O ciclo da barbárie
Relatório do Cimi sobre o último ano de governo Bolsonaro mostra com dados a extensão da violência contra os povos indígenas nos últimos quatro anos, sofrendo com invasões constantes e brigas para retomar seus territórios originários
O ano de 2022 foi o último do mandato presidencial de Jair Bolsonaro (PL). Para o indigenista Roberto Liegbott, que integra o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), isso não só representou o fim de um governo, mas também o possível encerramento daquilo que ele e seus colegas do Cimi chamaram de “ciclo da barbárie”. O porquê do nome fica evidente ao observar os dados do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil de 2022, mostrando que o aumento das estatísticas de violência de todos os tipos contra os povos originários brasileiros não foi coincidência, mas sim consequência de uma política de governo.
Natanael Araguaju’i, liderança do povo Guarani-Kaiowá, fala do período do ciclo da barbárie como “tenebroso”. “Nosso coração dói quando nos lembramos das crianças que foram atacadas por helicópteros como se fossem criminosos. O barulho ensurdecedor do helicóptero e dos tiros de arma de grossos calibres que eram disparados destas máquinas permanece como se o episódio tivesse acontecido ontem.”
Para Roberto, esse ciclo se caracteriza como um período de ação do governo para “desconstruir direitos, desterritorializar os indígenas e retomar perspectivas integracionistas do período da ditadura militar”. Durante o período do regime civil-militar, a ação do Estado era guiada para “integrar ou dizimar” os povos indígenas, que, nas palavras do indigenista do Cimi, não tinham “a possibilidade de serem sujeitos de direito sendo indígenas. Eles tinham que se transformar em brancos para serem indígenas”.
Essa perspectiva muda com a Constituição de 1988, que estabelece os direitos originários dos indígenas brasileiros, garantindo que pudessem se expressar e viver de acordo com seus costumes, crenças e tradições. Desde então, o papel do Estado nessa área passou a ser o de criador e mantenedor de políticas públicas que possam garantir os direitos constitucionais dos povos originários do Brasil. Aos trancos e barrancos, isso foi sendo realizado nos últimos governos democráticos do Brasil. A exceção à regra foi Bolsonaro.
O ex-presidente não escondeu seu interesse em retomar a perspectiva da ditadura nas políticas públicas relacionadas aos povos indígenas. Em 2017, no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, disse que “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, e não mentiu. Todo o processo de demarcação de novas terras indígenas foi paralisado entre 2019 e 2022, e o governo atuou, na prática, para “flexibilizar esse direito constitucional”, segundo Roberto Liegbott. O integracionismo dos militares volta com força, junto da ideia de que os territórios indígenas deveriam ser liberados para exploração econômica.
Para Roberto, a diferença de Bolsonaro para os militares da ditadura é que a relação produtiva que ele estabeleceu com os territórios indígenas foi com “a economia criminosa, […] grupos econômicos que não tinham nenhum escrúpulo”, e não com o “bom fazendeiro” ou o “bom empresário”. Que economia criminosa é essa? “Madeireiro ilegal, grileiro de terra, garimpeiro. Ele cria as condições para esse ambiente do crime organizado poder se infiltrar. O Estado se retira da fiscalização, da proteção, e promove, através do discurso, a invasão criminosa dos territórios indígenas.”
Violência física e territorial
Só em 2022, o Cimi registrou 867 casos de “omissão e morosidade na regularização de terras”. A categoria de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio” em terras indígenas, teve seu sétimo ano consecutivo de aumento: foram 309 casos. A fragilidade territorial não é só um problema cultural ou econômico, mas impacta diretamente na vida e segurança dos indígenas brasileiros. Assegurar a posse e o usufruto desses territórios é proteger os habitantes de invasões e ataques violentos.
Foram 27 ameaças de morte, 28 tentativas de assassinato e 20 ocorrências de violência sexual registradas pelo Cimi em 2022. O número de assassinatos assusta pela distância dessas outras estatísticas: foram 180 casos. Esses casos de violência física, que o relatório do Cimi chama de “violência contra a pessoa”, cresceram vertiginosamente no governo Bolsonaro em comparação com seus antecessores. Os quatro anos de ciclo de barbárie tiveram uma média de 373,8 casos por ano, enquanto a média dos governos de Michel Temer e Dilma Rousseff foi de 242,5 casos anuais.
