A urgência de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade
A investigação do período do governo de Jair Bolsonaro por uma Comissão Nacional Indígena da Verdade é fundamental para não repetirmos o passado
Susan Suleiman escreveu, em sua célebre obra Crises de Memória e a Segunda Guerra Mundial[1], que “a testemunha, homem ou mulher, que relata sua própria história representa, em ambos os sentidos da palavra, multidões que podem não ter sobrevivido para testemunhar, ou aqueles que sobreviveram, mas permaneceram sem voz”. Esta citação tem relação com a situação dos povos indígenas do Brasil e sua luta por sobrevivência diante de um Estado que, não importa o governo, via de regra atuou para sua espoliação em amplo sentido (terras, corpos, riquezas etc.) e seu extermínio (físico, cultural, econômico, religioso, cosmológico).
A citação de Suleiman é perfeitamente aplicável no caso da ditadura militar de 1964 e seus efeitos em nossa história, que simplesmente insiste em apagar de suas estatísticas os cerca de 8.350 indígenas assassinados pela ditadura, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014. Essa foi a quantidade de homens bósnios exterminados pelas tropas sérvias no ano de 1995, sob os olhares omissos das Nações Unidas, naquele que é conhecido como o genocídio de Srebrenica.
O número pode ser muito maior já que a CNV teve limitação de tempo para investigar e foco seu trabalho em apenas dez povos originários, sendo que o Brasil possui mais de 400 nações indígenas a serem investigadas quanto às suas vítimas e à verdade histórica ainda desconhecida pela sociedade brasileira. Nação é conceito sociológico e não ameaça a soberania do Estado brasileiro ao contrário do que afirmam setores reacionários; um Estado com distintas nações é comum em diversas regiões do planeta.
É comum a afirmação de que a ditadura de 1964, em seu legado de violência e opressão, deixou um rastro de morte e desaparecimentos forçados que chega a 434 vítimas. Evidente que tal número se refere às vítimas que lutaram contra o regime de exceção a partir de organizações que aderiram à luta política e também armada, na maioria dos casos. Mas não se pode mais excluir os povos indígenas que foram torturados, espoliados e massacrados por serem, quem são. Eram considerados obstáculos ao desenvolvimento nacional pelo regime militar e, como tal, foram vítimas fatais, sob dimensão que jamais será possível mensurar com precisão.
Alguns períodos históricos e políticos podem ser considerados especialmente letais para a existência dos povos indígenas no que tange à sistematização de violações, além da ditadura militar, como por exemplo o período de existência do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e o governo de Jair M. Bolsonaro (2019-2022).
Entre as atuais ameaças enfrentadas pelos povos indígenas estão a invasão de terras, os constantes assassinatos de lideranças e as proposições legislativas nocivas aos biomas brasileiros e, portanto, aos próprios povos originários.
Quanto aos povos indígenas do Brasil, não apenas sua história anterior e posterior a 1.500 foi omitida, como as opressões a que vêm sendo submetidos jamais foram objeto das adequadas investigação, punição e reparação.
A principal motivação para o apagamento dos indígenas de nossa historiografia; para ignorá-los em nosso sistema educacional desde que o Brasil foi concebido como um Estado independente; para invisibilizá-los pela linguagem e nas comunicações e, evidentemente, esquecê-los nas formulações de políticas públicas é a busca pela espoliação das terras indígenas.
Eis a centralidade do debate sobre o genocídio dos povos indígenas.
Assim, não é de surpreender que parte dos deputados federais durante as negociações para apoiar as propostas do Poder Executivo, logo exigiu que a competência para a demarcação das terras indígenas fosse transferida do Ministério dos Povos Indígenas, para o Ministério da Justiça.
Assim, a partir da análise da questão das terras ancestrais pertencentes aos povos originários do Brasil, pode-se notar com clareza como as violações de seus direitos fundamentais e existenciais ocorridas no passado guardam relação de continuidade com as atuais violações feitas por garimpeiros, fazendeiros, pecuaristas, mineradoras e pelo próprio Estado.
