Exposições desafiam o espaço do museu com narrativas indígenas
Abrem no Masp três novas mostras dedicadas a artes e ativismos de povos ao redor do mundo
Em 21 de maio de 2000, visitando a Exposição da “Mostra do Descobrimento” no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, Dona Nivalda Amaral, anciã do povo Tupinambá de Olivença, teve sua atenção fisgada por um objeto. Era um manto, sobre o qual ela tinha ouvido parentes mais velhos falarem muitas vezes. Quando viu o objeto atrás do vidro, disse que seu coração disparou e alguém lhe sussurrou: “este é o nosso manto”.
O manto Tupinambá vermelho que estava exposto pertencia ao acervo do Museu Nationalmuseet de Copenhague, e retornou para lá depois da exposição. Mais de vinte anos depois, em junho de 2023, a Dinamarca anunciou que iria entregar ao Brasil o objeto, que está em Copenhagen desde 1689. Renata Tupinambá, curadora de arte, explica que, tendo em vista o retorno, “é muito importante que as pessoas entendam que objetos não são apenas objetos dentro da cultura Tupinambá, eles ganham uma dimensão viva. Enquanto os museus tratam esses mantos antigos como um objeto, para nós, é o nosso ancestral vivo.”
Com notícias como essa, a questão do repatriamento de artefatos indígenas e a reformulação do museu colonial vêm ganhando força. Seguindo a linha do debate, o Masp anuncia a abertura de três novas exposições de artistas indígenas contemporâneos ao redor do mundo, que desafiam o espaço do museu ao exporem suas obras.
Quando o manto fala e o que o manto diz, de Célia Tupinambá
Renata é a curadora da Sala de vídeo “Glicéria Tupinambá e Alexandre Mortágua”, que exibe Quando o manto fala e o que o manto diz (2023). O filme registra o processo de Glicéria Tupinambá em reconectar-se com os saberes adormecidos de sua aldeia, através do manto Tupinambá que ela mesma fez. Através do processo de confecção do novo manto, somos convidados a entender a potência que carregam os artefatos originais. Atualmente, sabe-se da localização de onze mantos produzidos durante o período colonial, todos localizados na Europa. Em visitas aos mantos, Célia – como Glicéria é mais frequentemente chamada – pôde experienciar a força ancestral descrita por Dona Nivalda, que, apesar de tanta luta, não pôde ver o retorno do artefato à sua terra em vida.
A curadora conta: “Dona Nivalda faleceu em 2018, então o retorno se transformou em uma questão de honra para o povo.” A anciã foi uma das grandes responsáveis pelo processo de reconhecimento dos Tupinambá enquanto povo e da reivindicação de seu território. Assim como ela lutou, Célia luta pela articulação de um projeto de futuro do povo em sua arte. Foram mulheres como elas que possibilitaram a insurgência Tupinambá, explica Renata: “O levante do povo se deu por meio das mulheres, o reconhecimento étnico do povo Tupinambá neste século se deu por meio das mulheres e ao fazer essa releitura artística do manto ela mostra isso, esse protagonismo real das mulheres Tupinambá na história.”
A reprodução de Célia espelha o papel dos mantos ancestrais, mas não os substitui: enquanto o objeto de Célia reflete seus modos de vida e sua experiência cosmológica enquanto Tupinambá de Serra do Padeiro, os mantos antigos representam o povo em sua totalidade, enquanto coletividade. A artista explica que a confecção do seu manto envolve toda a comunidade de Serra do Padeiro, desvendando seus segredos “na tecelagem, na trançagem, na busca das penas, na coleta da cera de abelha e no ensino das técnicas de tecelagem por anciões da comunidade.” Nessa releitura, a artista atualiza a tradição e traz de volta à vida esses objetos que continuam presos atrás de vidros em museus europeus.

Sob céus tramados: a tecelagem Navajo de Melissa Cody
Aquilo que é tido como tradição também é atualizado pela artista têxtil Melissa Cody na exposição “Céus Tramados”. Nascida em No Water Mesa, Nação Navajo, no Arizona, Estados Unidos, Cody faz parte da quarta geração de tecelãs na sua família. Ela conta que sua mãe, de quem aprendeu o ofício, fazia peças em tapeçaria para sustentar sua família. Tendo aprendido a tecer aos cinco anos de idade, Cody, agora com 40, experimentou muito com materiais, técnicas e cores em sua arte.
O estilo empregado pela artista hoje é chamado de Germantown, e caracteriza-se pelo uso de uma lã industrial de cores vibrantes, resultado do tingimento por anilina. A incorporação desse tipo de lã industrializada – muito diferente dos tons terrosos dos pigmentos naturais anteriormente utilizados pelos Navajo – possibilitou que as tecelãs seguissem trabalhando durante a chamada longa caminhada (long walk), processo de limpeza étnica organizada pelos colonizadores na região do atual Arizona, em 1864, que expulsou o povo Navajo de seu território original.