Em quatro anos, foram 795 homicídios de pessoas indígenas registrados nos tradicionais relatórios do Conselho Indigenista Missionário. Mas a violência física direta não foi o único algoz dos indígenas durante o mandato de Bolsonaro.
Violência por omissão do poder público
O relatório do Cimi traz uma categoria de casos de “Violência por Omissão do Poder Público”. Dados da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) mostram que, em um único ano, 2022, 835 crianças indígenas de 0 a 4 anos morreram. Só no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami e Ye’kwana, que engloba toda a terra indígena (TI) Yanomami e partes dos estados de Roraima e Amazonas, 621 mortes de crianças dessa faixa etária foram registradas durante o ciclo da barbárie. Isso representa 17,5% do total de mortes nessa faixa durante esse período, mesmo que a TI Yanomami só seja casa para 4% dos indígenas atendidos pela Sesai.
Em 2022, o relatório do Cimi contabilizou 115 suicídios de indígenas. Dessas mortes, 35% foram de pessoas até 19 anos. A “insegurança diária” que vem com as invasões constantes aos territórios desestabiliza a saúde física e mental dos povos originários. Para os adolescentes, segundo Roberto Liegbott, a realidade não apresenta nenhuma perspectiva, nenhuma saída. A insegurança permeia todas as relações e extermina qualquer possibilidade de paz e tranquilidade.
Especialmente nos últimos cinco anos, como mostram os relatórios do Cimi e como afirmou Roberto em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, ocorreu uma “fragilização das políticas assistenciais por parte do Estado” para os indígenas. A Funai foi praticamente desmantelada, o programa Mais Médicos, que assegurava assistência de saúde básica para comunidades indígenas, foi extinto, e o acompanhamento de enfermidades como verminoses e gripes, com tratamento fácil, acabou. O ciclo da barbárie foi, também, um desmonte de políticas de vacinação e acompanhamento de gestantes e crianças. Toda essa precariedade se transformou na possibilidade da entrada de doenças não conhecidas pelos indígenas. O sarampo voltou, a malária se intensificou e a COVID-19 alcançou todos os cantos do país.
Tudo isso talvez só seja a ponta do iceberg. O Cimi tem 117 grupos de indígenas em isolamento voluntário registrados. Desses, 86 não são reconhecidos pela Funai e são praticamente invisíveis para o Estado. Em alguns desses grupos, segundo Liegbott, o risco de genocídio é palpável.
Concentração geográfica
Os dados de suicídio, assassinatos e mortes de crianças de 0 a 4 anos trazem uma peculiaridade em comum. Os estados de Roraima (RR), Mato Grosso do Sul (MS) e Amazonas (AM) estão no topo de todas essas listas de estatísticas negativas. Esses três estados juntam 65% de todos os homicídios de indígenas cometidos entre 2019 e 2022 no Brasil. É verdade que a violência contra os indígenas se dá em “praticamente todos os estados do país”, como afirma Roberto, mas Roraima, Mato Grosso do Sul e Amazonas disparam nas estatísticas. Por quê?
A TI Yanomami se encontra nos estados de Roraima e Amazonas, e sofreu com uma “invasão sistemática” de garimpeiros durante o governo Bolsonaro. Para Roberto, essa violência foi agravada durante o ciclo da barbárie pela associação do garimpo com organizações de crime organizado e narcotráfico que garantiam aos garimpeiros o acesso e a permanência nos territórios indígenas, destruindo o meio ambiente e a vida dos povos originários.
Já no Mato Grosso do Sul, a violência tem um componente histórico. Os indígenas do estado foram realocados para reservas superpopulosas, onde diversos povos precisaram conviver em um espaço novo e pequeno para suas atividades. Além disso, a “influência da urbanização e do crime” nessas reservas levou, nas palavras de Roberto, a uma “vulnerabilização” dos povos indígenas da região.
Essas reservas, que foram criadas longe das cidades, agora conurbaram com os centros urbanos do Mato Grosso do Sul. O indigenista do Cimi usa o exemplo de Dourados, cidade no sul do estado, próxima ao Paraguai, que cresceu tanto que “cercou” a reserva indígena na área. Toda essa confusão territorial levou à desterritorialização de povos indígenas como os Guarani-Kaiowá. Os indígenas sem terra hoje vivem em acampamentos, fora de suas áreas e enfrentando os impactos da urbanização de seus territórios, degradando o meio ambiente e piorando as condições de vida deles. Sem a terra, como afirma Natanael, os povos originários não têm acesso àquilo que lhes dá “condição plena de sobrevivência, nos dá o alimento, mata nossa sede”.
