Fannie Mae e Freddie Mac vão para o brejo
Criadas pelo Estado para facilitar o acesso à casa própria, as duas gigantes do crédito imobiliário mergulharam no cassino da especulação. Seus dirigentes, movidos pela lógica do lucro máximo, cometeram falcatruas para engordar os ganhos pessoais. O resultado foi uma falência de US$ 5,4 trilhõesIbrahim Warde
Ultimamente, os homens que comandam as finanças do planeta têm sido obrigados a trabalhar nos fins de semana. Afinal, é nesses dias que eles acertam entre si a estratégia a ser adotada diante da atual crise financeira. Em diversos países, os presidentes dos principais bancos se fecham em sessões-maratona com os respectivos ministros das Finanças às sextas-feiras, depois do fechamento do pregão de Wall Street, com o intuito de decidir o destino de tal ou qual instituição. As decisões devem ser tomadas até domingo à noite, antes da abertura das bolsas asiáticas. Aí, então, o veredicto dos mercados – asiáticos, depois europeus e, por fim, o americano – é que vai revelar quem são os ganhadores e os perdedores das grandes manobras do fim de semana.
Segunda-feira de manhã, clientes e contribuintes descobrirão o planeta financeiro transformado. No dia 15 de setembro, por exemplo, eles foram informados que, por falta de comprador, o Lehman Brothers, quinto maior banco de investimentos do mundo, teve sua falência decretada, e que o Bank of America, com a ajuda dos poderes públicos americanos, absorveu a empresa financeira Merrill Lynch, enquanto as autoridades preparavam uma operação de salvamento do American International Group (AIG), líder mundial do mercado de seguros.
O fim de semana anterior tinha sido igualmente rico em surpresas. Domingo, 7 de setembro, após uma semana dominada, na cena política, pela entrada espetacular de Sarah Palin, governadora do Alasca e inesperada candidata do Partido Republicano a vice-presidente, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, anunciou que as duas gigantes do crédito imobiliário, a Federal National Mortgage Association (Fannie Mae) e a Federal Home Loan Mortgage Corporation (Freddie Mac), sofreriam intervenção governamental. A governadora Palin havia provocado entusiasmo nas fileiras conservadoras ao se insurgir contra o governo federal, no exato momento em que este se preparava para a maior nacionalização da história das finanças.
Origem no New Deal de Roosevelt
O início da história do crédito imobiliário nos Estados Unidos remonta ao New Deal, quando o presidente Franklin Delano Roosevelt, às voltas com os efeitos da crise de 1929, decidiu intervir maciçamente na economia. Em 1938, uma agência federal, a National Mortgage Association of Washington, foi criada com o objetivo de favorecer o acesso da classe média aos imóveis e, de quebra, estimular o mercado da construção civil. Mais tarde, quando a Federal National Mortgage Association (Fannie Mae), resultado dessa política, mudou de mãos, passando do setor público ao setor privado, isso na verdade não ocorreu por razões de ideologia econômica. Sua entrada na bolsa foi decidida pelo presidente Lyndon Johnson, em 1968, com vistas à geração de fundos para financiar a Guerra do Vietnã. O Congresso decidiu, dois anos mais tarde, encerrar o monopólio da Fannie Mae, criando a Federal Home Loan Mortgage Corporation (Freddie Mac), que ingressou na Bolsa de Valores em 1989. Os dois estabelecimentos privados passaram a ser favorecidos por normas especiais. Na condição de “entidades patrocinadas pelo governo” (GES, na sigla em inglês), dispõem de uma linha de crédito garantida pelo Estado, assim como de financiamento a taxas preferenciais.
A função da Fannie Mae e da Freddie Mac era assegurar a liquidez do mercado de crédito imobiliário, dando garantia a empréstimos ou comprando-os de volta dos bancos. O endividamento doméstico era encorajado, uma vez que os juros sobre a dívida imobiliária eram dedutíveis do Imposto de Renda. Fannie Mae e Freddie Mac financiavam suas atividades através da emissão de títulos denominados “seguros residenciais garantidos por hipoteca”. O sucesso desses papéis junto aos investidores se devia à certeza de que, ao menos implicitamente, eram garantidos pelo governo americano.