Cody conta que começou a usar a lã Germantown ao desenhar paralelos com o momento atual da cultura Navajo: “a longa caminhada foi um genocídio planejado contra o nosso povo, e também foi um período em que todos nós fomos aprisionados em uma única área. Durante minha infância, havia muita conversa sobre a forma como os Navajo estavam perdendo nossa língua, cultura e tradições, hoje. Estávamos passando por mais uma era de assimilação, muitos de nós estávamos sendo enviados para fora da reserva, obrigados a frequentar escolas internas e éramos punidos por falar nossa própria língua. Na tentativa de reverter isso e usar todo o conhecimento que adquiri ao longo da minha carreira de tecelã, eu queria garantir que essas coisas não acontecessem.”
Caracterizando-se como uma “criança dos anos 1980”, a artista transforma e atualiza a arte da tecelagem ao incluir elementos do universo pixelado dos primeiros videogames e computadores. É importante para a artista que o público desprenda-se da “ficção colonial que insiste em fixar culturas indígenas a uma ideia imutável de ‘tradição’ associada a um passado idílico”, como defende a curadora Isabelle Rjeille. Ao incluir esses novos elementos, característicos do nosso dia a dia, ela dá continuidade ao processo constante de inovação de tecnologias ancestrais.
Entre blocos em preto e branco que simulam pixels e linhas multicoloridas de linha Germantown, mais dois elementos chamam atenção em suas tapeçarias: as cores em pastel que parecem formar um céu que contorna montanhas. Ao centro da paisagem, um formato de ampulheta, que se repete em uma tatuagem no pescoço da própria artista. Essa é a imagem da Mulher-Aranha, figura sagrada responsável pela transmissão da tecnologia da tecelagem às mulheres, de acordo com a cosmovisão Navajo. Nas peças, a Mulher-Aranha habita essa montanha, “reforçando o vínculo entre a prática artística e o território, bem como a importância de reconhecê-lo e respeitá-lo como terra indígena,” comenta a curadoria.
Entre tradição e atualização, Cody, que tem dois filhos, acredita que sua contribuição para a arte da tecelagem seja “estar liderando o novo tecelão, seja ele alguém que está aprendendo mais tarde na vida ou o que está aprendendo desde criança.” Ela continua: “Acredito que estou abrindo a porta para que eles explorem histórias interpessoais e possam contar esses testemunhos pessoais por meio de suas tecelagens. Tem havido realmente uma grande necessidade para nós, como povos indígenas, de preservar nossa cultura, criar nossas próprias tradições e falar por nós mesmos.”
Coletiva histórias indígenas: criando o “eu” coletivo
Com o objetivo de contar testemunhos pessoais e coletivos ao redor do mundo e através das eras, a última exposição reúne cerca de 285 obras de várias mídias e tipologias, origens e épocas, de aproximadamente 170 artistas indígenas.
A mostra traz diferentes perspectivas sobre as histórias indígenas de regiões da América do Sul, América do Norte, Oceania e Região Nórdica, dividindo-se em sete núcleos dedicados a diferentes partes do mundo. Edson Kayapó, curador do núcleo brasileiro “Tempo não tempo”, determina que um dos centros da exposição seja fazer entender o conceito de coletividade das cosmologias indígenas: “É isso que a sociedade brasileira precisa entender, que nós somos coletividade. A minha é a ressonância de uma de uma voz muito maior que a voz da ancestralidade.”
O título “histórias indígenas” leva em conta a História a partir dessa noção coletiva, garantindo à exposição um caráter mais polifônico, especulativo, aberto, incompleto, processual e fragmentado do que a noção tradicional do termo.
Um último núcleo da exposição, chamado de “Ativismos”, reúne obras de diferentes movimentos sociais indígenas em formatos variados com o objetivo de mostrar as variadas formas de luta pelo território e por direitos indígenas ao redor do mundo. Edson conta que as artes fazem parte do processo de demarcação do território: “Nós fazemos artes porque nós queremos demarcar nosso território. Inclusive nós vendemos as nossas telas porque nós queremos que com os recursos dessas vendas contribuamos para que a gente organize os nossos territórios. Para nós, povos indígenas, artistas indígenas, o território é uma categoria central, porque é um espaço cosmogônico de produção e reprodução da vida. Sem o território originário não tem como nós continuarmos pertencendo”
Ao abrir esses espaços para as histórias e artes indígenas, o Masp se propõe a seguir o modelo decolonial de museu tal qual definido por Françoise Vergès, adaptando-se às obras e à sua relação específica com o público. Essa noção é defendida pela curadora Renata Tupinambá: “A arte indígena não deve se adequar aos espaços. São os espaços que devem se adequar aos artistas indígenas e às artes indígenas.”
As três exposições ocorrem no subsolo do Masp. “Melissa Cody: Céus Tramados” e a coletiva “Histórias Indígenas” ficam abertas ao público até o início de 2024. A sala de vídeo “Glicéria Tupinambá e Alexandre Mortágua” estará disponível até dezembro.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.