A extinção do censo demográfico e a negação do Estado Social
A tentativa de promover um apagão estatístico no Brasil, por meio da não realização do censo, demonstra que o governo Bolsonaro se opõe à busca por um Estado Social que efetiva os direitos sociais previstos na Constituição
No dia 23 de abril, o então secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, informou que o orçamento de 2021 não contará com recursos para a realização do censo demográfico. O referido documento foi sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro, entre os quais encontra-se R$ 7,9 bilhões em despesas discricionárias do executivo federal.
Após tal fato, o estado do Maranhão ajuizou uma Ação Cível Originária (ACO) contra a União e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com pedido de tutela de urgência, tendo a finalidade de sanar a omissão do governo federal quanto à formalização de atos administrativos e alocação de recursos para realizar o censo demográfico.
No caso em questão, é possível observar mais uma vez o fenômeno da judicialização da política no governo Bolsonaro, ou seja, novamente é necessário ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) na busca pela efetividade da Constituição Federal por parte do atual governo.
Como se sabe, o bolsonarismo repulsa à atuação da Corte, haja vista a função desta de invalidação de atos – inconstitucionais/ilegais – do governo; de atuação penal/recursal da Corte; e decisões envolvendo a necessidade de promoção de políticas públicas pelo governo federal – como no caso em questão.
Em breve análise do governo Bolsonaro, é possível aferir considerável descaso com políticas sociais, tais como nas áreas de educação, assistência social e, sobretudo, saúde[1]. O censo demográfico é, justamente, importante para auxiliar na elaboração de políticas públicas, tanto os estados e municípios, como a própria União.
O estudo estatístico, realizado pelo IBGE, é formado por perguntas envolvendo, por exemplo, núcleo familiar, renda, escolaridade, deslocamento para estudo, trabalho, além de mortalidade – este último torna-se ainda mais importante em um período pandêmico. Tais dados são fundamentais para a ação estratégica do Estado, em seus diferentes níveis, perante os problemas sociais que eles traduzem.
Ocorre que o governo Bolsonaro atua na contramão do conhecimento, dos dados e da lucidez. Nesse sentido, o colhimento de dados capazes de ordenar as políticas do governo apresentam-se como possíveis ferramentas limitadoras de sua arbitrariedade. Além disso, o negacionismo científico poderia ganhar voz frente a omissão de dados sobre a realidade, de modo a narrativas conspiratórias e infundadas terem mais difusão social.
O governo Bolsonaro tenta atuar não para controlar o problema, mas sim para que ele não mais exista no cenário político. Isto é, se não há estatística sobre desigualdade, mortalidade e saneamento básico, logo, não há problemas a serem enfrentados pelo presidente ou, ainda, problemas decorrentes da omissão deste.
Em palestra concedida ao Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (FND/UFRJ) no dia 29 do mês passado, o governador do Maranhão, Flávio Dino, responsável por ingressar com a ação no STF, afirmou que o atual governo “não tem planejamento e não tem gestão” e que “chuta e rasga” a Constituição, além de expor que não acreditava na obviedade que estava lendo, quando analisou os argumentos expostos na petição inicial.
O ministro Marco Aurélio determinou a realização do censo, sendo este necessário à implantação nacional de políticas públicas. O ministro relator fundamentou, ainda, que é dever constitucional da União e especificamente do executivo federal organizar e manter os serviços oficiais de estatística e geografia de alcance nacional, como preconiza o artigo 21, inciso XV da Constituição. Nessa mesma linha, o decano expôs que cabe ao STF impor a adoção de providências que viabilizem a realização do censo demográfico, vez que se trata de norma constitucional de aplicabilidade imediata, estando configurada a omissão dos réus.
Ainda que em caráter liminar, a decisão deve ser comemorada. A tentativa de promover um apagão estatístico no Brasil, por meio da não realização do censo, demonstra que o governo se opõe a efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição, ou melhor, busca reverter os direitos sociais e as políticas públicas até aqui conquistadas.
O constitucionalista português José J. G. Canotilho[2], que influenciou diretamente a teoria constitucional brasileira moderna, sintetiza em um princípio o robustecimento e a ampliação das conquistas de direitos sociais. Para o professor, o princípio da proibição de retrocesso social pode ser compreendido da seguinte maneira: um núcleo de direitos sociais que esteja disposto em lei deve ser considerado constitucionalmente garantido, sendo inconstitucional toda e qualquer medida estatal que busque anular, revogar ou aniquilar esse núcleo ora garantido.
A inobservância a esse princípio por parte do governo federal faz parte de uma política de Estado que visa o sucateamento e a descredibilização das instituições públicas, seja por meio de ataques diretos ou por corte de verba. Essa política implica consequências permanentes e severas para a consolidação de um Estado Social que viabilize a efetivação de direitos sociais por meio de políticas públicas.
De acordo com Luigi Ferrajoli[3], nessa mesma linha, a conquista de direitos não cai do céu e um sistema de garantias efetivas não nasce numa prancheta, bem como não é construído em poucos anos. Sendo assim, o apagão estatístico ocasionado pela possível extinção do censo demográfico nega o Estado Social no sentido de impossibilitar novas conquistas e de acometer aquelas que já existem.
Fábio Prudente Netto é estudante de Direito da UFRJ, monitor de Políticas Públicas e Inclusão Social e pesquisa sobre direitos fundamentais.
Gabriel Mattos da Silva é estudante de Direito da UFRJ, monitor de Direito Constitucional e pesquisa sobre Autoritarismo na Ordem Constitucional Brasileira.
[1] Não distribuição de kit intubação; negação à pandemia; omissão na aquisição de vacinas; defesa de tratamento precoce da doença; posicionamento contrário ao uso de máscara como forma de contenção do contágio do vírus, etc.
[2] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 339-340.
[3] FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.