Explorando os limites do ressentimento e do desamparo: uma conversa com Sumaya Lima sobre “As Sementes que o Fogo Germina”
Em seu livro de estreia, escritora paulistana traz contos com personagens que enfrentam as contradições da existência frente à situações desconcertantes
Em seu livro de estreia, “As sementes que o fogo germina” , a autora Sumaya Lima traz contos que retratam temas densos e incômodos, frequentemente mantidos em silêncio. Publicado pela Mondru Editora, a obra lança luz sobre a solidão e o abandono, o bullying e as relações abusivas, em tom irônico e lírico.

Para além de narrar eventos, o livro revela o impacto das frustrações e das emoções destrutivas nas situações cotidianas, incluindo o próprio ato de criar literatura, sem nunca fornecer respostas definitivas.
Sumaya Lima é paulistana, formada em Letras pela USP, e atua há mais de 25 anos com edição, preparação de originais e revisão de textos. Devota da poesia, somente em 2020 lançou-se à escrita de prosa de ficção, dando início aos textos que depois seriam publicados em seu livro de estreia.

Confira uma entrevista completa com a autora:
O título As sementes que o fogo germina sugere a ideia de transformação e resiliência. Como essa metáfora se relaciona com os contos do livro?
Apesar dessa boa sugestão, a escolha do título não teve muito a ver com a ideia de resiliência, mas sim com a eclosão inesperada de algo adormecido, guardado longe dos olhos. Acho que as personagens do livro se movem e tomam decisões a partir de um ou mais elementos externos que agem sobre suas emoções não manifestas, por vezes desconhecidas de tão profundas. Até onde sabemos, há muita coisa viva em estado latente que aguarda somente as condições ideais de temperatura e pressão para vir à tona e se dar a conhecer.
Por que você escolheu abordar temas densos e desafiadores como a solidão senil, o bullying na infância, as relações abusivas e a busca da imagem perfeita nas suas histórias?
Escolhi abordar esses temas porque acho que a literatura, como todas as artes, não deve se furtar à exploração de nenhum aspecto da condição humana, por mais sombrio que seja. A protagonista de “Glória”, por exemplo, um dos contos do livro, diz que o real deve ser encarado com uma marreta. Para mim, uma das formas de lidar com o indizível na vida é estilhaçá-lo, olhar para seus fragmentos e, quem sabe, torná-lo material para a criação ficcional.
E por que escolher o formato de contos para destrinchar esses temas?
Eu vinha estudando e praticando a escrita de narrativas breves em oficina quando comecei a pensar detidamente nessa espécie de “consenso” sobre o que deve ser mantido em segredo nas famílias, nas escolas, na vida pública e nas relações sociais como um todo. Logo, me vieram ideias e referências de narrativas que revelam suas camadas sem alarde, sem profusão de informações – e que, portanto, precisavam de olhares e ouvidos mais atentos ao não dito, ao não manifesto, até ao que está fora do texto. Crianças sofrem abuso sexual por anos sem conseguir dizer a ninguém, meninas e mulheres não expõem as grandes feridas abertas em seus corpos, assim como pessoas mais velhas se deprimem e se calam diante do abandono. Apesar das mudanças em curso, há assuntos ainda muito afastados do debate público sério, as situações mais graves e urgentes são contidas, sufocadas, ou não se destapam nunca por completo, então, por semelhança, a forma do conto me serviu bem para as histórias.
Muitos de seus contos tratam de experiências e emoções intensas. Você se inspira em histórias reais, em suas próprias vivências, ou prefere partir de uma abordagem puramente ficcional?
Acho que de tudo um pouco. Não dá para passar ilesa a tantas histórias – lidas e ouvidas, reais ou não, minhas ou não – e aos ânimos que me tomam em função delas. Trabalho há mais de duas décadas com movimentos sociais e, sem dúvida, dali, de tantas situações delicadas que já presenciei, os sentimentos me convulsionam e perturbam. O próprio ato da escrita é um gerador de conflitos para mim, uma agitação. Talvez por isso, descrever o pensamento de uma personagem por meio de seus gestos e suas ações, dar mais atenção ao que o corpo revela de uma história, seja quase uma obsessão nesses textos.
Você tem uma longa carreira relacionada na área de Letras, mas quando começou a produzir os textos?