O crescimento das duas instituições financeiras, sempre sustentado pelo Estado, se acelerou à medida que o sistema financeiro sofria uma desregulamentação. Em 1990, Fannie Mae e Freddie Mac detinham, juntas, US$ 740 bilhões em créditos. Essa cifra atingiria US$ 1,25 trilhão em 1995, ultrapassando US$ 2 trilhões em 1999 e US$ 4 trilhões em 2005. Às vésperas da nacionalização, em setembro último, seus ativos eram da ordem de US$ 5,4 trilhões, ou seja, 45% do total do crédito imobiliário nos Estados Unidos. Além disso, as duas financeiras sustentavam sozinhas 97% dos títulos de empréstimos hipotecários. A aceleração do crescimento se explica pelo efeito conjugado da bolha imobiliária de 2001-2006 e dos avanços na engenharia financeira.
O arquiteto desse boom imobiliário e um dos mais aguerridos partidários da inovação financeira foi Alan Greenspan, o homem que durante 19 anos dirigiu o banco central dos Estados Unidos (FED, na sigla em inglês) e cujo prestígio junto aos meios financeiros era tão grande a ponto de receber, unanimemente, o apelido de “maestro”. Suas sucessivas declarações deram o tom do pensamento que devia dominar a esfera das finanças. Em 2002, Greenspan achava que “nenhuma política é capaz de frear o inchaço da bolha financeira”. Ele dizia isso ao mesmo tempo que alimentava a bolha com sua política de redução de taxas. Em 2004, Greenspan afirmou que “uma severa redução do mercado imobiliário nos Estados Unidos é pouco provável, levando-se em consideração sua dimensão e sua diversificação”. Em 2005, acrescentou: “Se o preço das moradias vier a baixar, isso não terá conseqüências macroeconômicas importantes”. No mesmo ano, avaliou que “os instrumentos financeiros cada vez mais complexos contribuíram para o desenvolvimento de um sistema financeiro mais flexível, eficaz e sólido do que aquele que existia há um quarto de século”. Em 2006, às vésperas do estouro da bolha imobiliária, e quando já não era mais o chefe do FED, estimou que “o pior da baixa do mercado imobiliário, sem dúvida, já passou”1.
Lucratividade e escândalos
Tais declarações tiveram o efeito de estimular o investimento nas ações e negócios da Fannie Mae e da Freddie Mac, que conheceram então recordes de crescimento e de lucratividade. Essa era de ouro, contudo, foi marcada por escândalos. Em 2004, a Fannie Mae foi acusada de maquiar suas contas com o objetivo de gerar bônus mais vantajosos para seus executivos. Os três principais diretores foram levados a pedir demissão e a pagar uma multa de US$ 100 milhões. Em 2006, a Freddie Mac foi multada em US$ 3,8 milhões por lobby ilegal junto a membros da Câmara dos Representantes encarregados de supervisionar suas atividades.
A situação híbrida das duas gigantes do crédito imobiliário – empresas públicas e privadas ao mesmo tempo – permitia a elas jogar com as regras de ambos os setores de atividade. Encarregadas de uma missão social – permitir ao maior número de pessoas o acesso à propriedade imobiliária –, as duas financeiras buscavam, no entanto, a maximização dos ganhos dos seus acionistas e, sobretudo, dos seus diretores. Os presidentes da Fannie Mae e da Freddie Mac recebiam salários de US$ 70 milhões por ano, cada um.
As duas sociedades conquistaram influência política espantosa. Mostravam-se especialmente generosas para com os congressistas, independentemente da filiação partidária, obtendo, em troca, o afrouxamento das algemas regulamentares que amarravam suas atividades. Resultado: a opacidade reinava, enquanto todas as normas da prudência, teoricamente em vigor, perdiam sua eficácia.
Paradoxalmente, quando estourou a crise hipotecária, em agosto de 2007, acreditava-se que Fannie Mae e Freddie Mac seriam poupadas do ciclone. O crescimento dessas instituições se mantinha, e “os mercados” não prestavam atenção às anomalias no seu funcionamento. Justamente enquanto o número de famílias incapazes de reembolsar os empréstimos aumentava perigosamente, as agências reguladoras concordavam em fazer novos desembolsos em favor das duas gigantes do crédito imobiliário.
