em detrimento daquilo que lhe confere irredutível singularidade. O que ele tem em comum com os artistas franceses da “figuração narrativa”? Estes parecem planos, estreitos, se comparados à fantasia, energia e abundância de Erro. Quanto à Pop arte americana, ele compartilha da premissa de que é necessário responder à cultura de massa. No entanto, o que na maior parte dos artistas americanos pode ser uma aceitação dócil dessa condição social, em Erro suscitará um furor profanador: é como se tomasse emprestadas as armas da subcultura americanizada para voltá-las contra essa própria cultura.
É preciso evocar, também, seus quadros cumulativos (a série Scapes), nos quais formas comprimidas terminam por se “desrealizar”, fugindo de seu destino figurativo. Ou ainda seus afrescos políticos, que respondem a um acontecimento preciso e formam imagens referentes entre si: por exemplo, A renascença do nazismo (1977), Irlanda do Norte (1977), Allende (1977), O petróleo (1980), Os maloinos (1982) ou, mais recentemente, em 2003, God bless Irak (réplica que joga com a expressão “Deus abençoe a América”, utilizada por George W. Bush ao iniciar sua desastrosa operação militar no Oriente Médio. Erro não descarta o recurso da caricatura e da foto, flerta com a “pintura da História”, mas ao mesmo tempo o faz sem que sua arte seja reduzida a uma “mensagem”. E se há mensagem, ela transborda numa profusão visual, numa magistral dinâmica que ordena a reunião de imagens projetando as piores inconveniências. Erro compreendeu que toda guerra, hoje, se duplica em uma guerra de imagens, transformada em um dos elementos ativos do conflito em si. É aí que a subversão se faz necessária, por exasperação e desordem.
A propósito da reprodutibilidade técnica das obras de arte, Walter Benjamin diagnosticou que não só a difusão de imagens seria afetada, mas também seu status e compreensão. As obras de Erro fazem dessa “reprodutibilidade” seu próprio material. Assim, ele acredita que muitos de seus quadros podem engendrar obras derivadas, estampas ou gravuras impressas em múltiplos exemplares e financeiramente acessíveis a um maior número de pessoas. Se Erro é um criador eminentemente político, não é apenas pela temática explícita de sua obra, mas porque ao favorecer a democratização de sua arte, desafia e desestabiliza o que é, para a maioria dos artistas, o preceito mais implacável: a lei do mercado.
*Guy Scarpetta é escritor e autor do romance La Guimard, Paris, Gallimard, 2008, entre outros.