Tenho intimidade com as palavras faz bastante tempo, mas só dei início à escrita desses textos em 2020, nas oficinas online do escritor e professor Tiago Velasco. Por meio dele, fui apresentada a obras fora do cânone que não se conformam com os ditames de gênero, produzem textos híbridos e se valem de pressupostos estéticos que me abriram para novas possibilidades com a leitura, inclusive. Mais tarde, passei pela oficina do João Silvério Trevisan também, e fui me autorizando a criar. Houve o resgate de recursos que antes eu destinava somente à leitura crítica, então me apropriei deles para mais uma função. E foi essencial ler, comentar e receber comentários de colegas durante esses encontros. Nos grupos, mais do que ser lida, percebo como dedicar minha atenção para outras escritas em formação e escutar de forma atenta o que se diz ou elabora a partir de um novo texto são imperativos para escrever mais e melhor.
E como foi se arriscar na escrita? Com que gênero você começou e como essa experiência ajudou a construir o livro?
A minha experiência como leitora vem de muitos anos, mas na escrita eu só me arriscava na poesia (centenas de poemas permanecem engavetados, talvez nunca saiam dessa condição). Ao experimentar a prosa de ficção, especialmente os textos breves, fui imediatamente capturada, e assim continuei nos encontros de literatura, nos estudos de teoria e crítica, na leitura incondicional para me aprimorar e não abandonar a escrita. No início de 2023, ainda sob um título diferente, encaminhei o original à Mondru Editora, que se interessou em publicar o livro. Antes de enviar a versão final, ainda revisei e reescrevi a maior parte dos contos. No fim de 2024, finalmente chegaram As sementes que o fogo germina.
Das suas leituras, quais são as suas preferidas? Que autores te marcaram?
As marcas se dão em fases diferentes da vida. Na infância e começo da adolescência, eram as histórias de suspense e mistério da Coleção Vaga-Lume, as revistas da Turma da Mônica, depois as HQs de super-heróis. Mais tarde, sem as leituras obrigatórias do Ensino Médio, eu não teria sido apresentada às ambiguidades deliciosas de Machado, às flutuações de Clarice e ao olhar subversivo de Guimarães Rosa, por exemplo, que me sequestraram logo de cara, não pude evitar. A admiração por Lygia, Raduan, Hilda e Graciliano veio mais tarde, assim como a descoberta de mais autores portugueses que seriam determinantes: Maria Gabriela Llansol, Saramago, Herberto Helder, Luís Miguel Nava, Vergílio Ferreira, Alexandre O’Neill, Teresa Horta, Cruz e Souza, Lobo Antunes, tantos e tantas. Sempre me diverti com Dostoiévski e Gógol. Tem Marguerite Duras, e dela não escapo nunca. Do Borges, eu já sabia: sempre me encantei com o Borges poeta e contista, mas a virada para a literatura latino-americana mesmo se deu a partir de Cortázar. A mexicana Margo Glantz e a argentina Silvina Ocampo, que depois se tornaram imprescindíveis, conheci há menos de dez anos.
E quais autores e artistas mais te influenciaram na escrita do As sementes que o fogo germina?
Para este livro, me embrenhei em Roland Barthes, Henri Bergson, Tatsumi Hijikata, Antonin Artaud, George Bataille e Maurice Blanchot – sobre linguagem, corpo e literatura; na música, The Platters, Simon & Garfunkel, Cartola, Clara Nunes, Shel Silverstein; os filmes Dolls; Uma mulher sob influência; A menina santa; A mosca; Persona; O beijo da mulher aranha; Close, O brilho eterno de uma mente sem lembranças e Noites de Cabíria; na literatura, Machado de Assis, Hilda Hilst, Raduan Nassar, Lygia Fagundes Telles, Yokio Mishima, Maria Gabriela Llansol, Kenzaburo Oe, Marguerite Duras, Yasunari Kawabata e Jorge Luís Borges. De forma menos consciente, deve haver ainda muitos. O livro foi construído com todo o meu repertório de leituras, incluindo a poesia, claro, mas principalmente pelos filmes a que assisti e minhas demais experiências com as artes visuais.
Então, podemos dizer que você é uma grande amante de cinema, certo? Você poderia contar um pouco sobre esse amor pela sétima arte?