Em 19 de março de 2008 (três dias após o “salvamento” malogrado do banco Bear Stearns), o Tesouro, sob pretexto de interromper a queda no mercado imobiliário e de estabilizar os mercados financeiros, autorizou a Fannie Mae e a Freddie Mac a reduzir em um terço os capitais disponíveis para honrar suas obrigações. Por cegueira ou desinformação, James Lockhart, supervisor das duas instituições, respondia aos que viam nisso um preparativo para um resgate financeiro com dinheiro público: “Um resgate seria absurdo. As duas sociedades estão saudáveis e sólidas e continuarão assim”.
O acúmulo de perdas finalmente se sobrepôs aos cenários otimistas dos analistas financeiros. As funções e distorções do sistema de crédito hipotecário foram então analisadas com inédito rigor. E “os mercados” se renderam à evidência: a queda dos títulos subprime em poder da dupla Fannie e Freddie, o aumento do número de clientes insolventes, a queda contínua do mercado imobiliário e os temores de uma recessão compunham um quadro de matizes bastante inquietantes.
Em regime de urgência, um plano de salvamento do mercado imobiliário foi negociado entre o Executivo e o Congresso. O Tesouro foi autorizado a efetuar compras em massa de títulos emitidos pela Fannie Mae e por Freddie Mac, a conceder-lhes empréstimos urgentes e mesmo a obter participação nessas instituições, em nome do governo federal. Em contrapartida, o controle dos organismos de supervisão seria reforçado. Em uma audiência pública, o senador republicano Jim Bunning, do Kentucky, interpelou o secretário do Tesouro: “Quando abri o jornal, ontem, pensei que tivesse acordado na França. Mas eu estava enganado, pois vejo que o socialismo impera aqui, na América”. Em 30 de julho, a lei foi votada por ampla maioria dos congressistas e promulgada imediatamente pelo presidente George W. Bush.
Estatização impronunciável
Essa lei se revelou, no entanto, insuficiente. Em 12 meses, as perdas da Fannie Mae e da Freddie Mac atingiam US$ 14 bilhões, enquanto as ações dos dois estabelecimentos haviam perdido 90% de seu valor. As necessidades de capital não deixavam de crescer. Era preciso, entre outras coisas, reembolsar uma dívida de US$ 1,6 trilhão, dos quais US$ 230 bilhões venceriam no fim de setembro. Mais grave ainda, os bancos centrais da Europa, da Rússia e da Ásia ameaçavam parar de comprar os títulos de ambas.
O governo americano tomou consciência do inevitável. A falência das peças-chave do sistema hipotecário dos Estados Unidos era inconcebível, e seu salvamento pelo fundos soberanos da Ásia ou do Oriente Médio, politicamente impossível. Sobrava a estatização pura e simples, mesmo que a palavra, de conotação demasiado negativa, não seja nunca pronunciada. O assunto seria tratado simplesmente como uma questão de colocar as instituições insolventes sob a tutela do Estado. A decisão foi apresentada pelo secretário do Tesouro como “a melhor maneira de proteger nossos mercados e os contribuintes do risco sistêmico apresentado pela situação financeira atual”. A medida foi recebida com aplausos, tanto pelos líderes políticos, entre os quais os candidatos Barack Obama e John McCain, quanto pelo responsáveis pela economia. Os dirigentes dos bancos centrais do continente americano, da Europa e da Ásia não esconderam seu alívio. Assim, para Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (BCE), essa “foi uma decisão muito importante, e uma decisão bem-vinda”. Nos meios conservadores, onde é de bom-tom fustigar o Estado, dizia-se que a decisão foi lamentável, mas necessária. Alguns não deixaram de assinalar que as distorções no funcionamento das duas instituições financeiras deviam ser atribuídas ao próprio status semipúblico de ambas.
Mas permanecem embaçados os contornos dessa estatização que não diz seu nome. O que acontecerá depois do “interlúdio” decretado por Paulson? A criação de um ou de vários estabelecimentos públicos? Uma nova privatização? As questões importantes permanecem em suspenso e os detalhes que poderiam inquietar os contribuintes (em particular o custo para trazê-las de volta ao mercado) foram deixados para mais tarde. Mais um presente que o presidente Bush legará ao seu sucessor.
*Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone – Le Monde Diplomatique, 2007.