Marco temporal e teses periféricas no julgamento do STF sobre terras indígenas
Julgamento do Tema 1.031, de repercussão geral, retomado nesta quarta, dia 20 de setembro, apresenta ao STF a oportunidade de reafirmar os direitos constitucionais dos povos originários
Mais uma vez, lideranças de diversos povos indígenas vêm a Brasília para acompanhar a continuidade do julgamento do Tema 1.031 do Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, com repercussão geral reconhecida em 2019 pela Suprema Corte. Com início do julgamento no ano de 2021 e continuidade nos anos de 2022 e 2023, agora a Corte Constitucional tem a chance, nos dias 20 e 21 de setembro, de finalizar os debates e a análise de mérito do caso, para fixar uma tese sobre a interpretação do estatuto jurídico-constitucional dos direitos territoriais indígenas.
Em razão da repercussão geral, o caso – que, no mérito, trata de uma disputa possessória envolvendo a Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng, em Santa Catarina – terá consequências para povos indígenas de todo o Brasil.
Até o momento, são quatro votos contra a tese do marco temporal, que tem por objetivo inviabilizar as demarcações de terras no Brasil, e dois a favor dessa tese: votaram contra o relator do caso, ministro Edson Fachin, e os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Cristiano Zanin, e a favor os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça. Ainda faltam cinco ministros a votar, e esses votos podem consolidar uma maioria em sentido diverso à tese ruralista.
Contudo, existem outros elementos importantes que carecem de maioria para serem também reafirmados. Isso porque o ministro Alexandre de Moraes, ao inovar na sua proposta de tese, quando afasta o marco temporal, acrescenta no debate um elemento estranho à lide. O ministro propôs uma espécie de indenização prévia pela terra nua, legitimando os títulos de propriedade incidentes sobre terras indígenas. Ao mesmo tempo, reconhece a tradicionalidade da ocupação e o dever do Estado em demarcar essas terras.
Essa proposta não foi vista com bons olhos por vários setores da sociedade, especialmente pelo movimento indígena, porque tem o potencial de gerar conflitos, ao mesmo tempo que reconhece dois direitos onde apenas caberia um deles – no caso, o direito originário dos indígenas à terra. Essa tese, além de gerar conflito por direito fundiário, na inexistência de condição orçamentária da União para pagar as indenizações de forma prévia, pode ocasionar uma enorme judicialização e um consequente desalojamento em massa de comunidades que vivem em áreas ainda não regularizadas.
Diante disso, o debate que se iniciou na Corte foi se seria possível discutir a indenização naquele caso, por não comportar inicialmente no seu objeto o debate sobre as indenizações, ou, por outro lado, se seria possível fechar um “combo” e pacificar a matéria, tanto em relação às demarcações, como em relação aos impactos por ela causados em terceiros de boa-fé.
Parece que sim, que a Corte vai seguir em sentido convergente ao que pretendeu o ministro Alexandre de Moraes. Contudo, a indenização pode seguir caminho diverso ao que ele apresentou. Isso porque o ministro Cristiano Zanin, que também afastou o marco temporal, seguiu a proposta das indenizações, mas mudou a sua natureza jurídica. Garantiu que nem a Carta de 1988, nem o constituinte originário e muito menos a jurisprudência do STF permitem tamanha elasticidade para admitir a indenização a detentores de títulos de propriedade incidentes sobre terras indígenas.
Para o novo ministro, seria sim possível uma indenização aos terceiros de boa-fé, mas não com base na legitimidade, validade e licitude dos títulos – os quais, segundo ele, são nulos e nenhum efeito produzem, nos termos do que é previsto explicitamente no artigo 231 da Constituição Federal. Para não deixar dúvidas acerca de sua intenção, os constituintes de 1988 deixaram explícito no sexto parágrafo do artigo 231 que essa nulidade não gera “direito a indenização ou a ações contra a União”.
A indenização proposta, então, seria com base no artigo 37, parágrafo 6º, também da Constituição. Não seria em função da validação dos títulos e muito menos por efeito da demarcação. Seria, sim, em função da titulação feita sobre terras indígenas pelos estados federados ou pela União, a qual gerou expectativa de direito em terceiros de boa-fé, atraindo a responsabilidade objetiva dos entes públicos e, por isso mesmo, o dever de indenizar – uma espécie de indenização por evento danoso.