A não demarcação das terras indígenas é central quando analisados os constantes processos de eliminação das culturas originárias. “É importante ter em mente que o interdito declarado contra os direitos dos povos indígenas, à luz da justiça de transição, interdita a democracia em todo o país, na mesma proporção de urgência que a degradação ambiental da Amazônia, Cerrado e demais biomas nos atinge a todos e todas com a mudança climática. Os direitos indígenas seguem sendo um importante termômetro que mede a saúde da democracia no Brasil…; sua derrocada representa o rebaixamento ético e moral da cidadania e da democracia de todos os brasileiros e brasileiras”, Marcelo Zelic[2].
De fato, a terra tradicional indígena constitui o elemento original a partir do qual todas as estruturas relacionais e cosmológicas das culturas originárias decorrem. A ruptura do mútuo relacionamento entre o membro de uma cultura ancestral com sua terra tradicional inviabiliza toda e qualquer manifestação identitária; impede o natural desenvolvimento social, econômico e religioso do povo espoliado e elimina suas bases existenciais fundamentais.
Por tal razão, insisto na consequência genocida das ações acima mencionadas, sobre tais povos cujas vidas coletivas e individuais pressupõem a terra. E, a partir de uma abordagem menos eurocêntrica e mais universal do crime de genocídio, podemos afirmar que sua ocorrência guarda íntima conexão com o modo de vida das etnias e culturas indígenas.
Como pode ser facilmente demonstrado, os anos do governo de Jair Messias Bolsonaro se revelaram trágicos para tais povos. Logo na primeira semana de sua administração a competência para a demarcação das terras indígenas foi retirada da Fundação Nacional do Índio (Funai) e transmitida para o Ministério da Agricultura, então sob o comando de Tereza Cristina, ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.
Também a competência para a identificação, delimitação e demarcação das terras indígenas foi da mesma forma retirada da Funai e repassada ao então Ministério da Mulher e Direitos Humanos, comandado na época por Damares Alves.
Notávamos, neste momento, a evidente direção do então governo Bolsonaro no sentido de fragilizar, de forma sistemática, as estruturas sociais, normativas, econômicas e políticas protetivas dos povos indígenas, tendo por foco a terra indígena.
Outros exemplos podem ser mencionados e que demonstram a opção clara daquela gestão no desmonte das garantias existenciais dos povos originários, tais como o afastamento de servidores que efetivamente atuavam na proteção dos biomas (caso do indigenista assassinado Bruno Pereira); o estímulo para que garimpeiros invadissem terras indígenas, inclusive já demarcadas, como do povo Yanomami (Bolsonaro visitou um garimpo ilegal no Estado de Roraima); a não demarcação de qualquer terra indígena durante sua gestão, uma promessa feita em sua campanha; além da apresentação de proposições de lei que permitiriam o acesso a tais terras tradicionais por mineradoras, garimpeiros etc.
Durante a pandemia de Covid-19, em vista da péssima gestão do governo federal que levou o Brasil a mais de 700 mil vítimas fatais, os povos indígenas foram alvo de ações determinadas pelo governo federal da época e que se mostraram letais.
Como mais um exemplo, em 6 de julho de 2020 a ministra Damares Alves, hoje senadora, solicitou ao então Presidente Bolsonaro que vetasse alguns artigos constantes da aprovada Lei n° 14.021/20 e que estabeleciam medidas especiais para combate à Covid e de apoio à saúde dos povos indígenas, tais como a reserva de leitos de UTI; o acesso a medicamentos e à água potável, durante a pandemia. Os artigos foram efetivamente vetados por Bolsonaro, mas posteriormente derrubados pelo Poder Judiciário.
Uma sequência de atos poderiam ser aqui apontados e devem receber atenção por meio de apuração da verdade, seguida da necessária reparação aos povos originários vitimados, com adoção de políticas de não-repetição, especialmente no que se refere à proteção das terras tradicionais indígenas, sob pena de futuros genocídios voltarem a ocorrer.