Para mim, antes da literatura, veio o cinema. Desde muito pequena sou fascinada por filmes, muito atenta ao som e à escolha da trilha sonora, aos detalhes dos objetos, às expressões faciais dos personagens. Claro que lá no começo eu não sabia nomear os alvos da minha atenção, somente hoje percebo como meu interesse pela forma e a estética vieram daí. E gosto de todos os gêneros. Aos westerns e clássicos japoneses, eu assistia na televisão de casa com meu pai, boa parte do meu repertório veio por influência dele. A gente não concordava no gosto por comédias clássicas e dramas como E o vento levou, essa nunca foi minha praia, mas para os grandes épicos como Quo Vadis e Lawrence da Arábia, por exemplo, lá estávamos nós, a postos, o mesmo para os filmes de artes marciais. Com o tempo, os alvos da minha apreciação foram migrando, depois retornavam. John Cassavetes, David Lynch, Hitchcock, Won Kar-Wai, Ozu, Kubrick, Abbas Kiarostami, Carlos Saura, Scorsese, Takeshi Kitano, Poitier, Coppola e Spike Lee. Adoro os filmes da Nadine Labaki, do Villeneuve. A incursão no cinema latino-americano foi um caminho sem volta: Claudia Llosa, Patricio Guzmán, Lucrecia Martel e Fabián Bielinsky. No Brasil, Suzana Amaral, Ana Muylaert, Sergio Bianchi e Eduardo Coutinho, todos imprescindíveis. Estou sempre atenta aos trabalhos de Jane Campion, Claire Deni, Win Wenders e Todd Haynes. Os filmes de animação, assisto a todos que posso, de todos os países, vezes sem-fim, e sempre me comovo.
E como esse contato e o fascínio pelo cinema influenciaram na construção de cenas e atmosferas no livro?
Às vezes, me via buscando uma conexão emocional com a personagem ao descrever seus movimentos em plano-detalhe (em ‘Crônica sentimental’ isso acontece logo no início). Já em ‘Da garganta à ponta da língua’, o primeiro parágrafo se dá no que lembra uma câmera subjetiva, talvez. Eu me atento muito às vinhetas de abertura dos filmes, considero sempre um momento essencial à apreciação do que virá depois, e acho que nos meus textos busco isso também. As cenas de delírio de alguns personagens são muito inspiradas no cinema.
O que você espera que os leitores sintam ao ler seu livro? Qual impacto você acredita que surtirá neles?
Esse livro tem o desejo de chegar ao leitor na forma de tesão, de dor, de alegria, e desespero, ou seja: muito do que senti escrevendo. É um inventário de histórias que necessitaram do meu corpo para vir à tona – quando digo “corpo”, me refiro ao esforço físico desgastante mesmo, de olhos, ouvidos, de nervos e músculos – e de uma condição emocional sempre vacilante. Usei isso para compor as personagens, não soube fazer diferente. Por outro lado, foi importante perceber como fiz escolhas muito conscientes para deixar a quem lê a descoberta dos significados mais profundos do que está representado nas histórias.
Então, o livro evita respostas definitivas e exige um leitor ativo, que construa sentidos junto à leitura. Por que você escolheu construir essa experiência para seus leitores? Quais estratégias você usou para isso?
É a experiência que eu gosto de viver com a leitura: ativa, sem o apoio de conclusões prontas fornecidas pelo enredo ou de indicações feitas por quem escreveu. Não desejo fazer isso à força, sei que ainda tenho de me treinar muito para não recair nesse lugar, o de imposição da experiência. No entanto, a complexidade das personagens, a origem e o desenvolvimento dos seus pensamentos e ações, sujeitos a leis próprias, é o que mais me interessa mostrar. Para acentuar os conflitos internos das personagens, suas hesitações, delírios e intensidades, por vezes me valho da não-linearidade, da narrativa fragmentada, de uma trama menos fechada. Para realçar a desrazão, busquei, como diria Maurice Blanchot, uma “escritura do desastre”. Acho que são boas estratégias para trazer à tona as emoções mais cortantes, desencadeadas, também, por eventos dos mais perversos.
Ana Ferrai é uma jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduanda em Edição e Gestão Editorial pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE). Sempre teve forte ligação com a literatura e às vezes se aventura a escrever textos ficcionais