Repatriar nossos artefatos e demarcar nosso território
O repatriamento para o Brasil de artefatos indígenas, e em especial do manto Tupinambá, pode ajudar os povos originários a derrubar de vez a falácia do marco temporal, demostrando assim sua presença imemorial no país
O tema do repatriamento de artefatos indígenas tem ganhado força nos últimos anos, em especial junto ao Povo Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Um inesperado encontro no ano 2000 de duas lideranças deste povo com um manto Tupinambá – durante a Exposição do Redescobrimento do Brasil – abriu caminho para esta luta de trazê-lo de volta para ao país. Em 2022, a questão ganhou dimensões maiores com a notícia de que a Dinamarca vai entregar ao Brasil o artefato do século XVII que está em Copenhagen desde 1689: “o manto, que os indígenas consideram sagrado, é uma das onze peças semelhantes remanescentes. Todas as outras estão em instituições na Europa, sendo cinco sob a guarda da associação nacional de museus dinamarquesa”, diz um trecho da notícia do jornal O Globo. Essa situação vem favorecendo muitas reflexões e debates sobre a necessidade desses repatriamentos.
História do povo
O Povo Tupinambá de Olivença – localizado no sul da Bahia, a cerca de 450 km de Salvador, entre os municípios de Ilhéus, Una, Buerarema e São José da Vitória – luta pela retomada de parte do seu território sagrado. Atualmente os Tupinambá tentam recuperar 47.376 hectares. Em 2001, eles obtiveram o reconhecimento étnico pela Fundação Nacional do Índio, seguido da criação do grupo técnico para o levantamento territorial onde se encontravam desde 1500. Diante da morosidade do Estado em fazer a regularização fundiária, a partir de 2004, os Tupinambá passam a retomar o território como forma de enfrentar os constantes ataques e os inúmeros assassinatos de representantes do seu povo, muitas vezes acobertados pelo próprio Estado, além de impedir a destruição dos bens naturais que ainda restavam no território reivindicado.
Em 19 de abril de 2009 foi publicado, no Diário Oficial da União, o relatório circunstanciado de identificação e delimitação da TI Tupinambá de Olivença, totalizando 47.376 hectares. A partir desta publicação se intensificaram os ataques contra o Povo Tupinambá.
Encontro com o manto
Em 21 de maio de 2000, visitando a Exposição da “Mostra do Descobrimento” no Parque do Ibirapuera em São Paulo, duas lideranças Tupinambá, Dona Nivalda Amaral de Jesus (Amotara), naquela época com 67 anos, e Aloisio Cunha Silva, aos 41 anos, não reconhecem nada, acham tudo bonito, mas nada de interessante. No entanto, são atraídos por um manto todo vermelho no meio de quase seiscentas peças. O manto era uma das peças do acervo do Museu Nationalmuseet de Copenhague. Dona Nivalda comenta com várias pessoas que sempre ouviu falar sobre as histórias dos mantos Tupinambá e não sabia que haveria um deles ali naquela exposição. Ela diz que ao ver o manto seu coração disparou e alguém lhe sussurrou: “este é o nosso manto”. E desde esse momento ela afirma que a peça não poderia mais voltar para o “estrangeiro”, que ela tinha que voltar para seu lugar, junto ao Povo Tupinambá.
Reportagem publicada em outubro de 2021 conta que “quando viram pela primeira vez um manto tupinambá, por trás de uma vitrine da exposição que comemorava os 500 anos do Brasil, Dona Nivalda e Seu Aloísio choraram. ‘Toda história do nosso povo está aqui’, disse a líder indígena na ocasião”.
O início do processo de repatriamento do manto
A partir desse “primeiro encontro”, os Tupinambá iniciaram um processo de luta para garantir o retorno do manto exposto, e também de outros mantos e artefatos (flautas, tambores, bordunas, etc.) que se encontram fora do Brasil.
Foi o início de um intenso ciclo de luta pela recuperação do território tradicional e de revitalização da cultura do Povo Tupinambá, sendo destaque o processo de reconstrução dos mantos a partir da peças roubadas. Uma das lideranças da comunidade da Serra do Padeiro, Glicéria Tupinambá, tem a missão dada pelos Encantados de garantir o retorno dos mantos.
Durante o período da pandemia de Covid-19, Célia, como é mais conhecida, conseguiu reproduzir um primeiro manto que tem uma base de cordão de algodão cru encerado com cera de abelha tiúba da Serra do Padeiro, sobre a qual foram colocadas aproximadamente 3 mil penas. A base de algodão foi trançada seguindo a técnica de tecelagem do jereré, ferramenta de pesca utilizada pelos anciões da aldeia. Esse manto confeccionado pela Célia tem como referência o manto tupinambá que data do século XVI e que está conservado na reserva do Museu do Quai Branly, em Paris, na França. A cor do novo manto não é vermelha, pois não existe mais a presença do Guará; agora a cor predominante é o marrom, das plumas de aves da comunidade e da terra que defendem. Isso porque não podemos nos esquecer que o povo está em luta pela conclusão da demarcação de sua terra indígena, alvo de ataques armados e invasões.
“O manto representa para nós, Tupinambá, a revitalização da nossa cultura, da nossa língua, dos nossos fazeres, das nossas técnicas. O manto vem desvendando segredos. A confecção do manto traz saberes guardados pelas mulheres Tupinambá: tecelagem, trançagem, uso de vários utensílios (principalmente a agulha de tucum), preparação do cordão feito de algodão (antigamente era no fuso) com cera de abelha. Embora o manto tenha sido feito por mim, a confecção envolveu todas as pessoas da comunidade, das crianças aos anciões: na busca das penas, na coleta da cera de abelha tiúba e no ensino das técnicas de tecelagem por anciões da comunidade”, analisa Célia em artigo para o projeto Um outro céu. “O interessante é comparar uma obra que está dentro do museu, parada, e ver a peça tendo vida e movimento – neste caso, ver o manto sendo usado por um membro da comunidade, o cacique, meu irmão, durante um ritual. É uma emoção muito grande. Ory, meu filho caçula, disse que, quando o cacique usar o manto, ele permitirá a cura do mundo, ao afastar todas as doenças. Tudo de ruim será eliminado, porque o cacique se transformará em um super-herói”.