Esses movimentos de invasão, fomentados pelo Estado, agora estão sendo questionados por um “movimento de retomada indígena”, com as pessoas querendo buscar de volta seus territórios originários, que, como explica Roberto Liegbott, agora foram loteados para latifundiários que “não tem nenhum escrúpulo de espancar, matar e ameaçar os indígenas”. Natanael afirma que os territórios indígenas “estão agonizando, sendo explorados, destruídos pelos tratores que derrubam nossas florestas, destroem nossos rios, profanam nossos cemitérios sagrados”.
Já que o governo não cumpre seu papel constitucional de zelar pelos territórios indígenas, eles têm feito isso. Não é uma guerra simplesmente territorial, mas uma guerra para garantir a vida e o modo de viver dos povos indígenas. Nas palavras de Natanael, eles seguem “demarcando nossos territórios com nosso sangue enquanto esperamos a demarcação concreta de nossas terras”.
As terras sendo retomadas são áreas que foram ocupadas pelos antepassados dos Guarani-Kaiowá. “Foi nesses territórios que construímos nossas identidades”, explica Natanael. Hoje, as áreas foram tomadas por plantações, “onde nem um papagaio ou arara tem condição de sobreviver, […] porque ali é despejado veneno frequentemente”. Só uma ave ainda aparece nas terras que um dia foram delas e dos Guarani-Kaiowá: o avestruz.
“A avestruz é como nós, resistente. Mesmo exposta a todo tipo de agrotóxico, inclusive proibidos em outros países, estamos resistindo há muito tempo a esse sistema opressor, destruidor de povos originários. Destroem nossos territórios e com ele destroem também nossas especificidades, nossos saberes próprios, porque não nos dão alternativas a não ser lutar até a morte contra esse sistema”, afirma Natanael. Ele ainda lembra: o Mato Grosso do Sul inteiro já foi terra indígena. Não é isso que eles querem retomar. “Nós queremos apenas fragmentos dos nossos territórios, aquelas partes mais sagradas, que foram moradias dos nossos avôs, bisavôs, tataravôs”.
O que fazer agora?
O governo Bolsonaro acabou, mas a violência contra os povos indígenas, inflamada durante o ciclo da barbárie, continua. Os garimpeiros e os madeireiros não interrompem suas invasões ao verem o cacique Raoni Metuktire subir a rampa do Planalto com Lula. Para isso acontecer, afirma Roberto, precisamos de um “plano emergencial”, para remontar e reconstruir aquilo que foi destruído e pisoteado.
A crise entre os Yanomami chegou aos centros de poder do país, em janeiro, mostrando as consequências reais do garimpo ilegal na vida dos povos indígenas. As ações empreendidas ali, segundo o especialista do Cimi, que ouviu povos indígenas da região, não correspondem com a expectativa ou com a necessidade dos habitantes.
Algumas das terras indígenas já demarcadas sofreram tanto com invasões e a depredação do meio ambiente que não oferecem aos seus habitantes a possibilidade de extrair da natureza sua subsistência. Para Roberto, uma medida que deveria ser implementada pelo governo Lula é um “programa de garantia de renda para as comunidades indígenas”, que funcione a partir do modo de pensar e viver de cada povo.
Além de medidas administrativas de demarcação de terras indígenas, como as seis áreas que foram homologadas e definidas pelo novo governo, há a necessidade de “medidas concretas que assegurem efetivamente a posse e o usufruto da terra pela comunidade indígena”, segundo Roberto. Um decreto de homologação não tem poderes mágicos, expulsando imediatamente os invasores de territórios indígenas. Aqui entra o papel constitucional do Estado. Passado o ciclo da barbárie, como se espera, Natanael expressa o desejo dos Guarani-Kaiowá: “Temos esperança de que alguns dos nossos anciões que estão para viver em outra dimensão vejam a demarcação total de locais que lhes são sagrados, para que partam em paz, sabendo que conseguiram dar esperança do bem viver ao seu povo”.
Eduardo Lima faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.