A proteção das terras ancestrais indígenas é vital não apenas para a sobrevivência de seus legítimos donos, mas também para a sobrevivência de toda a humanidade. Conforme dados da ONU, 28% da superfície terrestre do mundo encontra-se sob gerenciamento dos povos indígenas (que constituem 5% da população mundial), pequenos proprietários e comunidades locais e representam 80% da biodiversidade do planeta.
A imposição da monocultura por meio da contínua supressão das terras tradicionais indígenas, assim como suas constantes invasões por grileiros e garimpeiros, ameaça de forma grave a vida humana.
Mesmo após o início de um novo governo que conduz o Brasil de volta à institucionalidade democrática, referidas ameaças prosseguem pairando sobre as terras tradicionais, sobre o campo, onde diariamente lideranças indígenas são assassinadas, como vêm ocorrendo no sul da Bahia (terras Pataxó) e no estado do Mato Grosso do Sul (terras Guarani-Kayowá).
Também a aprovação do PL n° 490/2007, em regime de urgência pela Câmara dos Deputados (hoje, PL n° 2903/2023 no Senado Federal), que busca aprovar por meio de lei a ideia inconstitucional do marco temporal, reflete outro exemplo da sistematização da eliminação dos direitos fundamentais dos povos originários.
Os povos indígenas não “detêm” suas terras; eles “são” suas terras. Suas espoliações são ataques diretos às suas existências.
Aqui, reforçamos a premente necessidade de o atual governo brasileiro estudar, com brevidade, quais os mais eficazes caminhos para que políticas sejam adotadas para extirpar, definitivamente, a reiteração do genocídio dos povos indígenas do Brasil.
A investigação do período do governo de Jair Bolsonaro por uma Comissão Nacional Indígena da Verdade constitui uma das medidas mais importantes para que as medidas de não-repetição possam ser vislumbradas, concebidas e efetivadas. Afinal, desde ações diretamente encetadas sobre as terras indígenas, como assassinatos, invasões e desmatamentos, dentre outras, passando pelas medidas administrativas e legislativas com o escopo de retirar, de modo sistemático, aos povos indígenas seus direitos convencionais, constitucionais e legais, devem ser investigadas e registradas, sob pena de legarmos para as futuras gerações mais ignorância e negacionismos sobre um dos períodos mais tenebrosos para os povos originários.
Sob a perspectiva de médio e longo prazo, por exemplo, as ações de socorro imediato ao povo Yanomami submetido a um genocídio sob o governo de Jair Bolsonaro são essenciais. Porém, insuficientes para que não venham a se repetir. Não foi o primeiro genocídio que vitima aquele povo; se ações de não-repetição não forem adotadas, não será o último.
Verdade, Memória, Justiça e Reparação constituem pautas civilizacionais também para os povos indígenas e, afinal, para todo o povo brasileiro. Sem Justiça de Transição para referidos povos a democracia permanecerá frágil e mero arremedo. Por uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, já!
Em homenagem a Marcelo Zelic.
Flávio de Leão Bastos Pereira é pós-doutorado em Direitos Humanos e Novas Tecnologias (Mediterranean International Centre For Human Rights Research – Reggio Calabria, Italia). Doutor e mestre em Direito. Coordenador do Núcleo de Direitos Indígenas e Quilombolas e do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP. Autor da obra Genocídio Indígena no Brasil: Desenvolvimentismo Entre 1964 e 1985. Ed. Juruá, 2018. Professor visitante na Universidade Tecnológica de Nuremberg Georg Simon Ohm, Alemanha e na Universidade de Ciências Aplicadas da Áustria, Campus Linz.
[1] Ed. UFMG,2019, p.178
[2] Brasil, Um País em Interdito. Povos Indígenas, Reparação e Mecanismos de Não Repetição. Genocídio Indígena e Políticas Integracionistas: Demarcando a Escrita no Campo da Memória. São Paulo: Instituto de Políticas Relacionais, 2021, p.154