Essa tese agradou tanto o ministro Roberto Barroso, que acompanhou o ministro Zanin, quanto o relator, o ministro Edson Fachin, que inclusive já se mostrou adepto da tese no seu voto no Tema 1.031 e na Ação Cível Originária (ACO) 1.100 – processo que tramita no STF e que também discute sobre a demarcação da TI Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng – sem, contudo, acrescentar esse mecanismo indenizatório na sua proposta resolutiva.
Portanto, seriam três ministros adeptos da tese das indenizações por evento danoso ou ato ilícito em função da titulação das terras a terceiros em áreas indígenas, quando presentes a boa-fé e a responsabilidade do ente público. Isso se somaria à indenização das benfeitorias, já prevista no artigo 231 da Carta de 1988.
Nesse sentido, com mais três votos dos cinco que ainda faltam, o STF pode encerrar a discussão, tanto em relação à inconstitucionalidade do marco temporal, quanto em relação às indenizações. O mais adequado constitucionalmente seria a indenização que não seja pela validação dos efeitos da titulação, mas por evento danoso em função da expectativa de direitos criada a terceiros de boa-fé; e que essa indenização possa ser discutida por meio de procedimento próprio e com base no artigo 37, parágrafo 6º da Constituição, desvencilhando-se do procedimento demarcatório.
Ainda restam questões a serem resolvidas pelo STF, a exemplo da fase mais apropriada para que a posse da terra seja devolvida aos indígenas. Segundo a proposta do ministro Zanin, seguida por Barroso, seria da emissão da portaria declaratória pelo ministro da Justiça, a qual confirma os limites territoriais fixados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) por meio de relatório técnico-antropológico, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID).
Nos termos do voto do ministro Alexandre de Moraes, essa posse só poderia ocorrer a partir do pagamento prévio das indenizações, podendo tornar o processo de demarcação ainda mais moroso e permitir, com isso, o acirramento do conflito possessório e os desalojamentos de comunidades que ocupam áreas ainda não regularizadas, em clara ruptura com o texto constitucional.
Nesse sentido, é necessário que a Suprema Corte julgue se existe impedimento constitucional para a continuidade das demarcações e defina uma tese adequada ao que foi a vontade do Constituinte de 1988. Mas que, também, se for realmente fixar entendimento sobre outros elementos periféricos e direitos de terceiros, que eles sejam também possíveis juridicamente.
A única indenização que se comporta na Constituição para terceiros de boa-fé, por efeito da demarcação das terras indígenas, é aquela prevista pelo 6º parágrafo do artigo 37, sustentada na responsabilidade civil do Estado. Assim, não se pode permitir o pagamento pela terra nua, bem como há expresso impedimento até mesmo para o ingresso de ações judiciais indenizatórias em função da demarcação, nos termos do que determina o artigo 231, parágrafo 6º, da Constituição.
Ainda, a Corte precisa se posicionar – para além da tese central em disputa – sobre a natureza das indenizações, sobre o momento do processo demarcatório em que a posse indígena deve ser garantida e sobre o tamanho ou o limite da propriedade para as indenizações – até porque o que se aventa é tão somente sobre justiça, por meio das indenizações, aos pequenos agricultores, mas não aos grandes proprietários.
Ademais, seria necessário pensar também em como garantir indenização aos indígenas que tiveram suas terras completamente degradadas e, caso devolvidas, sem as condições necessárias à sua reprodução física e cultural, pois também foram lesados em função do esbulho, muitas vezes sob extrema violência.
Essas questões devem ser trazidas ao debate nos votos que restam – na ordem de votação, os próximos a apresentarem seu posicionamento neste julgamento histórico serão os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, o decano Gilmar Mendes e, por fim, a presidente da Corte, Rosa Weber.
Afinal, a confiança na Suprema Corte pelos indígenas é simbolicamente medida e, mais uma vez, pelo que tudo indica, o direito indígena, como cláusula pétrea, será preservado pela guardiã da Constituição.
Rafael Modesto, Paloma Gomes e Nicolas Nascimento são advogados do povo Xokleng e integrantes da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Luis Ventura Fernández é missionário do Cimi.