No mesmo artigo, Célia conclui que “a confecção do manto tem uma simbologia política forte. Sabemos que existem mantos Tupinambá em vários lugares e que temos dificuldades de acesso a eles. Até agora tivemos acesso de forma presencial a apenas um manto, o já referido manto conservado na reserva do Museu do Quai Branly, na França. Poder ter acesso ao manto foi fundamental para que ele pudesse começar a falar comigo. O manto conseguiu se abrir para mim e eu consegui fazer minhas observações e ter algumas percepções para que pudesse confeccionar outro manto. Foi importante trazer vida para o manto e mostrar que não era aquela coisa obsoleta, guardada em um canto, só para ser observado e ir se deteriorando com o tempo. Os mantos têm uma vida e um propósito dentro do seu povo. Este é o retorno do manto”.
Célia tem viajado por vários países após receber essa missão dos Encantados e, desse modo, tem localizado não só outros mantos, mas outros artefatos dos povos indígenas brasileiros. Na França, ela e sua sobrinha Jéssica Quadros Tupinambá localizaram uma borduna exposta em uma biblioteca de curiosidades, e solicitaram um estudo de ultra violeta, pois acreditam que a mesma é uma borduna Tupinambá. Além disso, no final de outubro de 2023, Jéssica Tupinambá estará fazendo uma incursão em vários países da Europa para tratar do tema do repatriamento dos artefatos indígenas e da violência contra os povos indígenas no Brasil.
Espoliação colonial
Objetos sagrados para os Tupinambá, os mantos foram levados do Brasil no período colonial pelos europeus e passaram a integrar coleções reais. Atualmente, sabe-se da existência de onze desses itens cerimoniais, que foram produzidos entre os séculos XVI e XVII, todos conservados em museus europeus.
Mesmo que os onze mantos não tenham retornado ao Brasil e sua produção tenha adormecido por longo período, os artefatos nunca deixaram de habitar o mundo dos Encantados – entidades sobrenaturais que guiam o povo Tupinambá –, e agora voltam a ser confeccionadas pelas mãos de Célia.
Em conversa com a cacica Jamopoty (Valdelice Amaral), do povo Tupinambá de Olivença, filha de Dona Nivalda, quando da preparação deste artigo, ela me dizia que era até difícil falar do manto, pois lhe vinha um nó na garganta, e às vezes nem conseguia falar, de tanta emoção. Ela não vê a hora dos sonhos de sua mãe, falecida em 29 de maio de 2018, serem concretizados: a regularização do território e o manto de volta à sua terra natal.
“Na França, Dinamarca, Alemanha, Itália e em outros países pelo mundo existem muitas peças construídas pelo nosso povo – e não só do nosso povo, mas de muitos outros povos que assim como o nosso foram lesados, com o roubo delas. Essas peças precisam voltar, regressar para as nossas comunidades ou para o nosso país. Ter elas em nossas vistas será um momento ímpar, especial, em que poderemos fazer uma retrospectiva e imaginar como eram feitas essas bordunas, esses mantos, esses instrumentos musicais pelos nossos parentes, e a gente começa a imaginar como era confeccionada, como era a luta naquela época. Quando a gente fala do sagrado, foi o que aconteceu com minha mãe, Dona Nivalda, em 2000, quando no meio de tantas peças naquela imensidão da exposição os Encantados a levaram até o nosso manto. O manto vem com uma missão de demarcação, de reconstrução de uma história, que o povo vem lutando, vem com força ancestral, milenar para nos ajudar a garantir os nossos direitos. O manto fora daqui é como uma carta fora do baralho, não tem sentido”, afirma Jamopoty Tupinambá.
Cultura e território
Assim como a devolução dos seus artefatos por aqueles que os mantém em locais estranhos à sua ancestralidade, os Tupinambá lutam no Brasil não só pelo repatriamento, mas para que as autoridades brasileiras lhes devolvam seu território. A presença dos artefatos, e em especial do manto Tupinambá, pode lhes ajudar a derrubar de vez a falácia do marco temporal, demostrando assim a presença imemorial dos Tupinambá, e os processos de saques e violências contra os povos indígenas no Brasil. A história dos Tupinambá de Olivença não começa em 1988. Hoje, o processo de demarcação do povo Tupinambá de Olivença encontra-se paralisado no Ministério da Justiça para assinatura da Portaria Declaratória, uma vez que todas as contestações foram respondidas e julgadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). No dia 14 de setembro de 2016, os ministros do STJ, de forma unânime, votaram pela anulação de um mandado de segurança que emperrava a regularização do processo de demarcação.
Para que os artefatos sejam repatriados e encontrem os territórios e os povos de onde saíram em condições dignas de recebê-los, é preciso que o Ministério da Justiça assine de imediato a portaria declaratória para demarcação do território ancestral do povo Tupinambá de Olivença, e que as autoridades, em especial o Supremo Tribunal Federal, enterrem de uma vez por todas o marco temporal e outros mecanismos que buscam continuar retirando e violentado os direitos dos povos originários.
Haroldo Heleno é indigenista e coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário – Regional Leste (Bahia, Minas Gerais e Espirito Santo).